Duas horas depois do assassinato dos quatro funcionários do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), em 28 de janeiro de 2004, o então ministro chefe da Secretária Especial dos Direitos Humanos (SEDH), Nilmário Miranda, chegou ao local para acompanhar as investigações da chacina. Ele define o que aconteceu no cerrado mineiro como "uma arrogância e prepotência enormes, de uma elite atrasada e patrimonialista."
Hoje, três anos depois do crime, Nilmário, presidente do diretório regional do PT em Minas Gerais, define a demora como "absurda" e "injustificável". Para ele, o julgamento não pode ser realizado em Unaí, dado o poder político de intimidação dos acusados. "Tem que acontecer em Brasília (DF) ou Belo Horizonte. E tem que ser rápido."
Repórter Brasil – O senhor estava à frente da Secretaria Especial de Direitos Humanos à época da Chacina de Unaí e participou diretamente das investigações. Como avalia o caso no âmbito do desrespeito aos direitos humanos no Brasil?
Nilmário Miranda – Um assassinato desses não foi uma coisa comum. Foi um crime com muita crueldade e premeditação, um crime gravíssimo. Aconteceu uma violação dos Direitos Humanos porque foi um crime contra o Estado brasileiro. As vítimas são agentes do Estado que buscavam a garantia de direitos mínimos para trabalhadores, para evitar o trabalho degradante. Essas pessoas mataram os fiscais para dizer que não queriam cumprir os direitos mínimos, com a intenção de intimidar o Estado. Isso associado à premeditação e à covardia, já que as vítimas foram alvejadas sem possibilidade de defesa ou de fuga, é um crime muito grave. Por isso fui ao local junto com o Ricardo Berzoini (na época Ministro do Trabalho e Emprego) logo em seguida. Ir até lá foi uma maneira simbólica de sinalizar que considerávamos o crime uma grave violação dos Direitos Humanos. Não queríamos banalizar o grau de violência do país.
A região de Unaí já tinha esse clima de banalização da violência?
O não cumprimento dos direitos mínimos dos trabalhadores é um pensamento que vem de alguns segmentos da elite brasileira, que acham que se o trabalhador está sendo remunerado, já está bom, mesmo que não tenha acesso aos direitos mínimos. A mesma perspectiva se reproduz no trabalho escravo. As pessoas acham que o trabalhador pobre, que lida com tarefas do campo, pode ser superexplorado por não ser qualificado e por ter baixa escolaridade. E que o Estado não deve se meter nesse assunto. É isso que está por trás do crime de Unaí: arrogância e prepotência enormes, de uma elite atrasada e patrimonialista.
Três anos se passaram e os nove acusados pelo crime ainda não foram julgados. Por que a demora?
A Justiça Federal bloqueou o caso em Brasília (DF). A Polícia Federal fez um bom trabalho e as investigações foram concluídas há mais de dois anos. Ela partiu do nada, pois não havia nenhuma hipótese, nenhuma pista, apenas rumores e boatos. Fez um trabalho de escuta e descobriu os laços entre mandantes, contratantes e pistoleiros. Conseguiu provas para o processo. O Ministério Púbico também fez uma denúncia competente. Mas as pessoas poderosas, com possibilidade de contratar bons advogados, conseguiram adiar esse julgamento até agora. Um dos mandantes conseguiu ser liberado da prisão e se eleger prefeito de Unaí. O outro mandante, acusado de atrapalhar as investigações por ter coagido testemunhas, também já foi solto. O processo está pronto para ser julgado, mas está paralisado no TRF em Brasília.
O governo não pode interferir no poder judiciário, mas a sociedade pode e deve reclamar. Agora que não faço mais parte do governo federal, eu reclamo isso publicamente: é um absurdo essa demora. Injustificável. Além disso, o julgamento não pode ser realizado em Unaí, dado o poder político de intimidação dos acusados. Tem que acontecer em Brasília (DF) ou Belo Horizonte. E tem que ser rápido.
Antério Mânica foi eleito pelo PSDB com quase 73% dos votos. Isso revela um apoio da população ao prefeito?
Na época, toda a imprensa divulgou inadvertidamente que as vítimas tinham sido mortas por fiscalizarem trabalho escravo, quando o caso era de trabalho degradante. Com isso, ficou mais fácil para os partidários de Mânica rebater as críticas e manipular a opinião pública da cidade, com o argumento de que havia um exagero e que a intenção era denegrir a imagem da cidade, já que lá não há casos de trabalho escravo. Assim, a imprensa foi atacada e prevaleceu a outra versão. Foi um despreparo, que acabou beneficiando Antério Mânica. Afinal, todo trabalho escravo é degradante, mas nem todo trabalho degradante é escravo. Os fazendeiros manipularam também as opiniões sobre o papel do fiscal, como se houvesse exagero em sua ação. Mas só existe a figura do fiscal porque tem gente que não quer cumprir a lei.
Todo esse processo contribuiu para a eleição do Mânica, sob a alegação de que ele estava sendo injustiçado. Mas é provável que ele também tenha qualidades, caso contrário não teria sido eleito.
O agronegócio é apontado pelos movimentos sociais e pelo próprio Ministério Público Estadual como causador de problemas sociais e ambientais. Ao mesmo tempo, é uma das principais apostas do governo federal para fazer o país crescer. Como solucionar esse dilema?
Eu não coloco o agronegócio contra a agricultura familiar, ambos são necessários. O governo do qual participei fortaleceu enormemente a agricultura familiar, que espontaneamente, hoje, não teria esse poder. Mas, numa sociedade como a nossa, é impossível produzir matérias-primas e alimentos para o consumo interno e para exportação sem o agronegócio. O que não pode é ficar acima da lei. Por isso, precisamos de instrumentos de controle baseados nos critérios de desenvolvimento sustentável, para garantir o respeito ao trabalhador e ao ambiente. A gente vê que nos estados há muita liberalidade, um processo perigoso de descontrole de expansão da agricultura.
O senhor tem alguma oposição com relação ao modelo agrícola hoje adotado?
Eu preferia que fosse de outro jeito: que houvesse um limite no tamanho e na acumulação da propriedade. Mas, para aprovar essa modificação na Constituição, é preciso ter maioria no Congresso. E tudo depende da correlação de forças. Até hoje, nós não conseguimos aprovar nem a PEC 438 [que prevê o confisco de propriedades em que for encontrado trabalho escravo], como então votar leis que delimitem a propriedade? Muito difícil.
O cerrado tem aumentado s
ua importância na produção de commodities, como soja e algodão. Como é possível garantir a qualidade de vida aos trabalhadores rurais, mantendo a margem de lucro dos produtores?
Tem que equilibrar isso com o apoio fortíssimo na agricultura familiar. Mais de 70% dos bens produzidos no campo provém da agricultura familiar, apesar da expansão do agronegócio. Então ela deve ser fortalecida, porque emprega muito, distribui renda e cidadania. É a melhor alternativa à mecanização, que traz como conseqüência o baixo uso da mão-de-obra.
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