Braço de ferro

Convênio entre Vale do Rio Doce e índios Xikrin precisa ser revisto, dizem especialistas

Justiça determina que CVRD continue pagamento mensal ao povo indígena, mas quer nova forma de gestão de recursos, hoje administrados pelas associações Xikrin. Funai, Cimi e até Vale concordam com mudança
Por Beatriz Camargo
 09/12/2006

A Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) deve voltar a pagar indenizações como compensação pelos impactos causados pelas atividades de mineração no sudeste do Pará, em área que faz divisa com as comunidades indígena xikrin do Cateté e do Djudjekô. A decisão foi proferida em liminar na segunda-feira (4) pelo juiz federal Carlos Henrique Haddad, da Subseção de Marabá (PA). A empresa havia interrompido o pagamento em outubro, depois que os índios ocuparam em manifestação as instalações da CVRD na mina de Carajás (PA), durante dois dias, reivindicando justamente o aumento do repasse. A decisão já está em vigor. O valor do convênio é de cerca de R$570 mil mensais, o mesmo que a companhia pagava até interrompê-lo. A empresa declara que vai recorrer da decisão.

Na decisão, o juiz Haddad também cobrou uma mudança no modelo de gestão dos recursos, hoje repassados diretamente às associações das duas aldeias xikrins. Nesse ponto, há concordância entre a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Vale do Rio Doce. "A própria Vale questionou o modelo de gestão e aplicação [do convênio] e a Funai concordou", diz um dos advogados da CVRD no Pará, Pedro Bentes. Ele completa que, se a companhia perder a ação definitivamente, vai pagar o repasse, mas não tem como interferir no uso do dinheiro. "Se eles [xikrins] criaram certos tipos de dependência [dos recursos], isso foi conseqüência da gestão que eles mesmos criaram."

Carlos Henrique Haddad determinou ainda que, até fevereiro de 2007, deverá ser estabelecido um novo modelo para gerir os recursos, que serão encaminhados a uma conta judicial. A Funai prevê um longo caminho de negociações com a CVRD e os Xikrin para chegar a uma nova forma. "Vamos pensar em modelos que sejam sustentáveis, que gerem benefícios para toda a comunidade e que levem a uma maior autonomia", sinaliza Michel Blanco, coordenador geral de assuntos externos da Funai.

O atual modelo de administração dos recursos do convênio foi instituído por decisão da Vale. De 1999 para 2000, ela passou a fazer o repasse diretamente aos índios. Dos quase R$ 570 mil mensais desembolsados pela empresa, R$ 243.578,29 eram destinados aos xikrins do Cateté e R$ 353.337,60 aos xikrins do Djudjekô. "A partir do momento em que começou esse programa, sem acompanhamento especializado, como havia recursos, a comunidade Xikrin começou a se sustentar só com produtos de fora, tanto na saúde como alimentação. E ela acabou desenvolvendo uma dependência grande desse dinheiro", relata o ativista do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) de Marabá, Gilmar Adílio de Oliveira.

Para o antropólogo e professor César Gordon, do Instituto Multidisciplinar da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), que realiza estudos com os Xikrin do Cateté desde 1998, a idéia de "dependência" não se aplica bem ao caso. "Se você perguntar se os Xikrin conseguiriam sobreviver sem o auxílio da CVRD, minha resposta é ‘sim'. Mas, certamente, enfrentariam dificuldades do ponto de vista material", pondera. Para ele, o que deve ser levado em conta em primeiro lugar é que os Xikrin têm necessidade e direito de assistência. "Parte da assistência é prestada pelo Estado, pelos órgãos competentes. Por outro lado, a CVRD tem obrigação e precisa cumpri-las. E as obrigações são tanto legais quanto morais."

Auxílio x Tutela
Gordon defende que os recursos possam continuar sendo depositados nas contas das associações. "Os Xikrin são capazes de gerir adequadamente os recursos. O que está acontecendo é um grande mal-entendido cultural acerca do que significa ‘adequadamente'." Ele argumenta que não se pode pensar que a economia xikrin opera com base nos mesmos princípios que a economia capitalista. Como exemplo, o antropólogo conta que nos últimos anos a comunidade incrementou vivamente as atividades rituais. "Isso é fundamental, pois o ideal da pessoa xikrin está intrinsecamente ligado aos rituais", explica.

No entanto, o professor admite que há problemas nessa gestão, como o aumento do consumo de alimentos industrializados, que têm favorecido o surgimento de doenças como diabetes e hipertensão. "A grande questão é: como se pode garantir a sustentabilidade do modo de vida xikrin na presente situação histórica? Ninguém ainda tem resposta", alerta.

Por fim, César Gordon propõe um planejamento para o convênio dos índios com a Vale e investimento na capacitação das associações. Outra idéia é instituir interlocutores independentes, tanto do lado da CVRD quando do lado xikrin, para ajudar no diálogo. "A transferência de recursos para uma conta administrada pela Funai só pode funcionar em caráter provisório, até que as negociações com a CVRD possam ser retomadas. A Funai não tem estrutura e operacionalidade para administrar um convênio com esse tamanho e complexidade. Além do mais, é um direito dos Xikrin gerenciarem os recursos que lhes são destinados", defende Gordon. "A Funai deve auxiliá-los, não tutelá-los."

Queda de braço
O Cimi de Marabá afirma que o motivo da manifestação indígena de outubro, que levou ao cancelamento do repasse, foi o descumprimento da Vale no acordo estabelecido com a comunidade Xikrin. Segundo Gilmar Oliveira, do Cimi, a empresa havia acordado em reuniões anteriores o reajuste dos valores da compensação – discussão que aconteceria até setembro de 2006. Entretanto, nenhum encontro foi marcado sobre o assunto, e a mineradora informou que não haveria mais negociações nesse sentido em 2006. Por outro lado, a CVRD justifica que não havia promessas de aumento, mas sinalização de uma mera possibilidade de repasse, que não se confirmou por questões financeiras.

A companhia vai recorrer da ação cautelar com o argumento de que não existe qualquer obrigação legal no repasse efetuado anteriormente. "A Vale voluntariamente quis assinar os termos de compromisso [do convênio com os indígenas]. Uma das cláusulas dizia que, se houvesse qualquer ato de invasão ou paralisação das ações da companhia, o pagamento seria interrompido", argumenta Pedro Bentes. "Foram eles que quebraram o acordo", completa. Por outro lado, Oliveira rebate: "a Vale diz que os Xikrin quebraram instalações e fizeram reféns mas, pelo que pudemos perceber, o protesto em Carajás foi pacífico".

Funai e Cimi alegam que a empresa utiliza terras da União e que o compromisso é parte do acordo feito antes da privatização da CVRD, em março de 1997. Entre as obrigações da concessionária (empresa q
ue compraria a CVRD estatal), havia uma cláusula sobre o dever de prestar assistência às comunidades indígenas, na forma de um convênio com a Funai. "A própria decisão judicial lembra que a exploradora tem que assumir os impactos causados às comunidades localizadas em torno de duas atividades", cita Oliveira.

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