Recurso de Apelação do MPF

 05/11/2007

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ FEDERAL DA 1ª VARA DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DO TOCANTINS

PRTO nº /2007
Autos nº : 2005.43.00.001350-5
Autor : Ministério Público Federal
Réus : Joaquim de Faria Daflon e outros
O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelo Procurador da República signatário, nos autos do processo em epígrafe, vem perante Vossa Excelência apresentar as RAZÕES do recurso de apelação interposto da sentença, requerendo sejam juntadas aos autos para que delas conheça o E. Tribunal Regional Federal da Primeira Região.
Pede deferimento.
Palmas, 27 de agosto de 2007.

ADRIAN PEREIRA ZIEMBA
Procurador da República

EGRÉGIO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA PRIMEIRA REGIÃO,

Razões do recurso de apelação

Origem: 1ª Vara da Seção Judiciária do Estado do Tocantins
Autos nº 2005.43.00.001350-5
Ação Penal
Recorrente: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Recorridos: JOAQUIM DE FARIA DAFLON E OUTROS

Eminente Desembargador(a) Federal Relator(a),

RELATÓRIO

O Ministério Público Federal ofereceu denúncia contra Joaquim de Faria Daflon, Joaquim Faria Daflon Filho, Geseimar da Silva Costa e José Luiz Mateus dos Santos, imputando-lhes a prática dos delitos tipificados nos artigos 149 e 203 do Código Penal, ambos combinados com os artigos 29 e 69, também do Código Penal.

Em que pese a existência de suporte probatório para sentença condenatória o juízo a quo julgou improcedente a denúncia e absolveu os réus Joaquim de Faria Daflon, Joaquim Faria Daflon Filho, Geseimar da Silva Costa e José Luiz Mateus dos Santos, fundando-se, para tanto, no art. 386, III, do Código de Processo Penal.

A sentença ora recorrida restou vazada nestes termos:

"(…) Feitas essas considerações, com olho atento a prova dos autos, analiso doravante se os trabalhadores contratados pelos acusados para trabalhar na Fazenda Floresta foram reduzidos a condição análoga à de escravo.

A denúncia aponta as seguintes situações configuradoras de trabalho escravo na Fazenda Floresta em Ananás-TO: violência contra a dignidade humana; trabalhadores laborando praticamente sem receber salários; trabalhadores coagidos – a comprar mercadorias nas cantinas existentes na fazenda; total informalidade dos contratos de trabalho; desatendimento a diversos direitos básicos do trabalhador.

As fotografias de fls. 141/150, não se pode negar, registram que os trabalhadores contratados foram alojados na Fazenda Floresta em barracos de chão batido, cobertos de lona preta e palhas de palmeiras sem paredes laterais, e sem condições de higiene. Alimentavam-se e faziam as necessidades fisiológicas ao relento. Todos esses fatos foram confirmados nos depoimentos de fls. 546/548, 549, 550, 578/579, 602 e 640.

Segundo o laudo de fls. 469/472 – em que pese ter sido produzido pelos réus, a água que bebiam os trabalhadores era potável, devendo prevalecer tal conclusão, à falta de prova em contrário ou de contestação do Parquet Federal quanto ao seu resultado.

A retenção de salários dos trabalhadores não restou devidamente comprovada.

Não obstante a testemunha Iredes José dos Santos (fls. 546/548), Auditor Fiscal do Trabalho, apontar que a fiscalização foi realizada em junho de 2003 e os trabalhadores não recebiam salário desde fevereiro de 2003, as provas dos autos indicam que a contratação dos trabalhadores foi temporária, por 60 (sessenta) dias, em regime de empreitada, para roço de 200 (duzentos) alqueires de pastagens, tendo os trabalhadores recebido adiantamento de numerário, e o acerto se daria no final.

A testemunha de acusação Helio Natan Costa de Queiroz (fI. 640), também Auditor Fiscal do Trabalho, certifica o regime de empreitada da contratação e que os trabalhadores tinham recebido adiantamento.
A testemunha Achilles de Abreu Vieira (fls. 61

A testemunha Achilles de Abreu Vieira (fls. 619/625) afirma que presenciou a contratação dos trabalhadores e que cada ´peão´ recebia p game (adiantamento) enquanto assinava o contrato. Uns ganhavam $100,00 e outros R$120,00, para fazerem compras no supermercado para a família, só então iam para o serviço de roço na fazenda.

