Desde o dia 14 de maio está em mãos da Casa Civil o anteprojeto de lei que pretende encerrar definitivamente uma antiga pendência jurídica brasileira: a regulamentação do direito de greve dos servidores públicos. Elaborado pela Advocacia Geral da União (AGU), a proposta parte do pressuposto de que o serviço público é essencial à sociedade, não podendo, portanto, ser interrompido totalmente. Nesse contexto, a lei lista cerca de 30 atividades consideradas imprescindíveis, como tratamento e abastecimento de água, segurança pública e controle aéreo civil. Nesses casos, ao menos 40% dos servidores devem continuar trabalhando mesmo durante as greves.
Além disso, de acordo com a proposta, qualquer paralisação no setor público só poderia ser levada a cabo com aprovação de pelo menos 2/3 da categoria. O anteprojeto também prevê regras de reposição dos dias parados, assim como desconto salarial e multas quando a greve for declarada ilegal pela Justiça.
Em sua primeira entrevista coletiva do 2º mandato, realizada dia 15 deste mês, o presidente Lula já havia abordado o assunto, reiterando seu compromisso com a regulamentação. "Nós vamos fazer um projeto para mandar ao Congresso Nacional. E vamos discuti-lo com as centrais sindicais, porque no nosso governo as coisas são discutidas com quem de direito", disse o presidente. "O que não é possível, e nenhum brasileiro pode aceitar, é alguém fazer 90 dias de greve e receber os dias parados, porque, aí, deixa de ser greve e passa a ser férias", acrescentou.
A Constituição estabelece, em seu 37º artigo, que o direito de greve do servidor público "será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica". Quase 20 anos depois, no entanto, tal legislação ainda não foi aprovada. A volta ao tema ocorre justamente no momento em que a greve do Ibama, órgão responsável pelo licenciamento ambiental de grandes obras de infra-estrutura, é apontada por segmentos do executivo como prejudicial ao andamento do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). A recente paralisação dos controladores de vôo, em 30 de março, um dos pontos mais críticos da crise aérea verificada nos últimos meses, também trouxe desgastes ao governo.
Tanto a comparação presidencial entre grevistas e pessoas em férias, como o anteprojeto elaborado pela AGU, foram reprovados por lideranças sindicais de diversos segmentos. "Não dá para aceitar isso. Eu, por exemplo, sou professor e reponho as aulas perdidas", afirma o secretário de Relações Internacionais e ex-presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), João Felício, que qualifica como "absurdo" o anteprojeto apresentado pelo governo. Para ele, na prática, a proposta inviabiliza a paralisação dos trabalhadores. "Uma categoria de 200 mil trabalhadores, por exemplo, precisaria de quase 140 mil pessoas para entrar em greve. Isso é o mesmo que inviabilizar o exercício desse direito."
Além disso, segundo João Felício, a CUT possui posição clara de não discutir leis restritivas à greve enquanto não for aprovada uma antiga reivindicação dos servidores públicos: o direito à negociação coletiva, regulamentação já existente em relação aos profissionais fora do setor público. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que regulamenta as relações entre patrões e empregados no âmbito privado, estabelece que empresas, profissionais e sindicatos, quando provocados, não podem recusar-se à negociação conjunta das condições de trabalho e das relações entre as partes.
A negociação coletiva é a ponte para o estabelecimento do contrato coletivo, instrumento normativo previsto pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) que resulta da negociação ampla entre empregadores e trabalhadores. Ele pode dispor, entre outros temas, sobre salário, jornada de trabalho, repouso remunerado e férias. Na Itália por exemplo, não há lei de salário mínimo. Os pisos salariais das diversas categorias são fixados por contratos coletivos.
O Brasil é um dos países que ainda não ratificaram a Convenção 151 da OIT, de 1978, que versa justamente sobre o direito à negociação coletiva dos servidores públicos. Na América do Sul, apenas Argentina, Chile, Colômbia, Peru, Suriname e Uruguai são signatários da Convenção.
"A maioria dos conflitos e greves ocorre hoje porque não há negociação coletiva no setor público", argumenta João Felício. A preocupação em relação ao anteprojeto do governo fez a CUT inclusive incluir a defesa do direito de greve na pauta de manifestação realizada quarta-feira (23), em São Paulo, na Avenida Paulista. Entre outras reivindicações, o protesto pediu a manutenção do veto contra a Emenda 3 e a derrubada do projeto de lei PLP 001/07, que estabelece para a União um limite de despesas com contratação de pessoal, além do que já foi determinado pela Lei de Responsabilidade Fiscail.
Negociação
Ronaldo Vieira Júnior, consultor-geral da AGU, afirma que no Brasil é impossível estabelecer-se a negociação coletiva nos termos desejados pelos sindicatos. "De acordo com a Constituição brasileira, o aumento salarial de servidores públicos deve ser tratado por projeto de lei de autoria exclusiva do presidente da república, e deve respeitar as dotações orçamentárias do governo", atesta.
Em relação às críticas quanto à impossibilidade de diversas categorias reunirem ao menos 2/3 dos servidores em assembléia, Vieira Júnior defende que a evolução das tecnologias de comunicação pode resolver esse impasse. "A consulta via internet é um mecanismo poderosíssimo. Há de se pensar em formas de aplicação desse meio para decidir sobre uma greve."
Antes de finalizar a formulação do projeto, que o governo pretende enviar ao Congresso até o final de julho, a Casa Civil pretende discuti-lo com os ministérios da Justiça, Planejamento e Trabalho e Emprego. E, segundo o próprio presidente Lula, ao mesmo tempo em que deseja aprovar o direito de greve, o governo pretende "regulamentar também o contrato coletivo de trabalho para garantir ao servidor público que ele seja tratado democraticamente como qualquer servidor é tratado em qualquer parte do mundo."
O interesse do executivo nessa pauta, no entanto, é questionado por Josemilton Costa, secretário-geral da Confederação Nacional dos Trabalhadores no Serviço Público Federal (Condsef). "Em março teve início um Grupo de Trabalho envolvendo o Minist&eacut
e;rio do Planejamento justamente para discutir isso, além de outros temas de interesse do sindicalismo", revela. "Mas as negociações estão paradas. O governo dialoga muito, mas negocia pouco."
Na última quarta-feira (23), a Condsef reuniu-se com representantes da Frente Parlamentar em Defesa do Serviço Público, pedindo intervenção nos debates sobre a regulamentação das greves. Estava prevista para sexta-feira (25) uma reunião sobre o tema entre sindicalistas e o Ministério do Planejamento, mas ela foi remarcada para a próxima quinta-feira (31).
Devido à lacuna legal, o Supremo Tribunal Federal (STF) decide atualmente sobre um Mandato de Injunção que pede justamente a regulamentação das greves entre servidores públicos. Dos ministros que já votaram, a maioria decidiu pela imediata aplicação ao funcionalismo, enquanto não houver lei específica, das regras que valem para a greve na iniciativa privada, regulamentada pela lei 7.7783/89. Na última quinta-feira (24), com o pedido de vista do ministro Ricardo Lewandowski, o julgamento foi adiado.
Na semana em que o anteprojeto foi enviado à Casa Civil, o ministro do Trabalho e Emprego (MTE), Carlos Lupi, afirmou ser de cautela sua posição em relação à regulamentação do tema. Repórter Brasil procurou o MTE para obter mais esclarecimentos sobre o posicionamento do órgão em relação ao projeto, mas o ministério informou, através de sua assessoria de imprensa, que não se pronunciará no momento sobre a questão.