Não é nova a tese de que uma boa revisão nas hidrelétricas com mais de 20 anos poderia gerar grande parte da demanda estimada de energia elétrica para o futuro próximo. Ainda em 2004, o professor de pós-graduação em Energia do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP, Célio Bermann, coordenou um extenso estudo sobre a chamada repotenciação de usinas hidrelétricas e sugeriu que, sem a construção de uma única nova unidade, o estoque atual de energia poderia ter um acréscimo de 8 mil megawatts, se 70 das 157 hidrelétricas de grande porte do país fossem repotenciadas.
Com o lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o governo passou a insistir na urgência de possibilitar a oferta de 12,3 mil megawatts adicionais à eletricidade gerada atualmente através de novas grandes obras, como as hidrelétricas do rio Madeira (RO) e Belo Monte (PA), e a usina atômica de Angra 3. A que custo?, questiona Bermann.
Segundo o pesquisador, as usinas do Madeira são um exemplo do risco econômico em que se transformaram as hidrelétricas na Amazônia. Além dos mais de 25 bilhões previstos na construção das usinas, há que se adicionar ainda o custo das linhas de transmissão que levariam a energia do coração da floresta ao consumidor do Centro-sul. Além do custo do manejo socioambiental do projeto, já que o desastre ambiental e o genocídio social causados por usinas como Samuel (RO), Balbina (AM) e Tucuruí (PA) não são mais pensáveis. Evitar, atender e gerenciar passivos socioambientais é um elemento novo e caro neste negócio.
Por outro lado, segundo Bermann não só é menos impactante e muito mais barato trocar turbinas e geradores de velhas usinas, como também o retorno do investimento na repotenciação se dá em no máximo cinco anos (sendo que este prazo, para novas hidrelétricas, é de 20 anos).
Apesar de ter manifestado algum interesse no tema em 2004 e durante a elaboração do Plano de Governo do PT na campanha de 2006, o governo nunca incluiu a repotenciação como uma opção real no seu projeto energético. Internamente, se comenta, à boca pequena, que esta alternativa foi folclorizada e jamais considerada seriamente.
Agora, se a repotenciação for efetivamente incorporada nos planos de geração de energia do país, há pressa. Ainda existe uma folga, uma sobra de energia que permitiria um processo planejado de retirada do mercado de certo número de usinas para que sejam realizados os trabalhos de repotenciação. Mas o tempo está se esgotando, alerta Bermann. Leia a seguir os principais trechos de sua entrevista à Carta Maior.
Repotenciação
Quando fazemos o trabalho de repotenciação de uma hidrelétrica,
avaliamos o quanto uma usina gera em função da disponibilidade hídrica e
de suas condições de operação, e sugerimos modificações no isolamento dos diversos componentes, ou a troca dos equipamentos.
Turbinas, gerador, rotor, são equipamentos que podem ser substituídos, e
o custo é substancialmente inferior ao da construção de uma nova usina
(que, além destes equipamentos, tem que incorporar também os custos com as obras civis. O que é relevante entender: a usina mais antiga não está quebrada nem precisa ser desativada. Ela simplesmente perdeu eficiência na geração de energia elétrica, por uma série de razões. Com uma repotenciação pesada, onde se troca o conjunto de turbinas e geradores, é possível teóricamente alcançar um ganho de cerca de 23% na sua capacidade de geração.
O nosso estudo de avaliação do potencial de repotenciação é uma
avaliação teórica. Ele precisa ser detalhado com base em evidencias
concretas, em estudos caso a caso. No Brasil, já tivemos vários trabalhos neste sentido, cujos resultados foram utilizados como base da avaliação do potencial de repotencição das usinas hidrelétricas com mais de 20 anos – cerca de 70 estão atualmente nessa situação. Em 20 anos, a perda mínima da capacidade geradora de uma hidrelétrica é de 3% em função da deterioração do equipamento, mas pode chegar a 25%.
Se considerada a repotenciação das 70 usinas mencionadas, temos a possibilidade concreta de um acréscimo de 8 mil megawatts à geração atual de energia. Isso corresponderia a um aumento de 8% da atual capacidade instalada de energia, sem a construção de uma nova usina.
Um grande obstáculo à repotenciação é que a legislação atual não
permite que uma usina possa paralisar a produção de energia. As usinas
são obrigadas pela legislação a garantir energia em conformidade ao
montante estabelecido no contrato de concessão. Uma usina que, por
alguma razão, para de entregar para o sistema a quantidade de
energia assegurada é penalizada. Isso desestimula as empresas geradoras a fazer a repotenciação. Por isso, é necessário modificar a legislação, criando normas que permitam este processo
Planejamento necessário
A repotenciação tem que ser planejada. Nós temos hoje, não por muito tempo, mas temos ainda, uma folga no sistema de geração elétrica, cuja capacidade é maior do que a demanda. O que temos concretamente é que várias termoelétricas a gás não estão despachando para o sistema nacional. Aqui em São Paulo, por exemplo, temos uma termoelétrica da Petrobrás de grande porte, a Piratininga, parada. Não está vendendo energia porque não está precisando. Mas tem várias outras paradas. No Rio de Janeiro são duas. Isso mostra que temos uma margem de manobra, uma folga, que pode não existir daqui a dois anos. Então, o momento para fazer a repotenciação é agora. É uma intervenção que não pode acontecer no limite da demanda.