A testemunha Juvenal Klayber Coelho (fls. 585/588) é firme em dizer que "os trabalhadores que prestavam serviço na Fazenda Floresta tinham a CTPS assinada; (…) a assinatura dizia respeito a empreitada, de no máximo 60 dias". Continua: "os trabalhadores, em razão dos aspectos da região, prestavam serviço na fazenda no final de março e {a} final de junho, podendo o serviço ser prorrogado; Que de outubro até março normalmente não há ´roços´ na fazenda, em razão de ser época das chuvas, ficando alagados os locais".

O fator climático citado pela testemunha (alagamento das terras no período de outubro a março) permite concluir que a contratação, de fato, foi temporária, com prazo de 60 (sessenta) dias.

Havendo antecipação de numerário, como de fato houve, e sendo a contratação temporária (60 dias), não se pode falar em retenção de salários como meio de coagir os trabalhadores rurais a permanecer na fazenda.

Havia, é certo, na Fazenda Floresta comércio/cantina, no qual os trabalhadores adquiriam mercadorias (fls. 158/188).

Isso não significa, por si só, que os acusados mantinham o armazém para explorar os trabalhadores, vendendo-lhes as mercadorias sempre por valores superiores ao da praça.

In casu, observa-se que os preços dos produtos vendidos aos trabalhadores da Fazenda Floresta eram compatíveis com o de mercado, exemplificativamente: creme dental – R$2,00; pacote de fumo – R$1 ,00; 2 pilhas R$1 ,40; litro de pinga – R$4,00; maço de cigarro – R$1 ,00; bico de lanterna – R$0,80; lanterna ¬R$8,50 (fls.160/174).

Não há, na caderneta de contas (fls. 158/188), débito de valor elevado, evidenciando endividamento de trabalhador ao ponto de constituir óbice a sua saída da fazenda, até que, por meio do trabalho, saldasse a conta.
Às fls. 296/452, os réus juntaram, por cópias, contratos de trabalho, exames médicos pré-admissionais e termos de rescisão de contrato de trabalho, assinados ou com a impressão digital dos trabalhadores da Fazenda Floresta, os mesmos que constam da relação de empregados elaborada pela fiscalização da DRT/TO anexada à fI. 113 (Francisco de Assis Alves França, Gabriel Bezerra Filho, Pedro Ferreira de Carvalho, Félix Pereira da Silva, Ademar Alves Martins, Edson Alves dos Santos e outros) .

Sinayde Barbosa declarou diante da autoridade policial ser a contadora responsável pelos registros dos contratos de trabalho (fls. 40/41).
Assim, a acusação de completa informalidade do trabalho, portanto, não procede.

A exceção das palavras vacilantes ditas pelo Auditor Fiscal do Trabalho Iredes José dos Santos2, a prova testemunhal é f
arta no sentido de que a inexistia qualquer pressão, ardil, ameaça, coação moral ou física, restringindo a liberdade dos trabalhadores contratados para fazer o roço das pastagens da Fazenda Floresta no Município de Ananás-TO. Veja-se:
"não houve ameaças ou intimidações por parte dos gerentes da fazenda e de nenhum empregado; (…) QUE não houve qualquer discussão entre os auditores fiscais e o senhor Daflon Filho (.00) QUE não houve nenhuma prisão nem detenção; que foram bem tratados pelos gerentes e trabalhadores;"
Valtelito Sales Silva – Motorista do quadro da DRT/TO – Testemunha arrolada pela Acusação – fi. 550.

"que não sabe se eles {trabalhadores} eram coagidos a adquirir essas mercadorias nessa cantina, tampouco presenciou armas de fogo na fazenda; (00.) que era cerca de quarenta trabalhadores; que eles não demonstraram medo em prestar essas informações aos fiscais do trabalho, apesar de a pessoa que os contratou estar presente, provavelmente porque a presença da polícia federal no local lhes dava um certo suporte;"
Teima Rosângela Koberstein – Agente da Polícia Federal – testemunha arrolada pela acusação – fls. 578/579.

"que sempre soube que os acusados Joaquim faria Daflon e Joaquim Daflon Filho tratavam bem seus empregados, nunca tendo ouvido qualquer reclamação por parte destes;
José Eliu de Andrade Jurubeba – testemunha arrolada pela defesa – fls. 583/584.

