Sobrados e mucambos: Visitas fazem apologia da escravidão

 14/12/2006

FABIANO MAISONNAVE
Enviado especial da Folha de S.Paulo à Zona da Mata Norte (PE)

No ônibus, a guia anuncia a proposta do passeio pelas fazendas açucareiras: "Hoje, vocês vão se sentir como verdadeiros senhores de engenho, verdadeiras sinhazinhas". Consideradas as principais atrações da região, as fazendas de açúcar do período colonial se destacam pelos conjuntos arquitetônicos relativamente bem conservados, mas oferecem uma visão condescendente da casa-grande.

As visitas pecam ainda pela recepção pouco criativa -ou criativa demais, como o caso do engenho que "convida" o turista a bater num escravo amarrado ao tronco.

Um passeio obrigatório é o engenho Poço Comprido, do século 18, em Vicência (81 km de Recife). Recém-restaurado, foi considerado patrimônio histórico em 1962 e é administrado por uma associação de moradores. O conjunto arquitetônico inclui uma capela e a moita, o local onde o açúcar era produzido.

Apesar das construções conservadas, não dispõe da cultura material da época –as imagens da capela, por exemplo, foram retiradas por falta de segurança. A promessa é que sejam colocadas réplicas.

A senzala foi demolida, servindo de desculpa para qualquer tentativa mais séria de mostrar como viviam os cativos ali. De vestígio, aponta a guia, só o baobá, a árvore africana de tronco grosso. Com o escravo negligenciado, a visita enfatiza a opulência da casa senhorial e a fabricação do açúcar.

Em outra importante fazenda da região, o engenho Uruaé, em Goiana (65 km de Recife), o maior problema está na forma burlesca como a escravidão é retratada. O grupo é recepcionado por um casal de funcionários negros vestidos de escravos, inclusive descalços.

A visita ao engenho iniciado no século 17 é conduzida por um deles. Ao contrário do Poço Comprido, aqui há móveis e outros objetos do período colonial, e a senzala continua de pé.

Vestido como "escravo da casa", o jovem guia mostra o "quarto da sinhazinha" e explica a genealogia da família proprietária do engenho através dos retratos na parede. Na senzala, que chegou a ter 300 escravos de uma vez, ele coloca uma peça de ferro no pescoço e anuncia, sorridente: "Quem era moreno como eu era aqui".

O mais constrangedor vem depois, do lado de fora: o guia se amarra no tronco e pede que um voluntário simule açoitá-lo. Foi difícil arranjar alguém disposto a interpretar o papel.

Eleonor Correia da Cunha Rabello, da sétima geração da família fundadora do engenho, se explica: "A gente tem mais é que se orgulhar dos nossos que vieram antes", afirmou aos visitantes, dentro da capela. "Nós ainda não fizemos nada."

De forma explícita ou não, as visitas aos engenhos transformam esses verdadeiros campos de concentração numa bufonaria, diluindo um dos piores crimes da humanidade, principal responsável pela imenso fosso social brasileiro, em um exemplo acabado do "racismo cordial" .

A escravidão é exaltada, a casa-grande, absolvida, e a cana-de-açúcar, revalorizada como "energia renovável", se torna bênção econômica do passado e do presente.

FABIANO MAISONNAVE viajou a convite do governo de Pernambuco

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