A emenda é legal?
A pretendida emenda ao projeto de lei da super-receita, na parte em análise, é inconstitucional. No Estado Democrático de Direito (art. 1º. da Constituição da República), a todos os poderes são dadas atribuições para a preservação da "res publica" (modelo republicano adotado constitucionalmente). Assim, a administração pública tem como dever a manutenção da legalidade por atuação "ex officio" (sem necessitar de ser provocada para tanto). O Estado de Direito pressupõe que todos busquem a preservação das disposições previstas em Lei. Assim, se há legislação prevendo as conseqüências decorrentes de não formalização da relação de emprego, somente se analisada a ocorrência desta, será possível ao fiscal a tomada das providências legais cabíveis.
Ora, é de se estranhar que o Estado, diante de uma ilegalidade constatada na situação fática, não possa tomar as medidas exigíveis, dentre elas a autuação pelo fiscal do trabalho. A análise do ato ilegal e a sua punição não é prerrogativa exclusiva do Judiciário – sendo, inclusive, que, se quedar inerte, o fiscal estaria atentando contra o princípio da legalidade inscrito no art. 37 "caput", da Constituição, com possibilidade de imposição a este de penas funcionais. É de se estranhar ainda as considerações para justificação do projeto: livre iniciativa, liberdade contratual plena e competência exclusiva da Justiça do Trabalho.
Primeiramente, a livre iniciativa não é valor absoluto, sendo que deve ser cotejada com os interesses sociais. Aliás, o "caput" do art. 170, quando fala da livre iniciativa, o faz combinando esta com o valor social do trabalho e com a sua finalidade de assegurar a todos uma existência digna. Da mesma forma, o Código Civil, citado nos considerandos, não prega a liberdade contratual plena, na medida em que o art. 421 deste Diploma legal é expresso no sentido de que "a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato". Por último, a competência da Justiça do Trabalho, já observadas as alterações no art. 114, promovida pela Emenda Constitucional no. 45, se dá de forma apenas a excluir a competência de outros ramos da Justiça em relação às matérias ali elencadas.
Não há aqui possibilidade de se falar que estas atribuições afastam as competências do Executivo de concretizar a sua atuação administrativa diante de ilegalidades perpetradas – e, como dito, a ausência de relação de emprego, se presentes todos os requisitos da Consolidação das Leis do Trabalho, é uma ilegalidade que merece do Executivo atenção redobrada. Por último, ao trazer para o trabalhador o ônus de, primeiro, ingressar na Justiça do Trabalho, para somente após poder haver a autuação, transfere-se para a parte mais fraca da relação jurídica o ônus maior, de inclusive passar a ser o agente do interesse público – que, na realidade, deve ser socorrido pelo próprio Estado, por meio de seus agentes administrativos. Urge constatar que, verificada a ilegalidade e autuada a empresa, nada obsta que esta se insurja contra a decisão do fiscal: 1º.) na próprio esfera administrativa, 2º.) na esfera judicial, que não fica suprimida.
Se aprovada, quais serão as conseqüências desta emenda?
As conseqüências desta disposição inconstitucional serão: a) quebra do pilar da atual política do combate ao trabalho escravo, já que o fiscal do trabalho não poderá tomar qualquer medida imediata contra a ausência de relação de emprego patente nestas hipóteses;
b) imposição de um ônus excessivo ao trabalhador, que não poderá mais contar com a diligência do Estado diante de abusos de poder e de ilegalidades flagrantes;
c) diminuição da receita do Estado, já que haverá maior burocracia para a constituição dos créditos fiscais de toda natureza (decorrente de penalidades administrativas por quebra de determinações trabalhistas e os provenientes de consectários referentes ao não recolhimento previdenciário e de outras verbas de natureza tributária). Aqui colhe registrar que, não havendo norma sobre a suspensão da possibilidade de cobrança enquanto não for ajuizada a ação pelo empregado, há o temor inclusive da decadência do direito do Estado de constituir o crédito fiscal . E mais: não havendo propositura da ação, ocorrerá a inconstitucional extinção do crédito fiscal por inércia estatal;
d) abertura de um precedente que poderá inviabilizar, no futuro, a atuação fiscal do Estado, já que se trata de ruptura no dever funcional dos agentes públicos de observância da legalidade estrita.
Marcus Orione é juiz federal e chefe do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
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