"que o depoente entrevistou em torno de 20 a 25 trabalhadores, os quais informaram que não havia retenção de salários, que não haviam pessoas impedidas de sai da fazenda; "
Alex Nader – testemunha arrolada pela defesa – fls. 585/589.

"que conhece a Fazenda Floresta; que a fazenda é ´rica´ de água; que o tratamento dispensado por Daflon e Daflon filho aos empregados é muito bom; que quando depoente ficou na fazenda viu {que} o acusado Daflon imediatamente ajudou o empregado que estava com dor de dente, tendo dado um comprimido;"
Jair Correa – testemunha arrolada pela defesa – fls. 588/590
"que o tratamento dispensado por Daflon Filho é o melhor possível; das vezes que presenciou, Daflon filho levava os trabalhadores doentes aos hospitais; (.00) que o tratamento dispensado por Daflon filho era aos trabalhadores permanentes e aos temporários. "
Alexandre de Oliveira Barbosa – testemunha arrolada pela defesa – fls. 591/592.

"que desconhece qualquer fato que desabone a conduta social, profissional ou moral do acusado, que Daflon filho é evangélico e vive conforme os preceitos morais da religião."
Wesley Wadim Passos Ferreira de Souza – Juiz Federal – testemunha arrolada pela defesa – fls. 630.

"que durante o tempo em que ficou em Ananás, por uns 02 (dois) anos, não teve conhecimento de que os trabalhadores teriam reclamado serviços prestados a Joaquim; que a fazenda de Joaquim Daflon ficaA uns 130 (trinta) km de Ananás;"
João Evangelista de Deus – funcionário do Banco do Brasil – testemunha arrolada pela defesa – fls. 650/651.

Dimana, pois, dos testemunhos que os trabalhadores da Fazenda Floresta no Município de Ananás-TO, apesar das precárias condições de trabalho, eram pessoas livres. Podiam, a qualquer hora do dia ou da noite, durante a jornada de trabalho e nos finais de semana, entrar no imóvel rural e dele sair, sem qualquer óbice por parte do proprietário ou do seu preposto. Era-lhes dispensado tratamento cordial pelos patrões e seus prepostos, ora -acusados.

De nenhuma relevância é o fato de haver cadeado na porteira quando da chegada da fiscalização da DRT/TO. Evidentemente, sendo a fazenda cercada de arame liso, é absurdo cogitar-se que o lacre da porteira impedia a saída de pessoas.

A Fazenda Floresta, segundo as provas dos autos, localiza-se afastada da cidade de Ananás-TO – urbe onde foram arregimentados os trabalhadores rurais – de 20 a 30 Km.

O trajeto de 20km, decerto, não é conveniente ao trabalhador percorrê-lo todos os dias, o que não significa isolamento. Pode, e usualmente acontece no interior desse Estado, ser feito, no final de semana, de bicicleta, pelo trabalhador rural, optando este, em regra, por pernoitar durante os dias de trabalho no local do serviço. Tal situação não é causa de redução do status libertatis do rurícola.

Anote-se que alguns trabalhadores, para ir à Fazenda Floresta e dela voltar, faziam uso de transporte escolar (fls. 619/625).

Lamentavelmente, o quadro fático evidenciado nos autos representa a dura realidade do interior do Norte do Estado do Tocantins e do Sul do Pará: miséria, analfabetismo, trabalhadores rurais à margem das leis trabalhistas. Basta ver as fotografias de suas residências (fls. 453/468) para se concluir que não houve redução de diretos, na verdade, nenhum sequer o Estado lhes deu.

As condições de trabalho na Fazenda Floresta são só uma face do contexto de pobreza extrema em que vivem os moradores da região do Bico do Papagaio-TO. É, sem dúvida, inobservância às leis trabalhistas, mas não pode ser taxada de redução a condição análoga à de escravo, seja por que é a realidade do trabalhador rural da região, seja por que, no caso, não houve qualquer ameaça de supressão do status liberta tis do trabalhador.

