Refugiados Ambientais V

As alterações climáticas vão mudar o homem de lugar

O aquecimento global e as suas conseqüências prometem agravar ainda mais a situação dos refugiados ambientais. E o Brasil não deve ser exceção à essa realidade
Por André Campos
 02/01/2007
Furacão Catarina, o primeiro furacão registrado na
costa brasileira (Foto: Modis-Nasa/ GSFC)

Estudos da Universidade das Nações Unidas (UNU) indicam que o número de pessoas fugindo de condições ambientais desfavoráveis deve crescer consideravelmente nas próximas décadas devido aos efeitos das mudanças climáticas. E o Brasil, ao que tudo indica, não será uma exceção. “Com o planeta mais quente, projeções mostram que o clima fica mais variável”, revela Carlos Nobre, pesquisador do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (CPTEC-INPE). “As enchentes e as secas podem acontecer com mais freqüência.”

Má notícia para um país onde a ocupação humana é fortemente atrelada ao caminho dos rios, e onde o crescimento urbano desordenado atinge diversas áreas de mananciais. Só no estado de São Paulo, são 1,5 milhões de pessoas vivendo em locais do gênero. Segundo dados da UNU, num ranking envolvendo 97 países o Brasil tem a sétima maior média anual de pessoas atingidas por enchentes. Somente de 2000 a 2005, foram 280 mil os brasileiros desabrigados pelo fenômeno.

No segundo semestre de 2005, a mais severa seca que atingiu a Amazônia em 40 anos deu amostras de como a intensificação de eventos assim pode trazer enormes prejuízos às populações indígenas e ribeirinhas da região. Num lugar onde os rios são as principais estradas, foi a falta de água que deixou milhares de pessoas ilhadas. Segundo a Federação dos Pescadores do Estado do Amazonas (Fepesca), 25 mil pescadores estavam parados em outubro por causa da vazante dos rios. “Vamos supor que ocorram três anos seguidos de secas como essa”, imagina Marcos Pindá, presidente da Fepesca. “Isso pode levar comunidades inteiras a irem embora para outros locais, até mesmo atrás de água pra beber.”

O quanto dessa estiagem pode ser creditada às mudanças climáticas permanece sendo uma questão bastante nebulosa. No entanto, são fortes os indícios de que a própria dinâmica de exploração estabelecida em terras amazônicas pode, no futuro, provocar um impacto significativo no clima local. Simulações climáticas brasileiras e de outros países mostram que, com a Amazônia amplamente desmatada, há realmente uma tendência de diminuição das chuvas na região.

Para o pesquisador Emerson Marcelino, se o
Catarina tivesse atingido áreas mais populosas,
teríamos muitas vítimas fatais (Foto: divulgação)

E se ainda há mistérios em relação à seca da Amazônia, o que dizer a respeito do furacão Catarina? Em março de 2004, ele se tornou o primeiro furacão já registrado em águas do Atlântico Sul – e também o primeiro a avançar sobre a costa brasileira. O inesperado visitante confundiu meteorologistas e causou prejuízos em dezenas de municípios. Somente em Santa Catarina, o estado mais atingido, foram 53 mil edificações danificadas e 2,2 mil pessoas desabrigadas. Além disso, 1,1 mil foram obrigados a se deslocar da região onde vivem. Passados quase três anos, permanece a dúvida: este foi um evento isolado ou o Brasil pode vir a integrar um dia a chamada “rota dos furacões”?

“Ainda não existem evidências científicas suficientes para relacionar o furacão Catarina com as mudanças climáticas”, acredita Emerson Marcelino, doutorando do Instituto de Geografia da Unicamp (IG-Unicamp) e pesquisador do Grupo de Estudos de Desastres Naturais da Universidade Federal de Santa Catarina (GEDN – UFSC). Marcelino foi um dos três pesquisadores que estiveram presentes no olho do furacão. Há, no entanto, um estudo do Met Office – o centro de meteorologia da Grã-Bretanha – mostrando que o fenômeno ocorreu justamente em uma área onde é esperado um aumento significativo de ciclones extra-tropicais ainda para este século – o Catarina originou-se a partir de um desses ciclones.

