Violência em SP reacende conservadorismo contra DH

Duas semanas depois dos crimes que deixaram a população da maior cidade do país em pânico, a parcela conservadora da sociedade aponta o dedo para os defensores dos direitos humanos, agora, vítimas de ameaças
Bia Barbosa
 28/05/2006

Uma suástica desenhada no banco da paróquia da Mooca, em São Paulo. Foi este o recado dado ao Padre Júlio Lancelloti nesta semana, depois que as organizações de direitos humanos intensificaram as denúncias de abuso e críticas à atuação da polícia na repressão aos ataques do Primeiro Comando da Capital (PCC) iniciados no dia 12 de maio. O “autógrafo”, como definiu Padre Júlio, pode ser um dos indícios da reorganização dos esquadrões da morte na cidade. Há duas semanas, organizações não governamentais e defensores de direitos humanos vêm recebendo ameaças pelo telefone e por e-mail. Foram obrigados a redobrar as regras “básicas” de segurança, como não andar sozinhos e ter atenção aos horários fixos.

Na semana passada, o secretário especial de Direitos Humanos da Presidência da República, Paulo Vanucchi, afirmou que o governo federal poderia disponibilizar algum tipo de proteção a pessoas que seriam possíveis alvos de retaliação. A medida faria parte das ações do programa nacional de proteção aos defensores de direitos humanos, que, no entanto, há anos segue no papel à espera de ser colocado em prática. Na próxima quarta-feira (31), tem início em Brasília a Conferência Nacional de Direitos Humanos, e o assunto já está na pauta.

Na raiz das ameaças a essas organizações está o lado mais conservador da sociedade brasileira, que sempre se manifesta diante de crises na segurança pública do país. Não é a primeira vez, nem será a última, que aqueles que defendem a dignidade humana para todos e todas são responsabilizados pela escalada da criminalidade do Brasil, revelando o quão rasa é a percepção acerca das origens dos problemas da violência. Tal lado conservador vem à tona nas mensagens que circulam na Internet, em manifestações públicas – como a dos moradores dos Jardins, que penduram na rua uma faixa defendendo para governador nas próximas eleições o nome do Coronel Ubiratan, responsável pelo Massacre do Carandiru – e até em pronunciamentos políticos.

A liderança do PSDB na Assembléia Legislativa de São Paulo, por exemplo, divulgou, logo após uma audiência pública convocada emergencialmente pelas comissões de Direitos Humanos da Câmara Federal, da Assembléia e da Câmara Municipal, uma nota afirmando considerar um “espetáculo” tal evento. Estiveram representados na audiência o Ministério Público Federal, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, o Ministério Público Estadual, a Defensoria Pública, a Associação dos Juízes pela Democracia, a Ouvidoria das Polícias, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais/IBCCRIM e dezenas de organizações de defesa dos direitos humanos. No encontro, o governo estadual foi durante criticado por, até aquele momento, não ter divulgado a relação com o nome dos mortos em supostos confrontos com a polícia.

Ao agir desta forma, “a liderança do PSDB demonstra uma total falta de respeito com organismos, entidades e dezenas de cidadãos e cidadãs com trajetória e compromisso inegáveis com a defesa dos direitos humanos”, declarou o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alesp, o deputado Ítalo Cardoso. “É lamentável que em vez de contribuir para que tais fatos sejam elucidados, a liderança do PSDB na Assembléia Legislativa procure caracterizar como uso político o que é um direito da sociedade civil”, afirmou Cardoso.

Na opinião de Carlos Weiss, membro da Defensoria Pública de São Paulo, é preciso que a população tenha claro o que são direitos humanos. “As pessoas que dizem que a culpa da violência é de quem defende os direitos humanos são as pessoas que sempre aprovaram o massacre de pobres nesse país e também dos militantes de direitos humanos, que são os algozes de uma sociedade honesta”, criticou Weiss. “Defender os direitos de todos os seres humanos não significa passar a mão na cabeça do bandido. Hoje a população carcerária de São Paulo é de 140 mil pessoas, em 140 unidades. E a prisão é o modo mais rápido de transformar alguém ruim em alguém pior. Há revezamento para dormir, as pessoas têm dezenas de doenças, sarna, não têm contato com a família. Quando se trata pessoas desse jeito, o mínimo que se espera é uma reação contra a sociedade da mesma forma. Não é tratar o bandido a pão de ló, mas com justiça”, explica.

Weiss lembra que vários direitos humanos foram violados neste processo, e que as entidades se manifestaram contra todas as violações. Citou como exemplo o direito à vida dos policiais assassinados, e o direito às boas condições de trabalho de toda a corporação – o que inclui uma boa remuneração, escala de trabalho, equipamentos de proteção, uma boa área de inteligência em funcionamento, etc. “No entanto, a resposta a essa violação das condições de trabalho dos policiais não pode ser “soltar a fera”, deixar que os instintos de vingança aflorem. Da mesma forma que repudiamos as mortes dos policiais, repudiamos a atitude das autoridades públicas que incentivaram ou se omitiram diante dessa reação”, disse.