Pertinentes e esclarecedoras são as palavras do Ministro Gilmar Mendes, proferidas no Voto-vista do RE 398.041/PA. Transcrevo-as em parte:
(…)
As condições de trabalho oferecidas aos trabalhadores da Fazenda Floresta longe estavam de atender aos direitos básicos do trabalhador. Daí a concluir-se pela redução de trabalhadores à condição análoga à de escravo não é possível, se nada nem ninguém Ihes restringia a liberdade.
Nesse sentido, é a jurisprudência:
"Para se ver caracterizado este delito, necessário se faz a segura verificação de total sujeição, de supressão do estado de liberdade, sujeitando paciente,moral e fisicamente, aos poder do dominador. Não é qualquer constrangimento gerado por irregularidades nas relações laborativas suficiente para determinar a incidência do art. 149 do CP. A situação incriminada pelo citado dispositivo legal é aquela equiparada ao seqüestro. "
(RJTERGS 17/97 e RT 722/515)
(…)
Dispõe o art. 203 do Código Penal:
Art. 203. frustrar, mediante fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho:
Pena: detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
o crime do art. 203 do CP ocorre quando o agente priva o beneficiado do uso, exercício ou gozo de direitos trabalhistas mediante o emprego de fraude ou violência. A fraude a que se refere a lei "é o expediente que induz ou mantém alguém em erro3".
Na análise do crime de redução a condição análoga à de escravo, restou satisfatoriamente provado que os denunciados não usaram de qualquer ´força´ ou ardil contra os trabalhadores da Fazenda Floresta
, município de Ananás-TO.

Não há provas de que os trabalhadores foram aliciados com promessas que não foram cumpridas. As condições degradantes de trabalho são a dura realidade dos trabalhadores da região, que obviamente, precisam ser combatidas.
É necessária a presença dos elementos normativos ou ´fraude´ para configuração do crime de frustração de direitos trab. tais elementos, a conduta é atípica.
(…)
Ante o exposto, com fulcro no art. 386, inciso 111, do CPP, JULGO IMPROCEDENTE a pretensão punitiva estatal veiculada na denúncia de fls. 03/08 e ABSOLVO os réus JOAQUIM DE FARIA DAFLON, JOAQUIM FARIA DAFLON FILHO, GESEIMAR DA SILVA COSTA e JOSÉ LUIZ MATEUS DOS SANTOS da prática dos crimes tipificados nos arts. 149 e 203 do Código Penal.(…)."

Merece reforma a sentença transcrita, pelos fundamentos que ora se passa a expor.

RAZÕES DE REFORMA

A denúncia descreve os fatos, com todas as suas circunstâncias, que foram confirmados durante a instrução.

Os documentos inclusos comprovam que os trabalhadores encontrados na fazenda Floresta, localizada no Município de Ananás, TO, imóvel de propriedade do réu Joaquim Faria Daflon e administrada por seu filho e réu Joaquim Faria Daflon Filho, estavam laborando em condições análogas à de escravo.

A escravidão contemporânea – tipificada como crime no art. 149 do CP – se vê nestes autos pelo trabalho degradante e pelo cerceamento da liberdade. Este segundo fator nem sempre é visível, vez que não mais se utilizam correntes para prender o homem à terra, mas sim ameaças físicas e terror psicológico – em decorrência de dívida contraída pelo trabalhador rural com o empregador -, ou mesmo as grandes distâncias que separam a propriedade do núcleo urbano mais próximo.

Com relação ao primeiro fator, as provas são incontestes quanto à ocorrência.

As fotografias de fls. 141/148, os interrogatórios dos réus, os depoimentos das testemunhas Iredes José dos Santos (fls. 546/548), Telma Rosângela Kobersteim (fls. 578/579) e Hélio Natan Costa de Queiroz (fls. 640), ouvidas durante a instrução do processo, e demais documentos juntados aos autos, comprovavam as seguintes evidências de que os trabalhadores resgatados na Fazenda Floresta estavam em condições degradantes para um ser humano:

1) os trabalhadores estavam alojados no meio da mata em um barraco de chão batido, coberto com uma lona preta e folhas de palmeiras sem as paredes laterais;

2) a comida deles, quando tinha, era feita em um fogão de barro a poucos centímetros de altura do chão, sendo que as panelas utilizadas para cozinhar a alimentação ficavam no chão, porque no local não havia mesa;

3) eles retiravam a água para beber (as fotografias mostram que a água era barrenta, ou seja, imprópria para o consumo) no mesmo local que tomavam banho, lavavam roupas e as vasilhas utilizadas na cozinha;

4) eles faziam necessidades fisiológicas no mato, porque não havia banheiro no "alojamento";

5) o gado da fazenda também bebia no mesmo local em que os trabalhadores retiravam a água para beber;

6) trabalhador roçando com botinas desgastadas pelo uso, ou seja, praticamente descalço;

7) ausência de assinatura das carteiras de trabalho dos empregados e retenção das CTPS; e

8) total informalidade dos contratos de trabalho, sendo que os nomes dos trabalhadores não constavam de nenhuma documentação válida.

