Direito à moradia

Vagão-leito

Localizada a 52 km de Ribeirão Preto (SP), o município de São Simão opõe o passado de riquezas provindas do café e a miséria de famílias que vivem em vagões de trem e em barracos e casas abandonadas de uma ferrovia
Daniela Alarcon
 24/08/2006

Rua Hildo Benedito Machado, s/n, Jardim Evangelina, São Simão (SP).

Pelas frestas do vagão, entram vento e insetos. No alto, o tambor faz as vezes de caixa-dágua

O lustre rebuscado na fachada é apenas um penduricalho inútil, pois não há energia elétrica no vagão de trem onde vivem Raimundo, Rosemeire e três de seus filhos. Na sala, a um só tempo também quarto e cozinha, a televisão faz eco à lâmpada morta. Ali a família dispõe seus bens: um retrato de Raimundo ainda bebê, camas, as panelas em que esquentam comida e água para o banho, o guarda-chuva, roupas.

São Simão tem hoje população inferior a 14 mil habitantes e participação ínfima na arrecadação de ICMS do Estado (283ª posição). Tais números não denunciam que, em fins do século 19, o município foi o segundo maior de São Paulo. Época em que alguns vizinhos, como Sertãozinho e mesmo Ribeirão Preto, faziam parte da comarca de São Simão. O telégrafo, os bancos, a iluminação noturna e a multiplicação dos cinemas materializavam a modernidade simonense, fruto do intenso cultivo de café.

Locomotiva preservada no bairro de Bento Quirino; ali, quase todos os moradores são ex-ferroviários

Assim é que, no frenesi dos lucros da lavoura, duas estradas de ferro passaram a cortar a cidade. Em 1875, foi inaugurado o primeiro trecho da linha-tronco da Mogiana. Em 1891, um grupo de fazendeiros organizou uma companhia que originaria a Estrada de Ferro São Paulo e Minas – posteriormente comprada por Jorge Fairbanks, e incorporada à Mogiana no final da década de 1960. Onze anos mais tarde, a Fepasa, hoje Rede Ferroviária Federal S. A. (RFFSA), assumiu o controle de ambas as estradas.

Dos barões, dos bailes e casas envidraçadas, das décadas em que os imigrantes chegavam a São Simão em profusão – italianos para as lavouras, os alemães dos ofícios urbanos, os ingleses da "São Paulo e Minas" – de tudo isso, Raimundo e Rosemeire nada podem dizer. As histórias do declínio da economia local e do abandono a que foi submetido o transporte ferroviário é que lhes espreitam à porta.

Rosemeire, sua enteada Adriana, e a filha Rosana, de 11 anos, vivem ameaçadas de despejo

Ao passo que os filhos crescem, o vagão torna-se mais apertado. "A gente pensa em sair, ir embora para um sítio, para uma casa boa, mas não tem como", diz Rosemeire. Anos atrás, eles viviam em um sítio, pertencente ao antigo patrão de Raimundo. Conhecido como Sapinho, o dono de carvoaria chegou a abrigar o empregado e a família em sua propriedade. Não pagava salário – cesta básica, apenas. Quando ele morreu, sua mulher recolheu um vagão abandonado próximo aos trilhos, levou-o para um terreno pertencente à família, e ali instalou Raimundo, a mulher e os filhos. Os herdeiros de Sapinho hoje tentam reaver a propriedade.

"Agora eles querem tirar meu pai daqui. Onde que meu pai vai com as crianças, pra baixo de viaduto?", Adriana, filha do primeiro casamento de Raimundo, quase grita. Braço esquerdo queimado (tatuagem involuntária adquirida na Febem), Adriana se agita enquanto tenta, em vão, acender o fogão, e se apressa em dizer que aos pobres cabem sempre os trapos. A mãe foi a primeira simonense a morrer em decorrência do vírus HIV, as irmãs se espalharam entre parentes e educandários.

Interior do vagão onde vive a família de Raimundo. A família vive do salário dele em uma frente de trabalho e de programas de assistência

Também Rosemeire perdeu a mãe quando criança. "Sabe que eu nem lembro direito como é que ela era? Eu lembro o jeito dela das fotos; de verdade assim, não lembro quase." Tinha doze anos quando lhe mandaram para São Paulo viver com as tias. "As minhas tias, minhas primas, tudo trabalhavam, e eu ficava sozinha dentro de casa. Não suportava ficar trancada, sozinha. Então eu peguei e pulei do prédio", termina, meio que rindo. "Aí a tia trouxe eu e nunca mais quis levar eu lá."