“Se ele tivesse entrado na região da Grande Florianópolis ou Vale do Itajaí, teria sido um grande caos”, acredita Marcelino. “O número de vítimas fatais e danos seria muito elevado.” Nos últimos anos, os furacões de categoria quatro e cinco – as mais intensas na escala internacional – praticamente dobraram em número, passando de 50 eventos na década de 1970 para 90 na última década. O Catarina foi classificado como fenômeno de categoria dois.

Furacões são uma das principais causas de deslocamento massivo de pessoas no mundo. E, muitas vezes, este pode ser um caminho sem volta. Pesquisas financiadas pela ONG norte-americana Earth Policy Institute mostram que, um ano após a passagem do Katrina pelos EUA, 375 mil dos cerca de um milhão de evacuados ainda não haviam retornado às suas cidades. “Na nossa avaliação, cerca de 250 mil não devem realmente voltar”, estima Lester Brown, presidente do Instituto. As causas, segundo ele, vão desde traumas psicológicos até o alto preço da reconstrução, principalmente para aqueles cujas casas não estavam seguradas. “Ainda hoje, há grandes partes de Nova Orleans que não possuem água e eletricidade.”

Cidades alagadas
O aumento do nível dos mares, mais clara conseqüência do aquecimento do planeta, é outra realidade que não pode ser esquecida. Cenários extremos previstos pelo do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) indicam que os oceanos podem estar até 88 cm mais elevados em 2100. “Em cidades litorâneas muito baixas, como Recife, isso pode significar um avanço do mar em centenas de metros”, acredita Nobre. Outra conseqüência possível é a intrusão de águas salinas nos lençóis freáticos das cidades, algo que pode contaminar o abastecimento de água. “No horizonte de um século, se o aquecimento global continuar, certamente a costa do Brasil precisará de obras de engenharia. E essa ainda é uma questão muito distante da agenda política do país.”

Carlos Nobre, do Inpe: Brasil despreparado
para lidar com mudanças climáticas
(Foto: André Campos)

Devido à elevação do mar, já existem inclusive países ameaçados de sumirem do mapa.
É o caso de Tuvalu, arquipélago de nove ilhas e 11 mil habitantes localizado no Oceano Pacífico. Com ponto culminante de apenas cinco metros, o país já sofre com inundações e com a intrusão de água salina nos rios. A situação é tão grave que já existe inclusive um acordo com a Nova Zelândia para que o país receba os habitantes do arquipélago. Válido desde 2002, o acordo permite que 75 pessoas por ano ingressem no território vizinho.

Para Nobre, outra perspectiva das mudanças climáticas ainda não devidamente digerida é o potencial danoso que o aquecimento global pode ter sobre a agricultura brasileira. Pesquisas capitaneadas pela Embrapa Informática Agropecuária mostram que um aumento de 5,8ºC na temperatura do planeta – cenário extremo previsto pelo IPCC para 2100 – deve reduzir em 38% a área de arroz cultivável no país. Para a soja, essa redução seria de 60%, e outras culturas como o feijão e o milho também sofreriam perdas substanciais. “A preocupação com isso ainda é muito confinada à comunidade científica”, acredita. “O debate sobre quais seriam as respostas adequadas em termos de políticas agrícolas e científicas continua muito tênue.”

Seja devido à dependência econômica em relação à agricultura ou à fragilidade social, tudo indica que os países em desenvolvimento serão os mais afetados pelas mudanças climáticas. Mas, no caso brasileiro, não somos apenas as vítimas, mas também importantes responsáveis pelo aprofundamento do problema. O Brasil é hoje o 4º maior emissor de gases de efeito estufa do mundo, sendo que 75% da nossa contribuição advêm das queimadas e do desmatamento. Um indicativo de como ainda nos ocupamos muito mais com a destruição de áreas virgens do que com a recuperação daquelas já destruídas. “A cada ano nós temos menos locais na Terra onde é possível viver”, afirma Leiderman, pesquisador da Universidade de New Hampshire. “Os refugiados ambientais são um indicador dessa realidade.”

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