Na ocasião da fiscalização, apesar de os trabalhadores estarem laborando há mais um mês na Fazenda Floresta, nenhum deles estava de posse da CTPS. Todas as carteiras estavam retidas com os acusados, do que se deduz que, efetivamente, elas não estavam assinadas e que os réus só formalizaram os contratos de trabalho devido às diligência dos servidores da DRT no imóvel rural, situação referida por testemunha.

É certo que diversos trabalhadores começaram o vínculo de emprego no início do mês de março de 2003, conforme se verifica do depoimento gerente da Fazenda Floresta, Sr. Atemilson de Sousa Nascimento, fls. 41/42, onde ele afirma que: "aproximadamente no início do mês de março deste ano, iniciou-se novamente o roço de pastagens, tendo durado ate em meados de junho, quando ocorreu uma fiscalização no Ministério do Trabalho".

Vale destacar que, mesmo com a equipe de fiscalização da DRT no local, os réus Joaquim Faria Daflon e Joaquim Faria Daflon Filho assinaram as carteiras de trabalho das pessoas resgatadas na Fazenda Floresta como se elas tivessem iniciado os serviços nos dias 1º e 10 e junho de 2003, em total desrespeito aos direitos dos empregados; demonstração inequívoca da certeza de impunidade.

As anotações das CTPS não tinham qualquer validade para comprovar o vínculo empregatício em relação à Fazenda Floresta, já que carteiras estavam assinadas como se os trabalhadores estivessem trabalhando em outro imóvel rural dos réus Joaquim Faria Daflon e Joaquim Faria Daflon Filho, denominado Fazenda Castanhal.

Quanto ao segundo fator – cerceamento de liberdade – também restou comprovado.

O réu Daflon Faria Daflon Filho reconhece, às fls. 276/279, que contratou o "gato" e réu Geseimar da Silva Costa para arregimentar trabalhadores para realizarem serviços de roçagem de pastos na Fazenda Floresta ao preço de R$ 200,00 (duzentos reais) o alqueire e, ainda, que comprava pessoalmente os alimentos em Araguaína, TO, para abastecer a cantina existente no imóvel, verbis:

."(…) QUE ao tempo da fiscalização havia trabalhadores em sua fazenda roçando um pasto; QUE conhece os acusados Geseimar e José Luiz; … QUE falou com Geseimar que precisava de trabalhadores para limpar a fazenda; QUE então Geseimar falou com o José Luiz e este conseguiu o pessoal; QUE acertou com Geseimar que pagaria R$ 200,00 por alqueire limpo; QUE não sabe que acerto foi feito entre Geseimar e José Luiz; …; QUE comprava pessoalmente os alimentos em Araguaína/TO e os entregava a Geseimar; QUE orientou a Geseimar a vender os alimentos aos trabalhadores pelo mesmo preço da aquisição; … QUE era o Geseimar o responsável pelo pagamento de salários dos trabalhadores; …; QUE comprou botas e chapéus para os trabalhadores mas não orientou o Geseimar a descontar dos trabalhadores; …; QUE não fiscalizou a revenda de alimentos para Geseimar aos trabalhadores; (…)".

O réu Joaquim Faria Daflon, por sua vez, às fls. 492/493, afirma que o seu filho Joaquim Faria Danflon Filho tinha autorização para resolver tudo na fazenda, verbis:

"(…); QUE é proprietário das Fazenda Castanhal e Fazenda Floresta; …; QUE seu filho tem carta branca para resolver tudo na fazenda; QUE nas contratações de mão-de-obra e nas compras de gados, o filho do depoente pedia autorização para ele; …; QUE passou procuração para seu filho administrar as fazendas; QUE essa procuração
dava poderes "para fazer tudo", podendo contratar, dispensar; …; QUE as comunicações de seu filho depoente eram no sentido para liberar o dinheiro das contratações; (…)."