Os três andares resultaram em um pé destroncado e no retorno à casa do pai, além da convivência forçada com a madrasta. Para escapar dos tapas e da implicância, aos 16 anos, foi viver com Raimundo, que tinha então 44 anos de idade.

No pátio, moradores dividem varais, um filtro de barro e um fogareiro de chão

Quinze anos depois, os dois estão separados, mas Rosemeire, sem ter aonde ir, continua dividindo o teto com ele. A renda da família vem da participação de Raimundo na frente de trabalho Programa Municipal de Enfrentamento a Pobreza, e de outros programas de assistência social federais e municipais. "Tem hora que dá vontade de sumir pra longe e nunca mais voltar".

À luz de velas
Era noite de São João quando Toninha, 13 anos, fugiu com o namorado para São Simão. O casamento durou pouco: "eu fui, fiquei com ele, me perdi, depois ele morreu". Aos 17 anos, deixando-a com as crianças pequenas.

Antonia de Fátima Jussiane há cerca de um ano ocupa uma casa abandonada, que converteu em seu "palacete", como diz. Magra e envelhecida, perdeu as contas de quantos filhos teve até hoje.

Dois deles, Denis e Dimas, estão presos na penitenciária de Flórida Paulista, Oeste do Estado. Poucos se dispõem, em São Simão, a alugar um imóvel à mãe de dois criminosos; os que o fazem sempre inflacionam o preço. Na casa construída à beira dos trilhos, ela ao menos não paga aluguel; o salário mínimo mensal dilui-se em passagens de ônibus, comida e cigarros para os filhos. Sobraram-lhe, este mês, 30 reais. Com amargor cansado, convida: "abre a geladeira pra você ver se a gente conta mentira".

Construídas à beira da ferrovia, as chamadas "casas da Fepasa" serviam originalmente como oficinas, depósitos e
pequenos escritórios anexos à estação de trem. Hoje, abrigam famílias, como a de Toninha, que não conseguem pagar aluguel e tampouco são atendidas por programas de moradia popular. Crianças pequenas brincam nos quintais cercados de arame – medo de que, num piscar de olhos, desçam para os trilhos. Embora desde 1997 não circulem trens de passageiros por São Simão, locomotivas carregadas cruzam a cidade diariamente. O trem passa e ninguém atenta para o barulho; o ouvido acostumou-se. Na casa de Toninha, uma rachadura no chão vai silenciosa de um canto a outro da cozinha.

Desde que fora nomeado promotor de justiça de São Simão, vários boletins de ocorrência chegavam à mesa de Tiago Cintra Essado, indicando um vagão abandonado próximo aos trilhos e as casas da Fepasa como locais recorrentes de litígios. Eram pequenos delitos: brigas de marido e mulher, bate-bocas entre vizinhos e uso de drogas. Contudo, os fatos lhe chamaram a atenção para a periferia da cidade – não fosse por isso, região praticamente invisível.

Junto com funcionários da Vigilância Sanitária, o promotor realizou, em 23 de junho, uma visita de inspeção às casas da Fepasa – em abril a Vigilância já produzira, a pedido do Ministério Público, um relatório sobre as condições de moradia no local. Constataram o acúmulo de lixo, risco de contágio de doenças, a má-conservação das construções, com rachaduras e infiltrações, e a ausência de qualquer espécie de saneamento básico.

A Vigilância Sanitária visitou também a moradia de Raimundo e, próximo dali, um outro vagão, onde mora João Vitor. Ele vive da colheita de café e do aluguel de três barracos, de madeira e zinco, no entorno do vagão.

Valdelino, mineiro de Santa Rosa, vive em São Simão desde criança; hoje, paga 70 reais pelo aluguel de um barraco sem banheiro

Valdelino Miranda, um dos locatários, paga R$ 70,00 por mês. Divide a casa, sem banheiro e energia elétrica, com o filho, um irmão e um amigo, que possui deficiência mental. É o segundo barraco em que vivem, no pequeno cortiço organizado por João Vitor, já que o anterior pegou fogo. "Queimou até os documentos nossos. Caiu uma faísca do fogão na cama e em coisa de segundos fez uma desordem ali. Era tudo de tábua."

Seu filho, Luiz Fernando, antevê desastres no teto: a pouca sustentação das tábuas, vulneráveis ao vento e à chuva. E reclama do gasto com velas e pilhas. "R$ 5,65 o pacote de dez velas. Por mês, nossa, uns cinqüenta conto de vela vai embora." Valdelino estudou só até o terceiro ano – pai adoentado, irmão pequeno para criar – e, sem conseguir emprego formal, segue na frente de trabalho da prefeitura. Hoje espera apenas o antigo inquilino sair para mudar-se para sua casa nova, comprada com a herança do pai, o FGTS de Luiz Fernando e a ajuda de uma irmã.

