De janeiro a agosto de 2006, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) registrou uma diminuição das ações dos movimentos sociais e dos números da violência no campo. Em relação ao mesmo período do ano passado, quando morreram 29 pessoas, os assassinatos foram reduzidos em 18,37%. Na avaliação de Antônio Canuto, secretário da Coordenação Nacional da CPT, uma leitura superficial dos números pode vincular a diminuição dos números da violência ao arrefecimento das ações dos movimentos sociais. Essa leitura superficial, no entanto, não se sustenta na realidade. Os dados da CPT para o mesmo período mostram por exemplo que, na região Norte, embora as ocupações de terra representem 6,69% do total ocorrido no país, a região é palco de 30,96% dos conflitos, de 66,6% dos assassinatos, abriga 31,28% das famílias expulsas e 16,14% das famílias despejadas. Para Canuto, a violência no campo está associada à tradicional truculência do latifúndio, atualizada pelo agronegócio associado aos poderes Executivo e Judiciário.
Sua análise é uma das 29 que compõem o relatório Direitos Humanos no Brasil 2006, lançado pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos nesta quinta-feira (30), em São Paulo. Em sua sétima edição, o livro aborda violações ocorridas no meio rural, urbano, no âmbito dos acordos internacionais e em relação aos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Prefaciada por Dom Pedro Casaldáliga, Bispo Emérito de São Felix do Araguaia – para quem é preciso reforçar a importância de haver no país, cada vez mais, uma consciência maior do leque dos direitos humanos, “conquistados sistematicamente dentro duma estrutura de sociedade capitalista, neoliberal, que privilegia uma minoria de pessoas e de povos e marginaliza a maioria da humanidade” – a publicação revela um quadro sistemático de violações, que pouco tem se alterado no país.
No campo, segundo o estudo da Rede Social, são dois os tipos de agentes que atuam nas violações em nome da garantia do direito à propriedade: os agentes privados e públicos. Os primeiros são os próprios donos das terras e seus subordinados – jagunços e pistoleiros. “Estes fazem ‘justiça’ pelas próprias mãos, assassinando trabalhadores ou expulsando as famílias da terra”, descreve Canuto. Os segundos são os juízes e os agentes judiciários. “Os juízes, comumente, são muito ágeis em emitir liminares de reintegração de posse de áreas ocupadas recentemente, como de áreas de ocupação antiga, ou áreas ocupadas por remanescentes de quilombos. Os oficiais de justiça e a polícia agem no cumprimento das determinações judiciais e a polícia tem intervindo em muitas ocasiões, por conta própria, e muitas vezes se faz acompanhar por jagunços e milícias particulares”, relata o membro da CPT. O número de trabalhadores rurais presos entre janeiro e agosto de 2006 subiu assustadoramente para 749, 351,2% a mais do que no mesmo período de 2005.
O crescimento da violência no campo é causado, sobretudo, pela ausência de uma política efetiva de reforma agrária no país. Segundo o economista José Juliano de Carvalho Filho, em artigo publicado no relatório, os quatro anos do governo Lula foram marcados pelo esvaziamento da proposta e da concepção da reforma agrária. “Estudos mostram que as metas do programa não foram alcançadas e que os dados de famílias assentadas foram divulgado de forma, no mínimo, enganosa”, afirma. “Os documentos informam que os assentamentos aconteceram principalmente em terras públicas e na Amazônia. A política agrária posta em prática não incomodou o latifúndio e chegou a beneficiar o agronegócio”, escreve.
Na outra ponta do processo, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra concorda. Para o MST, mesmo sem ter uma postura neoliberal como o governo Fernando Henrique, o governo Lula ficou muito aquém das expectativas. “Iniciamos o governo Lula com 120 mil famílias acampadas. Hoje são 150 mil. O governo não deve chegar a 45 mil assentadas em 4 anos. E isso está muito aquém do um milhão reivindicado pelo movimento. Outro problema foi em relação à qualidade dos assentamentos. Foi limitada em relação ao crédito e à política da agroindústria”, avalia João Paulo Rodrigues, da coordenação nacional do MST. “Infelizmente, o modelo econômico priorizou a agroexportação. Se continuar assim, a questão pode ficar séria, porque se o governo Lula não priorizar a reforma agrária, podem aumentar os conflitos, o enfrentamento e a crítica ao governo”, completa.
Ainda na zona rural, foram motivo de preocupação do relatório as atitudes violentas por parte da Polícia Militar em relação aos povos indígenas e o acobertamento e impunidade dos crimes denunciados ao Ministério Público. Entre 2005 e 2006, mais de 80 indígenas foram processados criminalmente, de maneira ilegal, em decorrência de conflitos envolvendo a luta pela terra. Além desses, somente na cadeia de Dourados, no Mato Grosso do Sul, estão presos outros 70 indígenas, condenados pelo mais variados delitos. “Tudo indica um recrudescimento do preconceito, da criminalização, do ódio étnico e do absoluto desrespeito aos direitos indígenas para que tal cenário descrito tenha se constituído, envolvendo inclusive o sistema judicial e o poder policial”, afirma o assessor político do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Paulo Maldos.
Sem avanços
Ao analisar determinadas denúncias, o relatório mostra que determinadas violações de direitos humanos seguem inalteradas no Brasil. É o caso dos cerca de 150 mil bolivianos que vivem irregularmente em São Paulo, e são submetidos a jornadas de 18 horas de trabalho por dia. O mesmo vale para a situação dos trabalhadores dos canaviais no interior do estado, cujo quadro de exploração vem sendo denunciado desde 2004. Segundo números da Delegacia Regional do Trabalho, houve 416 mortes de trabalhadores rurais do setor sucroalcooleiro no ano passado. O documento aborda ainda a relação entre racismo e violência policial no Brasil e retrata o massacre decorrente dos ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital) em maio deste ano em São Paulo.
Outro assunto é a exploração sexual no país. Analisando dados da publicação Trafficking in Persons Report/2006, do Departamento de Estado dos Estados Unidos, a antropóloga Márcia Anita Sprandel afirma em seu artigo no livro lançado nesta quinta que no Brasil mulheres e meninas são traficadas, tanto internamente quanto para a América do Sul, Caribe, Europa Ocidental, Japão, Estados Unidos e Oriente Médio, com este fim. Aproximadame
nte 70 mil brasileiros, em sua maior parte mulheres, se prostituem em países estrangeiros. O principal problema para enfrentar esta prática seria o pequeno número de condenações de traficantes de pessoas.
Para uma das organizadoras do relatório, a jornalista Maria Luisa Mendonça, este quadro de violações só pode ser enfrentado com medidas estruturais, que atuem nas causas das violações. “Para não ter violência urbana, por exemplo, é necessário investir em educação, saúde, moradia, trabalho”, explica. “O governo tem tido uma abertura maior e uma sensibilidade maior para a questão dos direitos humanos, mas as ações concretas que tem desenvolvido não têm sido suficientes para lidar com as próprias questões que o Brasil coloca como prioridade. Enquanto não houver medidas concretas, as violações vão permanecer”, conclui.
Bia Barbosa é membro da ONG Repórter Brasil.