O réu Geseimar da Silva Costa, também conhecido por "Gato Pio", ao ser interrogado em juízo, fls. 517/519, confirma que foi contratado pelo denunciado Daflon Filho para arregimentar pessoas para trabalhar na Fazenda Floresta e, ainda, que pagava um adiantamento aos trabalhadores, verbis:

"(…); que arrumou algumas pessoas para trabalhar com o DAFLON FILHO; que arrumou os trabalhadores no povoado São Raimundo e em Ananás; que contratou com o DAFLON FILHO a roçagem de pasto por empreitada; que contratou os trabalhadores para executar a empreitada; … que os trabalhadores recebiam uma parte do pagamento adiantado, chamada abono; que a sub-empreitada era repassada para grupos de trabalhadores mas o pagamento, quando da conclusão dos trabalhos era feito individualmente; (…)."

José Luís Mateus dos Santos, também conhecido por "Gato Zé Luiz", ao ser ouvido em juízo, às fls. 515/516, confirma que foi procurado pelo réu Geseimar para arrumar pessoas para trabalhar na Fazenda Floresta, verbis:

"(…); que trabalhou na Fazenda Floresta por vinte e dois dias e que não se lembra o dia exato em que começou; que pegou a empreitada da mãos de GESEIMAR; …; que o depoente e seus trabalhadores ficavam alojados em um barracão coberto de palha sem paredes; …; que não pagaram a comida porque pararam o serviço, em decorrência da fiscalização, antes do prazo estipulado;…; que tomavam água proveniente de um córrego próximo ao local de trabalho, esclarecendo que utilizava um pano limpo para a fazer a filtragem; que existia uma cantina na fazenda administrada pelo capataz o qual anotava os produtos que cada funcionário pegava; que o preço acertado foi de duzentos e vinte reais por alqueire; que a área na qual o depoente faria o serviço equivalia a dois pastos, não sabendo informar por quantos alqueires estas eram constituídas; que esta verba deveria ser rateada com aproximadamente dez pessoas que realizava o serviço juntamente com o depoente; (…)."

Depreende-se, portanto, que as pessoas resgatadas na Fazenda Floresta (aproximadamente 40 trabalhadores) foram, efetivamente, contratadas para trabalhar no referido imóvel rural pelos "gatos" e réus Geseimar da Silva Costa e José Luís Mateus dos Santos.

Na oportunidade da contratação todos os trabalhadores receberam um abono/adiantamento, o que comprova que, antes mesmo de iniciar os serviços de roçagem dos pastos, eles já estavam devendo para os seus patrões (réus Joaquim Faria Daflon e Joaquim Faria Daflon Filho) e, conseqüentemente, impedidos de saírem do imóvel enquanto não quitadas as dívidas.

A cópia do caderno de contas, inclusa às fls. 155/188, comprova que os réus mantinham na fazenda uma cantinha onde comercializavam diversos produtos (botinas, fumo, pilhas, leite moça, creme dental, pinga, cigarro etc.) para os trabalhadores, o que acarretava em mais dívidas e em mais dificuldade para o trabalhador deixar o imóvel.

Extrai-se do referido caderno que, na ocasião da diligência dos servidores da Delegacia Regional do Trabalho no Estado do Tocantins na Fazenda Floresta, vários trabalhadores (pelo pouco que recebiam) já se encontravam endividados. A título de exemplo, transcrevemos abaixo a situação financeira (às dívidas) de alguns deles:

TRABALHADOR – PEDRÃO (fls. 165)
– – R$ 60,00
mais – R$ 10,00
1 Par de botina R$ 18,50
1 Pacote de fumo R$ 1,00
1 Creme dental R$ 2,00
1 Pacote fumo R$ 1,00
cantina – R$ 24,20
2 Latas leite moça R$ 4,60
1 Lanterna R$ 8,50
2 Pilhas R$ 1,60
1 Lanterna R$ 8,50
1 Pacote de fumo R$ 1,00
1 esqueiro R$ 2,00
1 Caixa pílula-contra R$ 0,50
2 Pacotes de fumo R$ 2,00
1 vitamina –
1 Vidro aguardente –
1 Agulha R$ 0,30
1 Tubo de linha –
2 Leite moça R$ 4,80
mais – R$ 20,00
2 Latas leite moça R$ 4,80
2 Pilhas de lanterna R$ 1,60
1 Bico para lanterna R$ 0,40
TOTAL – R$ 172,98