Essa retirada de usinas para o trabalho de repotenciação tem
que ser planejada. Hoje temos 157 usinas hidrelétricas gerando energia.
Destas, cerca de 70 tem mais de 20 anos. 87 vão continuar operando
normalmente. Esse planejamento deve envolver diversos órgãos que atuam no Sistema Elétrico Nacional, como o ONS (Operador Nacional do Sistema), a Aneel e a EPE (Empresa de Pesquisa Energética), levando em
consideração que os trabalhos de repotenciação duram em média quatro a
seis meses. Trata-se de um período de tempo que a usina ficará indisponível, e sem planejamento, o sistema pode ficar comprometido.
PAC, usinas do Madeira, política e economia
Por que o governo não adotou a repotenciação como alternativa de geração energética? Essa pergunta deve ser feita ao governo. Mas eu
tenho uma hipótese. A questão não é técnica, é política. É corriqueiro dizermos que prefeito algum gosta de investir em saneamento, porque a canalização do esgoto está escondida debaixo da terra, ninguém vê. Essa é uma cultura do país, o governante politicamente busca obras com grande visibilidade, novas obras, não melhoria daquelas que já existem.
Mas diante das demandas do PAC, e do ponto de vista econômico, a repotenciação é de fato uma opção. Por exemplo: o tempo de retorno de investimento na repotenciação é de cinco anos, quando o tempo de retorno de uma usina nova é de no mínimo 20. Na repotenciação, além do custo de investimento menor, o tempo de amortização também é menor. Sob o ponto de vista da lógica econômico-financeira, a repotenciação é uma bela saída para reduzir a demanda por novas usinas de geração de energia. Ela não vai resolver, mas a gente está falando de 8 mil megawatts numa demanda de 12,3 mil MW previstos no PAC.
A outra alternativa, para atingir a meta do PAC, seria reduzir a perda técnica da transmissão. A perda hoje no sistema elétrico, desde a geração até a tomada do consumidor final, é de 15%. Se a gente reduzisse isso em 5%, já chegaríamos às metas do PAC.
Mas sobre as hidrelétricas, falemos do Madeira. O projeto está parado
não apenas por uma questão ambiental. É uma obra cara, e Furnas, que é
uma empresa pública, não tem capacidade de aportar os recursos. A
empresa Norberto Odebrecht que faz parte do consórcio, não deverá
aportar mais do que 10% do total do investimento necessário previsto. A
experiência recente da Parceria Público-Privada no nosso país tem
demonstrado que os investimentos dependem, fundamentalmente, do aporte de recursos públicos. Numa situação destas, outros investidores privados ficam receosos. Porque além do custo da usina existem as dificuldades de instalação das linhas de transmissão. O custo de trazer a energia da região amazônica para o consumidor do Centro-sul é muito superior. Os custos das linhas de transmissão precisam ser adicionados ao da geração da energia elétrica. E também os impactos ambientais da construção destas linhas.
Se acrescermos ao valor da construção de uma hidrelétrica todos os
custos de um adequado gerenciamento sócio-ambiental – cuidado com os reservatórios para que não ocorra assoreamento, as indenizações às populações deslocadas, etc –, se começarmos a pensar nisso, o custo da energia, que já é alto, vai ser maior ainda. Na minha opinião, está se criando uma situação de histeria em torno das hidrelétricas, dizendo que é a única forma de geração de energia, senão teremos que apelar para a nuclear ou o carvão, o que já coloca a opinião publica numa situação de desconforto muito grande, sem que seja resolvida a questão ambiental. Não só o governo, mas a sociedade como um todo, terá que enfrentar o fato de que a hidroeletricidade da forma que nós a vivenciamos até agora, não existe mais. Não existe mais a energia elétrica a partir da água que seja barata e limpa. O custo da hidroeletricidade poderá ser comparada em breve ao da energia elétrica obtida a partir da queima de combustível fóssil ou termoelétrica, em função da obrigatoriedade de um correto manejo sócio-ambiental.
A questão da energia barata é cada vez mais inviável. Por isso temos que pensar de forma mais efetiva em melhoria de eficiência e readequar o padrão de consumo. O governo precisa parar com essa histeria e voltar sua atenção para a necessidade de colocar para a sociedade este debate. A sociedade, quanto melhor informada estiver dos problemas e dos
procedimentos necessários para reduzí-los, poderá participar de forma mais ativa na superação destes problemas.