14.08.06 – BRASIL
Lúcio Flávio Pinto *
Adital – Esse é o incrível valor do investimento da CVRD em dois projetos de níquel no sul do Pará. É do tamanho do orçamento anual do governo do Estado, mais de 90% dele gasto com o custeio da máquina pública. Mas esses mastodontes minerais, que se espraiam pela província de Carajás, uma das maiores do planeta, se engasgam com um "mosquito": o licenciamento ambiental.A Companhia Vale do Rio Doce planeja investir 1,2 bilhão de dólares (quase 2,5 bilhões de reais) na mina de níquel do Vermelho, em Carajás. Mas só no mês passado, depois de dois anos de tramitação pela burocracia oficial, conseguiu obter licença prévia para começar a implantar o projeto. O diretor de planejamento e gestão da companhia, Gabriel Stoliar, reclamou da demora, que poderia comprometer o cronograma da Vale, interessada em colocar em operação o níquel do Vermelho antes do vizinho projeto do Onça Puma, também seu, para o qual prevê investimento do mesmo tamanho, ou US$ 1,1 bilhão. Provavelmente os dois sairão ao mesmo tempo, entre 2008 e 2009, colocando o Brasil entre os cinco maiores produtores mundiais de níquel.
As críticas, feitas durante a apresentação dos resultados da CVRD no primeiro semestre, obrigaram o representante da empresa em Belém, Eugenio Victorasso, a procurar atenuar a repercussão negativa das declarações de Stoliar junto ao governo do Estado. As relações entre as duas partes, que nunca foram exatamente risonhas e francas, ameaçam azedar ainda mais se Almir Gabriel for eleito sucessor do também tucano Simão Jatene. O ex-quase-futuro-de-novo-governador foi duríssimo nas críticas à maior empresa em atuação no Pará (no qual fatura mais do que o próprio governo) durante um encontro realizado na sede da Federação das Indústrias, duas semanas atrás.
Retificando de certa forma o diretor, Victorasso explicou que a demora por ele referida no processo de licenciamento não se devia a qualquer imperícia ou falta de apoio da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente, mas às exigências da própria legislação. Ela impõe um rito mais lento devido a certas exigências, que precisariam ser aprimoradas. A Sectam – tratou de ressaltar – é parceira da Vale, desempenhando seu papel de forma "correta e competente".
Não faltam motivos para a companhia reclamar da demora. O mercado do níquel, usado na produção de aço inoxidável, está muito aquecido pela demanda da China. É preciso aproveitar essa conjuntura internacional para aumentar a rentabilidade do empreendimento. Mas se a burocracia pública afeta o andamento regular e desejável do licenciamento ambiental, com exigências às vezes marcadas pelo preciosismo, parcela ponderável de culpa cabe à própria CVRD.
Os representantes do Ministério Público que atuaram no licenciamento no Conselho Estadual do Meio Ambiente, Raimundo Moraes e Bezaziel Alvarenga, observaram, em seu parecer sobre o EIA-Rima (estudo e relatório de impacto ambiental) do níquel do Vermelho, "as profundas deficiências desses estudos apresentados, especialmente nos aspectos relativos aos riscos sobre a saúde humana e sobre a higidez do meio ambiente natural e social".
Um projeto de mais de um bilhão de dólares pode apresentar deficiências desse nível na avaliação do seu impacto ambiental na região onde vai funcionar? Se realmente procedem as restrições opostas pelos dois promotores, algumas das quais até rudimentares, a CVRD age com negligência ao contratar consultores para elaborar esses estudos de impacto ecológico e humano. A empresa precisa responder rapidamente – e convincentemente – a essas críticas se quiser merecer consideração. Por causa de tais falhas, os promotores desaconselharam o licenciamento do projeto, alegando que o EIA-Rima não demonstrou a viabilidade ambiental para a operação da mina de níquel do Vermelho.
Algumas das deficiências apontadas devem-se mais à inércia do poder público do que à imperícia da empresa privada, chamada a suprir uma missão de governo ignorada ou descurada. Em certa medida os representantes do Ministério Público querem que a companhia chame para si responsabilidades da administração pública, o que não tem previsão em qualquer norma legal, mas pode ser enquadrado dentre as responsabilidades sociais de uma empresa privada, sobretudo em área pioneira, como a de Canaã dos Carajás, onde se localiza a jazida.
