No dia 9 de novembro de 2003, durante uma tentativa de fuga em massa de adolescente da unidade III do complexo da Vila Maria da então Febem (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor), hoje Fundação Casa, o adolescente Lazinho Brambilla da Silva, de 16 anos, foi assassinado com cinco tiros. Os disparos saíram de uma arma de calibre 38, e as suspeitas apontaram para o diretor da unidade. A Corregedoria da Febem abriu uma sindicância administrativa, arquivada por inexistência de falta funcional. O mesmo aconteceu com o inquérito policial nº. 052.03.004777-5, que tramitou perante o 81º Distrito Policial e a 1ª Vara do Júri da Capital: por falta de provas de determinassem a autoria do crime, foi arquivado no dia 03 de março de 2005. O inquérito chegou a ser desarquivado, mas nenhuma prova foi produzida antes de seu novo arquivamento.
“O inquérito policial era o único procedimento adequado para responder às violações de direitos ocorridas neste caso”, explica a advogada Daniela Ikawa, da Conectas. Na última quinta-feira (1), Conectas e AMAR (Associação de Mães e Amigos da Criança e do Adolescente em Risco) participaram de uma audiência pública em Washington, na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA (Organização dos Estados Americanos) que discutiu o caso Lazinho. As organizações levaram o assassinato do adolescente até a Comissão sob a alegação de que há desinteresse do Estado Brasileiro em cumprir com a sua obrigação de realizar as investigações necessárias para averiguar as condições da morte do jovem.
“O diretor da unidade se contradisse em relação a seu primeiro depoimento, quando afirmou que não possuía nenhuma arma. Depois verificou-se que ele havia recadastrado seu revólver calibre 38 junto ao governo”, afirmou Daniela durante a audiência. “O laudo balístico também mostrou que Lazinho foi morto por um revólver 38, mas não se expediu um mandado de busca e apreensão da arma do diretor para fazer a comparação. As mães que estavam em visita na unidade do momento da morte de Lazinho também não foram ouvidas como testemunhas”, acrescentou a advogada.
A audiência realizada em Washington tinha o objetivo de colher informações para saber se o sistema interamericano aceitaria ou não o caso, ou seja, para comprovar se os recursos internos para se chegar a uma conclusão do caso haviam sido realmente encerrados. O sistema interamericano de direitos humanos serve como uma instância internacional que pode ser acionada em casos de violações nas quais restar comprovada a ineficácia do sistema nacional para resolver a questão. Apesar do crime ter acontecido sob a jurisdição da Justiça de São Paulo, é o Estado brasileiro que responde internacionalmente por violações de direitos humanos não responsabilizadas internamente.
Federalização
Paira sobre a morte de Lazinho Brambilla da Silva um pedido no Ministério Público Federal de deslocamento de competência do caso, ou seja, de transferência do caso para a Justiça Federal. A chamada “federalização” pode ser solicitada ao Ministério Público quando houver negligência da justiça estadual para tratar de casos de grave violação de direitos humanos. Na audiência da Comissão Interamericana, o Estado brasileiro utilizou a possibilidade de federalização do caso de Lazinho – ainda não confirmada – como argumento de que os recursos internos da justiça brasileira ainda não foram esgotados e que, portanto, o caso não ainda deve ser tratado internacionalmente. Esta foi a primeira vez que a Comissão discutiu a federalização das graves violações de direitos humanos no Brasil.
Na opinião de Cristiano Figueiroa Sávio, do Ministério das Relações Exteriores, um dos representantes do Estado na audiência, a federalização dos crimes de direitos humanos tem justamente o sentido de garantir o cumprimento das obrigações internacionais dos países. “A federalização é uma vitória para o Estado brasileiro, para retomar um processo em que haja ameaças ao cumprimento das obrigações internacionais do país diante de graves violações”, afirmou. “Caso a federalização do caso de Lazinho seja aceita, reabre-se a discussão para as questões de mérito e as investigações em outro âmbito”.
Na avaliação das entidades que levaram o caso à CIDH, a possível federalização do caso não é uma medida judicial que funciona como um recurso, a ponto de barrar uma constatação de esgotamento dos recursos internos para se levar um caso ao sistema interamericano. “O Procurador Geral da República não tem obrigação de pedir a federalização de um caso. Se não julgar necessário, não faz isso. As vítimas também não têm acesso ao recurso. É competência exclusiva do Procurador, que ainda precisa ser aprovada pelo STJ [Superior Tribunal de Justiça]. Até hoje houve somente um pedido de deslocamento de competência, no caso do assassinato da irmã Dorothy Stang, que foi negado”, explica Daniela Ikawa.
Os representantes do Estado brasileiro reconheceram a limitação da federalização, mas reafirmaram seu papel como instrumento de recurso. “O incidente da federalização é justamente para garantir os direitos humanos. É sim um meio eficaz para isso. A limitação de seu acesso é uma forma de não banalizar o instrumento”, acredita Ana Cláudia Peixoto, da Advocacia Geral da União (AGU).
“Se o pedido de federalização do caso Lazinho não for aceito e a Comissão não admitir o caso, a família do jovem fica sem respostas e os responsáveis não são investigados. Além disso, não se analisa se a investigação feita foi correta. Ou seja,m não se responsabiliza ninguém pelas falhas no devido processo legal, nem se indeniza a família. A mensagem que se passa é a de que é possível fazer uma investigação pró-forma e depois, com a possibilidade de federalização, alegar que não houve esgotamento de recursos para não se levar um caso à comissão interamericana”, critica a advogada da Conectas.
“Ao fazer isso, o Estado brasileiro não reconhece sua responsabilidade pela morte de Lazinho. O papel do Estado na instância internacional não é contestar tudo. O Brasil diz que quer colaborar com a Comissão, mas sempre usa de subterfúgios para prorrogar os processos. Alegar que a federalização é um recurso é distorcê-la de forma que nenhum processo chegue à Comissão. Se o pedido já tivesse sido aceito e a investigação, reaberta, aí sim havia uma situação de não esgotamento de recursos
em curso. Mas não é o caso”, completa Eloísa Machado, também da Conectas.
A família Brambilla da Silva aguarda agora a decisão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que deve sair nas próximas semanas. Para a mãe Tereza de Jesus Brambilla, o sofrimento pela morte de seu filho é ainda maior devido à impunidade promovida pelo Estado. Ela afirmou que o novo arquivamento do caso pela polícia paulista simbolizou uma nova morte de Lazinho. “Estão enterrando ele pela segunda vez”, disse.
Bia Barbosa é membro da ONG Repórter Brasil.