ASSASSINATO COLETIVO PREMEDITADO
A avaliação do deputado Luiz Eduardo Greenhalgh, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, é a de que as entidades de direitos humanos registraram publicamente seus pêsames e sua solidariedade aos policiais e suas famílias. Mas que, nem por isso, podem admitir que, “a pretexto de ataques criminosos, se faça uma revanche”. Para ele, a polícia de São Paulo não apenas exagerou, mas executou uma “política premeditada de assassinato coletivo, como aconteceu na ditadura, quando se prendia as pessoas, suprimia os documentos e as enterrava depois como indigentes”. Diante disso, acredita, nenhum defensor dos direitos humanos pode se calar.

“Vamos defender os direitos humanos doa a quem doer, aos criminosos ou ao aparelho estatal. Mas não somos responsáveis por esta crise. Ao contrário. Somos quem chama a atenção das autoridades há muito tempo sobre isso; sobre a situação da Febem, dos presídios. Então não podemos ser acuados ou criminalizados. E não seremos intimidados. Não acatarei nenhuma responsabilidade que possa recair sobre os lutadores e defensores dos direitos humanos no país. Não aceitaremos ser bodes expiatórios disso”, ressaltou Greenhalgh.

UM TERÇO DE INOCENTES
Enquanto o conservadorismo segue acusando e ameaçando os defensores de direitos humanos, as organizações não governamentais, reunidas numa comissão indepen
dente criada esta semana, trabalham incessantemente para encontrar respostas para os crimes recentes, tanto os que vitimaram policiais como dos que tiveram como alvo supostos envolvidos com o PCC. As entidades já chegaram a falar em um terço de civis inocentes mortos depois da reação da polícia.

Além das tarefas da comissão independente, a Defensoria Pública de São Paulo, por exemplo, constituiu um grupo de trabalho especial, composto de defensores de várias áreas, para acompanhar todos os casos e dar conta das providências necessárias para a defesa da população carente atingida. O atendimento é realizado na Av. Dr. Abraão Ribeiro, 313 (Fórum Criminal da Barra Funda), 2º andar, das 13 às 18h.

A ACAT (Ação Cristã para a Abolição da Tortura) tem recebido denúncias de espancamento e isolamento de adolescentes internos na Febem da Vila Maria e de presos das penitenciárias e centro de detenção de Bauru, Lucélia, Mogi das Cruzes, e Campinas- Hortolândia. As denúncias foram oficializaram para o Ministério Público, mas até agora o MP não se manifestou sobre isso.

Um dos trabalhos que mais tem exigido dos defensores de direitos humanos – e colocado suas próprias vidas em risco – é, no entanto, o que vem sendo feito em Guarulhos. Na cidade conhecida por ter sido, num passado recente, zona de atuação de um grupo de extermínio, 56 pessoas morreram vítimas de arma de fogo desde o dia 12. Um policial e 55 civis. Destes, 4 ainda não foram identificados. Doze morreram com traumatismo crânio encefálico, o que pode ser um indício de execução com tiro na cabeça. No boletim de ocorrência da morte de outras nove pessoas, a “resistência” aparece justificando a morte. Os moradores acusam homens de moto, vestidos com toucas ninja.

O Centro de Defesa Padre João Bosco Bournier, que fica em Guarulhos, tem tido dificuldades de conseguir documentos oficiais sobre as mortes. O IML do município, por exemplo, alegou que já havia entregado a relação dos cadáveres aos “órgãos pertinentes”.

“Antes do dia 12, o número de mortos em Guarulhos era de 1,66 por dia. Neste período, foi de 8 por dia. Se olharmos para os ataques que o PCC cometeu contra as bases policiais e o número de ônibus queimados, a repressão foi muito grande em comparação com as ocorrências registradas. Houve um boom de mortes que não se justifica nem por essa lógica do confronto”, avalia Carlos Eduardo de Souza, do Centro de Defesa. “Isso mostra que o esquadrão da morte ainda não acabou em Guarulhos. Os policiais denunciados há dois anos, quando grupos de extermínio foram investigados na cidade e em Ribeirão Preto, ainda estão soltos. Agora apareceu o momento de voltarem a agir”, denuncia Souza.

O Centro tem procurado a família das vítimas. No relato de uma das mães, a história do filho que tinha tido passagem pela polícia por assalto a mão armada, mas que há dois anos estava fora do crime, cuidando de uma LAN house que tinha aberto no bairro. Segundo ela, duas pessoas chegaram de touca e assassinaram o rapaz. Cinco minutos depois, sem que ninguém tivesse chamado a polícia, os policias chegaram para prestar socorro.

“Mesmo assim, ainda são poucas as pessoas que têm coragem de falar. Todos estão com medo porque conhecem o histórico da polícia em Guarulhos”, diz o integrante do Centro de Defesa. Os defensores de direitos humanos também. Mas são esses os que não se calam. E não se calarão.

Bia Barbosa é membro da ONG Repórter Brasil.

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