Várias lacunas indicadas no parecer do MP não dizem respeito diretamente ao impacto ecológico, mas influirão sobre a vida humana, a ser considerada quando os efeitos do projeto forem desencadeados. Alguns estudos exigidos serão necessários para fundamentar políticas públicas de saúde, educação, moradia, absorção de imigração ou segurança pública. Podem até não ter estrita previsão legal, mas num projeto de mais de US$ 1 bilhão não constituem luxo. Muito pelo contrário.
Outros dados solicitados, porém, dizem respeito ao processo produtivo. Os promotores afirmaram em seu parecer, por exemplo, que "são enormes os ricos dos efluentes industriais gasosos, líquidos e sólidos a serem gerados, a exemplo dos impactos: da emissão permanente de névoa ácida e outros gases decorrentes da fábrica de ácido sulfúrico, da barragem e da bacia de rejeitos sobre o solo e as águas superficiais e subterrâneas e da torta sólida resultante do processo industrial, seu depósito e tratamento final".
Há realmente lacunas dessa gravidade no EIA-Rima? Se tais aspectos não foram adequadamente contemplados nos estudos, a empresa deve ser cobrada com rigor. Um procedimento exemplar pode ter efeito demonstrativo para o futuro, inibindo licenciamentos ambientais feitos apenas para cumprir uma formalidade, como acontece com certa freqüência.
Embora algumas considerações do parecer possam sugerir excesso de rigor (não aplicado ao outro projeto de níquel, do Onça Puma, licenciado anteriormente pela canadense Canico, antes de sua aquisição pela CVRD, no ano passado), na verdade elas simplesmente aplicam a uma região pioneira normas da legislação corrente, incluindo a Constituição do país, que parecem não ter vigência na fronteira amazônica, por causa do seu pioneirismo.
Já é hora de definir uma visão de conjunto sobre a província mineral de Carajás, uma das mais importantes do planeta, enquanto há minério, cuja exploração precisa ser regulamentada satisfatoriamente. Dez minas de ferro, manganês, cobre e níquel se distribuem por quatro municípios e as autoridades agem como se cada um deles fosse um país, com fronteiras rígidas e soberanias excludentes. Não há um planejamento integrador, capaz de tirar o máximo benefício em conjunto desses empreendimentos econômicos. De dar-lhes sinergia, como diz o jarg
ão técnico.
Só a própria CVRD tem uma visão global desses projetos. Os que já estão em atividade representam investimento realizado de quase 5 bilhões de dólares. Os que ainda estão em fase de implantação somam mais de US$ 3 bilhões. No ano passado a receita dos projetos de ferro, manganês e cobre se aproximaram de US$ 2 bilhões. Com o pleno funcionamento das minas, esse valor duplicará. Quanto desses recursos consideráveis ficará na própria região, beneficiando-a de forma duradoura e não apenas – e residualmente – durante a safra dos minérios, encurtada pela escala enorme da produção?
Pouco, se depender da iniciativa própria da empresa. Menos do que o possível, se a tarefa ficar entregue ao governo, despreparado para cumprir sua missão numa região desarticulada e desestruturada pelo impacto desses "grandes projetos", como eles são (mal) conhecidos. A intervenção dos dois promotores no processo de licenciamento pode ter também suas falhas e excessos, mas cumpre a função de provocar o debate.
Mais do que um debate acadêmico, está em causa a sorte da natureza e das pessoas nesses locais, o que provavelmente levou os dois representantes a advertir, em seu parecer, que "o não atendimento sem justificativa da presente recomendação importará na responsabilização e no ajuizamento das medidas judiciais civis e criminais, visando a resguardar os bens ora tutelados, inclusive, com a propositura de apropriada ação civil pública por improbidade administrativa, consistente no ilícito de retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício".
A advertência dirige-se tanto à Vale do Rio Doce quanto a Sectam, chamadas a cumprir suas distintas responsabilidades, às vezes ignoradas na formação de "parcerias". Em Carajás, elas apresentam resultado desigual, favorecendo muito mais a empresa privada do que os cidadãos dos quais o poder público é o representante. No Pará, em tese.
* Jornalista