Mais de um século após a extinção do escravismo, Brasil ainda vê pessoas subjugadas em condições semelhantes
Boris Fausto, colunista da Folha
Nenhuma instituição se encravou mais profundamente na vida brasileira, com efeitos perniciosos, do que a escravidão. Ela perdurou, como se sabe, por quase 400 anos, mudando apenas de objeto, ao passar, preferencialmente, do índio ao negro.
Pesquisas recentes, de historiadores como João Fragoso e Manolo Florentino, quantificaram a importância do comércio de escravos, em mãos de brasileiros desde meados do século 18, revendo assim a interpretação da história colonial, muito concentrada na acumulação de riqueza por parte dos grandes senhores do açúcar. Convém lembrar que a propriedade de escravos foi um desejo comum de toda a sociedade brasileira, rica ou pobre, havendo gente de limitadas posses que era proprietária de um ou dois escravos, de cujos serviços jamais imaginaria prescindir.
Aqui, trato de um expressivo fragmento ideológico dessa história, focando um parecer examinado pela Seção de Negócios Estrangeiros do Conselho de Estado, de abril de 1859, publicado num livro da Fundação Alexandre de Gusmão, do Ministério das Relações Exteriores, em 2005, intitulado "O Conselho de Estado e a Política Externa – Consultas da Seção dos Negócios Estrangeiros (1858-1862)".
Como só historiadores têm a obrigação de saber o que foi o Conselho de Estado, e todas as demais pessoas não necessariamente, convém lembrar que se tratava de um órgão consultivo previsto na Constituição brasileira de 1824, composto de no máximo dez membros vitalícios, de religião católica, com idade não inferior a 40 anos, nomeados pelo imperador.
O Conselho era ouvido "em todos os negócios graves e medidas gerais da administração", incluindo-se entre elas quase todas em que o imperador se dispunha a utilizar seu Poder Moderador, também previsto no texto constitucional.
Órgão centralizador
Tido, com razão, como um órgão típico da centralização conservadora do Império, o Conselho de Estado foi suprimido pela Regência, em 1834, quando a onda oligárquico-liberal descentralizadora ganhou força no país. Com a maioridade de d. Pedro 2º, no âmbito do chamado "regresso", o Conselho de Estado voltou a funcionar a partir de 1841, exercendo suas funções até o fim do Império.
O parecer que desejo ressaltar versa sobre a questão da cidadania dos escravos libertos, nascidos fora do Brasil, suscitada pela legação imperial brasileira em Montevidéu. Seu autor era uma figura destacada do Império, José Antonio Pimenta Bueno, consultor do Ministério dos Negócios Estrangeiros, mais tarde visconde e marquês de São Vicente.
O entendimento de Pimenta Bueno, segundo o qual os libertos, nas condições apontadas, eram cidadãos brasileiros, foi submetido ao exame do Conselho de Estado e contraditado pelo parecer deste. O relator da matéria foi Eusébio de Queiroz, responsável pela iniciativa da lei que extinguira o tráfico de escravos para o Brasil, em 1850.
Ao lado de outros argumentos jurídicos, o pronunciamento do Conselho, acolhido pelo imperador, lembrou os precedentes e assinalou o fato de que muitos libertos nessas condições haviam sido deportados para fora do Império, na Bahia e no Rio de Janeiro.
Vê-se, pois, que, na dúvida sobre a nacionalidade do liberto, o governo imperial preferia considerá-lo indesejável, expulsando-o do país. O dado mais significativo do texto de Pimenta Bueno é a forma inteiramente natural com que trata da condição jurídica do escravo, a respeito da qual elabora uma construção lógica arrepiante aos nossos olhos e, ao mesmo tempo, incontrastável. Vale a pena reproduzir um trecho.
Sem pátria
"O art. 6º, parágrafo 1 da Constituição não reconheceu como cidadãos brasileiros os escravos, enquanto escravos, embora nascidos no Brasil, e, certamente, não podia nem devia reconhecê-los como tais, porque os escravos são antes uma propriedade, embora de natureza especial, do que pessoas no gozo de seus direitos e, assim, não podem ser membros da sociedade civil e, menos, da sociedade política; o declará-los cidadãos valeria o mesmo que libertá-los. Ora, daí deduziremos uma primeira conseqüência e é que, qualquer que seja o lugar do nascimento, o escravo enquanto escravo não tem pátria nem nacionalidade; sua naturalidade é indiferente em relação à sociedade civil ou política, pois que ele não é membro dela."
Esse texto impressiona o olhar de hoje não porque não saibamos que o escravo era considerado coisa, um semovente cuja obrigação consistia em seguir seu dono, embora conseguisse, por muitas formas, na vida real, abrir brechas nessa condição e, bem ou mal, afirmar-se como pessoa.
As afirmações do parecer se destacam pelo seu caráter prescritivo e pela formulação lógica em que declara, com todas as letras, mais do que a marginalidade, a inexistência como gente, de um setor da sociedade, que, na época, representava algo em torno de 17% da população.
A uma distância de mais de um século da extinção do sistema escravista, é doloroso saber que até hoje existem no país pessoas subjugadas em condições semelhantes ao do escravo, sejam elas negras, caboclas, mulatas ou brancas.
Atitude humilde
E é o caso de nos perguntarmos também, com certa humildade, que práticas comuns ao nosso tempo não serão vistas como absolutamente inadmissíveis daqui a cem anos: a desigualdade social? A destruição dos bens naturais? As condições de vida nas grandes cidades? A poluição ambiental? A persistente discriminação racial? Ou será hipótese assustadora que tudo será pior e os nossos pósteros terão saudades dos tempos em que nós existimos?
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BORIS FAUSTO é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 1930" (Companhia das Letras).