TRABALHADOR – ZÉ PRETO (fls. 168)
– – R$ 50,00
1 aguardente R$ 2,25
1 esqueiro R$ 2,00
2 Leite moça R$ 4,80
1 Litro de pinga R$ 4,00
cantina – R$ 83,85
cantina – R$ 37,50
1 Lata leite moça R$ 2,40
mais – R$ 2,50
TOTAL – R$ 189,3

TRABALHADOR – VICENTE PEREIRA (fls. 169)
– – R$ 50,00
1 Par de botina R$ 18,50
1 esqueiro R$ 2,00
1 caderno R$ 1,00
2 Latas leite moça R$ 4,60
3 Pacotes fumo R$ 3,00
cantina – R$ 24,20
1 Creme dental R$ 2,00
1 Leite moça R$ 2,40
cantina – R$ 60,40
3 Pacotes de fumo R$ 3,00
1 Lata leite moça R$ 2,40
cantina – R$ 40,90
TOTAL – R$ 214,40

Sinayde Barbosa, ao ser ouvida durante o inquérito, devidamente acompanhada de advogado, fls. 39/40, afirma que trabalhava para Joaquim Faria Daflon e Joaquim Faria Daflon Filho e que sua função era realizar as assinaturas das carteiras de trabalho dos empregados dos réus e que um trabalhador rural recebia R$ 240,00 mensais.

Pelo que consta dos autos, as anotações no caderno de contas já mencionado eqüivaliam ao consumo de aproximadamente de 15 (quinze) dias de serviço. Conforme se verifica nas tabelas acima, nesse período, o Sr. Vicente Pereira já havia contraído uma dívida na cantina no valor R$ 214,40, o que leva a deduzir que, no final do mês, estaria com um saldo negativo e, conseqüentemente, proibido de sair do imóvel rural.

A testemunha Iredes José dos Santos, ouvida em juízo, às fls. 546/548, afirma que "todos os trabalhadores informaram que haviam sido intimidados pelo gato pio".

A prática delituosa verificada nestes autos é antiga na Região Norte do Brasil. Os donos de imóvel rural – no presente caso os réus Joaquim Faria Daflon e Joaquim Faria Daflon Filho – contratam pessoas conhecidas como "gatos" – no caso os réus Geseimar da Silva Costa e José Luís Mateus dos Santos – para aliciarem trabalhadores para determinado serviço em suas propriedades.

O "gato" é a face inicial e conhecida do crime. Quem procura as pessoas interessadas em trabalhar e adianta parte do salário é o "gato". Se o trabalhador quiser deixar o imóvel, o "gato" é que faz o acerto. O trabalhador pode deixar o imóvel se já quitou a dívida, senão, é obrigado a permanecer até quitá-la. É o que ocorreu nestes autos.

Os réus Joaquim Faria Daflon e Joaquim Faria Daflon Filho possuíam gerente na Fazenda Floresta e contador na cidade de Ananás, todavia, quem intermediou a contratação dos trabalhadores resgatados foram os "gatos" Geseimar da Silva Costa e José Luis Mateus dos Santos.

Os réus Joaquim de Faria Daflon, Joaquim Faria Daflon Filho, Geseimar da Silva Costa e José Luiz Mateus dos Santos tinham consciência do que faziam e devem ser responsabilizados por suas condutas criminosas.

Não é aceitável o argumento de que o quadro fático evidenciado nos autos representa a dura realidade do interior do Norte do Tocantins e do Sul
do Pará.

A dura realidade não é algo com o que se deva comprazer. Os Poderes Públicos têm, justamente, a missão de alterar esse quadro, reprimindo administrativa e penalmente a conduta inadequada de exploração econômica do trabalho alheio sem respeito à legislação, negando a condição de dignidade dos trabalhadores.

No caso, os trabalhadores foram colocados em situação análoga à de escravo por pessoas (réus Joaquim de Faria Daflon e Joaquim Faria Daflon Filho) com alto poder aquisitivo e grau de instrução, cuja leitura atenta dos autos revela o círculo de convivência pessoal, a demonstrar pelo rol de testemunhas ouvidas.