"De vez em quando o pessoal rico vem aqui dar uma olhada e fica admirado de ver os barracos", conta Valdelino. E, como se explicasse para eles, justifica-se, meio sem jeito: "Não é por vontade da gente: a gente quer uma coisa e acaba dando errado".

Políticas de moradia
Fundamentado no princípio jurídico da dignidade da pessoa humana, Essado abriu um inquérito civil público para investigar a possível omissão do poder público municipal. A portaria concedeu ao prefeito, Marcelo Aparecido dos Santos (PSDB), o prazo de 20 dias para esclarecer quais medidas foram tomadas desde o início de seu mandato com o intuito de regularizar a situação das famílias.

O direito à moradia é fundamental e inalienável. O artigo 182 da Constituição Federal prevê como atribuição do município a execução de políticas de desenvolvimento urbano que garantam o "pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e o bem-estar de seus habitantes". O prefeito, contudo, afirma que não pode intervir nas casas da Fepasa e nos vagões, por se situarem ambos em terrenos particulares. Além disso, enfatiza que o problema remete a gestões anteriores.

"Uma propriedade, seja pública ou privada, tem que cumprir sua função social. E a prefeitura deve fiscalizar o cumprimento por meio de seu plano diretor. O prefeito pode alegar desconhecimento anterior do problema. Mas, sabendo, ele tem que priorizar uma resposta, por meio de verbas emergenciais. Não importa que o problema o preceda, importa é que a notícia chegou a ele", afirma Patrícia Cardoso, advogada do Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais (Polis) e assessora da relatoria nacional para o direito humano à moradia adequada.

Na resposta ao ofício da promotoria, Marcelo Aparecido enumera as políticas desenvolvidas em seu mandato: o convênio firmado com a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado (CDHU) para construção de 50 moradias populares, e a parceria com o governo estadual para tratamento de esgotos urbanos. Assistente social do judiciário, Emílio Carlos Thomazi questiona a eficácia dos programas de financiamento de casa própria no caso dessas famílias, incapazes de atender a certos requisitos mínimos. "É necessário ter uma determinada renda, ter documentos. As famílias que moram lá estão abaixo dessa estrutura, sequer entram no esquema de financiamento."

A próxima etapa do processo é a formalização de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a prefeitura, que deve retirar as famílias de lá, fornecendo-lhes condições adequadas de moradia. Caso o prefeito não cumpra o previsto no Termo de Ajustamento, o Ministério Público pode executar o TAC na Justiça, responsabilizando a prefeitura, e submetendo-a às penalidades devidas. "Não adianta ele [o prefeito] falar que a prefeitura está dando cesta básica e medicamento. Isso não é o suficiente", reclama Essado.

Água utilizada pelos moradores do cortiço. Promotor de justiça do município cogita procurar iniciativa privada para garantir direitos básicos às famílias

Ainda que informalmente o prefeito tenha se disposto a procurar a Secretaria Estadual de Habitação para estabelecer um convênio, pois o orçamento municipal seria insuficiente, Tiago acena com a hipótese de uma solução vinda da iniciativa privada. "Inicialmente, nós vamos forçar o poder público a fazer isso. Agora, se não sair uma resolução rápida, até o final
do ano, a gente vai tentar fazer um apelo à sociedade civil, a empresas. Porque é uma situação simples, não são 600 famílias, são seis."

Uma consulta aos indicadores sociais de São Simão pode parecer animadora. De acordo com a Fundação João Pinheiro, em 2000, o percentual de pessoas que viviam em domicílios urbanos com coleta de lixo, água encanada e energia elétrica era superior a 99% no município. Porém, a situação em que vivem essas famílias, alijadas de seus direitos civis, alerta para o perigo de balizar discussões sobre direitos humanos em prerrogativas quantitativas. A essas famílias, nada dizem os infográficos da prefeitura. No momento, apenas sentem medo de serem enxotadas de suas casas improvisadas sem que lhes seja oferecida uma moradia definitiva. Tanto que assistentes sociais não são bem-vindos na maioria dos barracos de São Simão, por serem vistos como representantes do poder institucional que os marginaliza e ameaça.

Apenas a família de Valdelino tem perspectivas concretas de mudança. Por tempo indeterminado, Rosemeire se aperta com a filha sobre o colchão estendido no chão. Toninha, olhos baixos, conta e reconta o dinheiro do mês.

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