A Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) decidiu suspender o pagamento anual de R$ 9 milhões aos Xicrin, no Pará, após 200 indígenas das aldeias Cateté e Djudjêkô ocuparem, em 17 e 18 de outubro, as instalações da mina de ferro da Província Mineral de Carajás, localizada no município de Marabá. Os Xicrin paralisaram as atividades da empresa, reivindicando o diálogo com a Vale para o aumento do repasse financeiro recebido pelas comunidades indígenas. A decisão da CVRD desafia e desrespeita determinações feitas por decreto presidencial e por leis ambientais e traz à tona as disputas pelas terras indígenas ainda sem demarcação.
A concessão da Província Mineral de Carajás à CVRD para a exploração mineral foi determinada pelo Senado em 1986. Em março de 1997, a decisão foi reconhecida por um decreto presidencial, assinada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. A área em questão tem quase 412 mil hectares. De acordo com a Fundação Nacional do Índio (Funai), trata-se da maior mina a céu aberto do mundo, com uma reserva de ferro que permitiria a empresa retirar 250 mil toneladas do minério por um período de 470 anos.
A Funai entende que a decisão da Vale em suspender o pagamento descumpre uma condição determinante para que a empresa recebesse a concessão da área para a lavra. Entre outras resoluções, como a proteção e a conservação de recursos naturais, o decreto de FHC estabelece que a CVRD assuma “o amparo das populações indígenas existentes nas proximidades da área concedida, na forma do convênio formalizado com a Fundação Nacional do Índio – Funai, ou quem suas vezes fizer”.
Desde então, Termos de Compromisso foram estabelecidos entre a mineradora, Funai e comunidades para que houvesse o repasse financeiro, reconhecido no decreto presidencial como a forma de amparo dessas populações. O repasse é, na verdade, uma compensação aos indígenas pela utilização dos recursos naturais dessas terras.
Em nota, a mineradora alega que “esse apoio vem sendo realizado de modo voluntário – não sendo, portanto, uma obrigação legal”. Segundo a Vale, a responsabilidade de garantir recursos financeiros para atender às necessidades das comunidades é do Estado. Mas com o processo de privatização da companhia, o “amparo” previsto no decreto de 1997 passa a ser responsabilidade da CVDR.
De acordo com o procurador geral do Ministério Público Federal no Paraná, Felício Pontes, apesar de a política ambiental brasileira não determinar o que ou quanto seria a compensação ambiental a ser paga por uma empresa que explora recursos naturais em terras indígenas, é necessário que haja um retorno para as comunidades impactadas: “A Vale está usando recursos das terras indígenas. Ela não pode explorar tudo e deixar de pagar uma compensação aos índios”, afirma.
Segundo o procurador, o Termo de Compromisso estabelecido entre a Vale, Funai e comunidades indígenas é vago, pois não determina o valor exato que deve ser repassado aos índios pelo uso de suas terras.
Já para Saulo Feitosa, o vice-presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), não se trata de contribuição voluntária, como alega a empresa. “Ao pagar esse valor aos índios, a Vale não está sendo generosa e também não é uma ação voluntária. Ela não tem como negar o impacto quer provoca na terra e na cultura indígena”, afirma.
Segundo o presidente da Funai, Mércio Pereira Gomes, a instituição pretende fazer valer os direitos dos indígenas por meio de uma ação civil pública, na qual será enfatizada a validade do decreto assinado por FHC. “A determinação tem que ser cumprida como obrigação por ter tido a terra e não por benevolência, amparo, esmola ou apoio”, afirma.
O Cimi, no entanto, afirma ser crítico em relação a esses tipos de convênios. “Se hoje não há legislação que estipulam as bases da mineração em terras indígenas, qualquer convênio é questionável e pode ser anulado, porque não há base jurídica”, afirma Feitosa.
Para Gomes, a lei de Política Nacional do Meio Ambiente de 1981, n.º 6938, valeria nesse caso. A lei impõe ao poluidor ou predador a obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados. Ao usuário cabe a contribuição pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos.
Ao mesmo tempo em que a Vale se nega a pagar a quantia de R$ 9 milhões, ela alega que, em apenas dois dias, a paralisação de sua produção provocada pelos Xikrin rendeu um prejuízo de US$ 10 milhões. Na semana passada, a companhia se tornou a segunda maior empresa do setor minerador após a aquisição da empresa canadense, Inco, uma das maiores produtoras de níquel do mundo.
Até o fechamento da matéria, a mineradora não se atendeu ao pedido de entrevista da reportagem.
Direito à mobilização
Para o dia 11 de setembro, estava prevista uma reunião entre a CVRD, a Funai e os indígenas para que houvesse reajuste no repasse financeiro às comunidades, mas o evento não aconteceu. “Os índios pediram formalmente, por escrito, a reunião, mas a empresa nunca atendeu”, afirma Mércio Gomes, presidente da Funai.
Para suspender o pagamento aos indígenas, a Vale justifica que o Termo de Compromisso proposto em junho deste ano contém cláusulas de cancelamento imediato, caso haja ações dos índios que paralisem as atividades da companhia. Segundo o presidente da Funai, esse acordo não chegou a ser assinado pelas comunidades e, portanto, os índios não têm compromisso com esse convênio.
A CVRD anunciou que denunciaria a mobilização dos Xikrin à Organização dos Estados Americanos. “É um absurdo essa iniciativa. É uma inversão total da realidade e uma tentativa de confundir a opinião pública”, opina o vice-presidente do Cimi. Para Feitosa, os direitos humanos dos indígenas estão sendo violados, bem como o seu território e a sua cultura. “A Vale rompeu unilateralmente o acordo e está impedindo o direito de mobilização dos indígenas”.
Princípios constitucionais
A Vale afirma que não possui nenhuma mina em terras indígenas. No entanto, levantamentos antropológicos feitos por especialistas e organizações sócio-ambientais apontam a região de atuação dos Xikrins como sendo das comunidades. Hoje, as próprias tribos reconhecem parte da área explorada pela CVRD como sendo delas e por isso reivindicam a compensação financeira como direito pela exploração.
Atualmente, a Constituição brasileira determina que a exploração de recursos mineral só pode ser feita por uma empresa com a autorização prévia do Congresso Nacional e após um parecer das comunidades indígenas impactadas, mas que terão participação nos resultados da lavra.
O presidente da Funai, Mércio Pereira Gomes, diz que, de fato, essa área não foi considerada terra indígena e por isso não houve demarcação. Com a crise, ele lembra que a reivindicação dos índios de que a área é sim terra indígena retorna à discussão. De acordo com ele, se houver mesmo a comprovação de que essas terras sob exploração da CVRD forem dos índios, a exploração mineral na região se torna ilegal e inviabilizaria as atividades da empresa de mineração.
No final dos anos 60, quando houve concessões de lavra para a CVRD, grande parte da terra indígena dos Xikrin acabou não sendo demarcada por meio de um acordo político para que as atividades da mineradora não fossem prejudicadas.