Os testemunhos foram decisivos para sentença absolutória, ainda que não tenham jamais presenciado os fatos. Contrastam com os depoimentos do agentes públicos arrolados pelo Ministério Público Federal, cujos atos presumem-se legítimos.

Esse Egrégio Tribunal Regional Federal tem decidido que configura crime do artigo 149 do Código Penal sujeitar pessoas a condições degradantes de trabalho e a restrição a liberdade de locomoção em razão de dívida com o empregador. Nesse sentido, seguem os julgados:

"PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. CAUSA DE AUMENTO. PRESCRIÇÃO.
1. O tipo objetivo – sujeitar alguém à vontade do agente, escravizar a pessoa humana – descrito na antiga redação do art. 149 do Código Penal depois da Lei 10.803, de 11.12.2003, continuou o mesmo. A nova Lei 10.803, de 11.12.2003, apenas explicitou as hipóteses em que se configuram a condição análoga à de escravo, como a submissão a trabalhos forçados, a jornada exaustiva, o trabalho em condições degradantes, a restrição da locomoção, em razão de dívida com o empregador ou preposto. A nova lei sim acrescentou formas qualificadas, punindo o crime com o aumento da pena em metade.
2. As causas de aumento ou de diminuição, a exceção do concurso de crimes e do crime continuado, são computadas no prazo prescricional, tomando-se por base o maior aumento. Se ao indiciado, ou acusado, é imputado o crime previsto no art. 203 do Código Penal, cuja pena máxima é de 2 (dois) anos, o prazo prescricional é de 4 (quatro) anos – CP, art. 109, V, se, no entanto, incidir a causa de aumento da pena (§ 2º do art. 203 do Código Penal), cujo aumento é de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço), o prazo prescricional passa a ser de 8 (oito) anos (CP, art. 109, IV), pois leva-se em consideração o
aumento máximo (1/3) que eleva a pena para 2 (dois) não e 8 (oito meses)." (TRF – Primeira Região. HC 200701000133134. Terceira Turma. Relator: Desembargador Tourinho Neto. DJ: 15/06/2007. Pág. 23).

"HABEAS CORPUS. REDUÇÃO DE TRABALHADOR A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. VIOLAÇÃO AO PRIMADO DA GARANTIA DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. FUMUS BONI IURIS E PERICULUM LIBERTATIS CARACTERIZADOS. PARECER PELA MANUTENÇÃO DA CUSTÓDIA CAUTELAR.
1. São fortes os indícios acerca da materialidade e autoria do crime de redução a condição análoga à de escravo imputada ao paciente, que exerce a função de ´gato´ na Região de São Félix do Xingu, onde foram encontrados cerca de 60 trabalhadores em condições subumanas, pela equipe de fiscalização da Polícia Federal e Ministério do Trabalho.
2. O crime atribuído ao paciente atenta contra a ordem pública e econômica porque submete trabalhadores a situações de trabalho degradantes e os priva de todos os seus direitos trabalhistas.
3. Considerando a função do paciente dentro da Fazenda, há sério risco de que, em liberdade, volte a incidir na prática do crime tipificado no artigo 149, ou ameaçar testemunhas, comprometendo o regular desenvolvimento da instrução criminal". (do opinativo ministerial).
4. Ordem denegada. (TRF – Primeira Região. HC 200401000360111. Quarta Turma. DJ 2/6/2005. Pág. 37. Relator: Desembargador Federal Hilton Queiroz).

Os denunciados Joaquim de Faria Daflon, Joaquim Faria Daflon Filho, Geseimar da Silva Costa e José Luiz Mateus dos Santos frustaram, também, com suas condutas, os legítimos direitos trabalhistas das pessoas resgatadas na Fazenda Floresta, devendo, portanto, serem condenados pelo crime contra a organização do trabalho tipificado no art. 203 do Código Penal.

Em face do exposto, o Ministério Público Federal requer o conhecimento e provimento do recurso de apelação, para reformar a sentença e condenar os réus Joaquim de Faria Daflon, Joaquim Faria Daflon Filho, Geseimar da Silva Costa e José Luiz Mateus dos Santos nas penas dos artigos 149 e 203 do Código Penal, ambos combinados com os artigos 29 e 69 também do Código Penal.

Palmas, 27 de agosto de 2007.

ADRIAN PEREIRA ZIEMBA
Procurador da República

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