Organizações protestam contra iminente escolha de padrão

Às vésperas da assinatura de decreto com japoneses, entidades criticam submissão do governo aos interesses empresariais. Instalação de fábrica de semi-condutores (chips) não deve constar como exigência de contrapatida
Jonas Valente
 28/06/2006

Agora é oficial. Após sucessivas tentativas e negociações, o governo federal marcou para quinta-feira (29), no Palácio do Planalto, a assinatura de acordo com representantes do governo japonês para a adoção de seu padrão tecnológico para o Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD). Pelas informações obtidas e divulgadas na imprensa especializada, será publicado decreto que conterá artigos dispondo sobre, além do uso da tecnologia japonesa, a incorporação de inovações produzidas por pesquisadores brasileiros e regras de transição para a transmissão em sinal digital.

A decisão do governo gerou fortes reações entre organizações da sociedade civil, que criticam tanto a forma como o processo foi conduzido (e concluído) pelo governo quanto o mérito da decisão. Em relação ao processo, entidades como as integrantes da Frente Nacional por um Sistema Democrático de Rádio e TV Digital criticam o açodamento na celebração do acordo, pois defendem que não há justificativas para a urgência da definição. “A implantação da TV digital está em andamento na maioria dos países, não há por que ter pressa aqui, ainda mais quando temos pesquisas que em pouco tempo podem mostrar resultados concretos”, defende Diogo Moysés, do coletivo Intervozes.

Na avaliação das entidades, o acordo da forma como está previsto evidencia a submissão do governo aos interesses dos grandes radiodifusores. A propagandeada fábrica de semi-condutores, contrapartida que segundo o governo teria garantido a disputa a favor dos japoneses, não deve constar como clara exigência no acordo. Segundo informações apuradas pela CARTA MAIOR, o decreto deve prever apenas a análise de possibilidade de investimentos na área de semi-condutores (chips), que incluem iniciativas de transferência de tecnologia e formação de mão-de-obra especializada. Outro questionamento levatando pelas entidades diz respeito ao contexo do anúncio, em plena Copa do Mundo. Na opinião deles, o senso de oportunidade revela a disposição do governo em capitalizar a decisão em momento pouco propício ao debate público, ainda mais sobre o tema da televisão.

Na avaliação do coordenador do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), Celso Schroder, outro problema é a forma unilateral como foi escolhido o padrão. “Na verdade, um debate que não houve, apesar das boas intenções manifestadas no decreto presidencial. O que vem se observando é uma postura autoritária ao tratar dos assuntos da TV Digital, que se consolida, neste derradeiro momento em que o anúncio vem coberto de informações e contra-informações, demonstrando a ambigüidade do governo e a forma pouco transparente como vem conduzindo o assunto”, coloca.

Para Gustavo Gindre, pesquisador que ocupava uma das cadeiras da sociedade civil no extinto Comitê Consultivo do SBTVD, se o processo tivesse seguido o disposto no decreto que criou o SBTVD (4901, de 2003), acrescido por audiências e consulta pública, já seria uma grande vitória. “Contudo, o ideal seria discutir primeiro uma nova legislação para as comunicações no Brasil, antes de se introduzir o rádio e a TV (aberta e paga) digitais”.

Ao ignorar o Congresso e não resolver as questões regulatórias, Gindre considera que o decreto tem 99% de chances de ser ilegal. “A se confirmar o que vem sendo divulgado, o decreto vai contrariar a legislação vigente e o próprio Decreto 4901 de 2003, que criou o SBTVD”, afirma. Segundo ele, as leis que regem a radiodifusão não permitem que uma emissora possua duas concessões em uma mesma região, como irá acontecer com a perspectiva do governo dar uma nova concessão para as empresas transmitirem em digital sem desligar o canal analógico. “Se isso for mantido, não nos restará outra coisa a não ser ir para a Justiça”, prevê.

Para as entidades que formam a Frente Nacional por um Sistema Democrático de Rádio e TV Digital, o anúncio é um "erro histórico", pois tem grandes chances de ‘queimar’ uma oportunidade de, a partir da introdução de uma nova tecnologia, democratizar o atual sistema de radiodifusão brasileiro. “Este é o problema central, o fato de termos perdido uma oportunidade de repensar o conjunto do modelo brasileiro de regulação do audiovisual”, diz o professor César Bolaño, da Universidade Federal do Sergipe (UFS). “O surgimento de qualquer nova tecnologia é sempre motivo para se discutir a regulação e aperfeiçoar os mecanismos democráticos. Mas o que está acontecendo é o contrário. A cada avanço tecnológico, avança a concentração de poder dos donos da mídia, que acabam acaparando tudo”, completa.

Apesar do decreto tocar em definições tecnológicas, a liberação dos testes e do início das transmissões irá gerar um ‘fato consumado’, anunciam as organizações. “Se [o decreto] avançar sobre a gestão do espectro, a decisão deve manter inalterado o oligopólio da TV aberta, garantindo que, quando (e se) for discutida uma nova legislação do setor, pouco poderá ser feito para reverter a situação”, argumenta Gindre. As entidades defendem que o governo use a transição do sistema analógico para o digital e a conseqüente possibilidade de ampliação do número de canais para democratizar o espectro eletromagnético (espaço por onde transitam os sinais de Rádio e TV). Uma vez que para transmitir um mesmo conteúdo as emissoras precisariam de menos espaço, a continuidade da ocupação da mesma faixa (hoje 6 MHz) seria um ‘direito adquirido’ sobre um bem que é público e gerido pelo Estado.

Segundo Paulo Boccato, presidente do Congresso Brasileiro de Cinema (CBC), a decisão do governo pode significar a perda de uma oportunidade histórica também em relação ao desenvolvimento do audiovisual no País se impedir que este novo meio cumpra seu potencial de permitir o surgimento de novos conteúdos e agentes no setor. “Do ponto de vista da produção independente, sabemos que a TV digital é uma oportunidade para que tenhamos uma abertura de novos mercados, sem precedentes na história das comunicações no Brasil, com geração de empregos e fortalecimento da cadeia produtiva do audiovisual brasileiro”.

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