Cana pode avançar sem desmatamento, mas ameaça ao cerrado preocupa

 08/03/2007

País tem milhões de hectares de pasto degradado, permitindo plantio sem devastação. Falta de cumprimento da lei pode trazer perigo para abastecimento de água no Brasil.

Reinaldo José Lopes Do G1, em São Paulo

À primeira vista, os planos de transformar o Brasil num exportador mundial de álcool não significam uma ameaça ambiental — desde que a expansão seja feita de forma planejada. Há muito espaço para o crescimento das lavouras de cana em áreas que já foram convertidas para a agricultura, mas hoje estão subaproveitadas.

O perigo, porém, é um provável avanço da cultura para o cerrado: a cana exige uso pesado de agrotóxicos, fator que poderia colocar em perigo o suprimento de água de boa parte do Brasil, que se origina nas zonas de cerrado. A grande questão é saber se o país está preparado para regular o aumento da produção de etanol de forma a evitar esse perigo.

Energia limpa?
O atrativo do álcool (ou etanol, como é conhecido entre os químicos) que anda mais em evidência é sua aparente contribuição neutra para o aquecimento global. Ao contrário dos combustíveis fósseis, como a gasolina e os demais derivados do petróleo, o etanol é produzido a partir de plantas. Quando queimado, ele também libera dióxido de carbono, o principal gás causador do efeito estufa.

No entanto, as plantas absorvem o dióxido de carbono durante seu crescimento. Assim, o gás emitido pela queima de uma safra de álcool seria reabsorvido pela safra seguinte de cana – ou seja, as emissões líquidas ficariam no zero a zero, sem agravar o aquecimento global. O mesmo valeria, por exemplo, para o biodiesel produzido a partir de óleos vegetais.

Esse cenário otimista é complicado pelo fato de que a expansão do plantio de biocombustíveis pode se dar sobre áreas de floresta nativa, por exemplo. Tais áreas são imensos reservatórios de carbono "congelado" na forma de massa vegetal. O desmatamento devolveria todo esse carbono para a atmosfera — assim, a suposta solução ambientalmente correta poderia, na verdade, agravar as emissões de gases do efeito estufa.

Para o físico José Goldemberg, pesquisador do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP e um dos principais defensores do etanol como elemento mitigador do aquecimento global, a cultura de cana não representa uma ameaça nesse sentido. "A cana não cresce na Amazônia, por exemplo. E, dentro do próprio estado de São Paulo, temos milhões de hectares de pastagens degradadas que poderiam ser aproveitados para expandir o cultivo [sem desmatar mais]", argumenta ele. Como a atividade econômica nessas áreas de pastagem em mau estado é quase nula, seria relativamente simples convertê-las para o plantio de biocombustíveis.

Goldemberg calcula que, se a área de cana-de-açúcar no planeta crescesse para 50 milhões de hectares – um aumento de 30 milhões de hectares em relação ao montante atual – seria possível substituir 10% da gasolina hoje consumida no mundo por etanol.

Problema regulatório
Paulo Gustavo do Prado Pereira, diretor de política ambiental da ONG de pesquisa Conservação Internacional, diz que, em princípio, o raciocínio de Goldemberg está correto. Segundo ele, os dados mais recentes, datados de 2002, indicam que só o Brasil possui 227 milhões de hectares de pastagens. "As áreas de pastagens degradadas ainda não estão quantificadas com exatidão, mas certamente representam um espaço amplo para esse crescimento", afirma.

A questão, segundo ele, é garantir que a produção em massa de um combustível "limpo" não vire um problema ambiental de outra natureza. Ele lembra que, mesmo no caso paulista, a lavoura de cana muitas vezes avança para as áreas de reserva legal — os 20% de toda propriedade agrícola que, no estado, deveriam ficar intocados, com vegetação natural — e para as áreas de proteção permanente, como as de mananciais. "Você tem a cana, muitas vezes, chegando até a beira dos rios", afirma.

Dadas as condições ecológicas da Amazônia, que não são propícias para a lavoura de cana, Pereira vê o cerrado como o grande alvo para a expansão canavieira, como aconteceu com outros ramos do agronegócio, como a soja. A primeira preocupação é com os mesmos problemas regulatórios que afetam as atuais áreas de plantio de cana.

A lavoura exige grande emprego de agrotóxicos e, tradicionalmente, o uso do fogo para a colheita. Assim, há o risco de contaminação do suprimento de água – e quase todas as bacias hidrográficas do Brasil estão em contato com as nascentes e rios do cerrado – e o de incêndios descontrolados, uma vez que a vegetação do cerrado passa anualmente por uma estação seca bem marcada.

"Ninguém é contra o etanol, mas é preciso pensar muito na pressão que isso vai causar sobre os recursos naturais", argumenta Pereira. A começar pela biodiversidade: o cerrado é considerado um dos "hotspots", as regiões do mundo que combinam alto número de espécies endêmicas (ou seja, que só existem nesses lugares) e alto grau de ameaça. No caso do cerrado, só 21% da vegetação original continua existindo. Coincidência ou não, um dos "hotspots" em pior estado no planeta é a mata atlântica, o ecossistema onde a cana se instalou desde o começo da colonização do país.

"Seria bom que o mercado internacional exigisse responsabilidade nessa expansão do etanol", afirma Pereira.

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