Texto e fotos de Beatriz Camargo |
17/03/08
Juiz que deu liminar que resultou no despejo de 80 famílias de favela em SP decide "devolver" caso. Para Defensoria, Empresa Metropolitana de Águas e Energia (Emae) entrou com o mesmo processo em duas Varas, o que é ilegal
A reintegração de posse que colocou no chão os lares de 80 famílias da favela Real Parque, na Zona Sul da capital paulista, foi determinada por uma liminar controversa, que está sob a mira da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
A decisão que amparou a truculenta e repentina ação de despejo de 11 de dezembro de 2007 foi tomada pela 3ª Vara Cível do Fórum de Santo Amaro com base em pedido feito em novembro pela Empresa Metropolitana de Águas e Energia S/A (Emae). A empresa já havia apresentado ação com o mesmo conteúdo oito meses antes (em março) na 5ª Vara do mesmo fórum, que negou a reintegração. A lei estabelece que processos submetidos a uma Vara só podem ser revistos ou modificados na instância em questão. O não-cumprimento desta determinação legal implica na chamada "litigância de má-fé".
Autor da liminar que resultou na desocupação à base de explosões de bombas de gás lacrimogêneo, disparos de balas de borracha e jatos de gás de pimenta, o juiz da 3ª Vara, Edson Luiz de Queirós, declarou-se "incompetente" para decidir sobre o caso e enviou o processo de volta. "Há notícia da existência de outros processos ajuizados perante a Referida 5ª Vara Cível deste Foro Regional, tendo por objeto o mesmo imóvel deste feito", diz trecho de decisão publicada no dia 3 de março deste ano. Agora, o processo volta para a Vara "original" em que foi remetido no início. A 5ª Vara decidirá sobre a acusação da litigância de má-fé e sobre a validade ou não da liminar da 3ª Vara.
O magistrado Gustavo Coube de Carvalho, da 5ª Vara, foi quem negou o primeiro pedido de reintegração de posse da área. A Emae recorreu e o Tribunal de Justiça (TJ-SP) confirmou a decisão dada na primeira instância.
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Oito dias depois de ter perdido o emprego, Eva dos Santos viu seu barraco ser demolido |
A infração cometida pela Emae, companhia de economia mista na qual o governo estadual detém a maior parte das ações, foi denunciada pela Defensoria Pública em 17 de janeiro deste ano. "Há dois motivos da litigância de má-fé: além dos advogados da Emae terem entrado com o processo na 3ª Vara, não contaram que já existia o processo na 5ª, ato que configura omissão de fatos relevantes", denuncia a defensora Carolina Pannain. Para ela, a decisão do juiz da 3ª Vara não valeu, pois o caso não estava sob sua alçada.
Desocupação do Real Parque |
março de 2007 Emae entra com processo de reintegração de posse na 5ª Vara Cível do Fórum de Santo Amaro. Pedido é negado pela Justiça |
novembro de 2007 Emae entra com o mesmo processo (alterando nomes e datas) na 3ª Vara Cível do mesmo Fórum |
11 de dezembro de 2007 Ação de reintegração de posse da Emae no Real Parque, baseada em liminar de juiz da 3ª Vara. Despejo não foi antecedido de aviso prévio e, segundo moradores e a Defensoria Pública de São Paulo, houve abuso da violência (veja vídeo) |
17 de janeiro de 2008 Defensoria Pública denuncia Emae por litigância de má-fé e pede anulação da liminar obtida pela comapnhia de economia mista |
3 de março de 2008 Juiz da 3ª Vara declara-se inapto para decidir sobre o caso Real Parque e "devolve" o processo à 5ª Vara Cível de Santo Amaro |
"Antigamente, as pessoas desistiam de um processo e entravam com um novo, para ver se, mudando o juiz, a decisão seria diferente. A lei foi mudada para evitar isso", conta Carolina.
A Defensoria quer que a decisão do juiz Edson seja anulada e exige a indenização para as famílias despejadas. Segundo a defensora, a operação, além de indevida, foi agravada pela forma como se deu: "com abuso policial e violência".
As diferenças entre as duas ações apresentadas pela Emae estão nos nomes de réus e datas nas mencionadas: o texto encaminhado à 5ª Vara, de março de 2007, informa que a ocupação do terreno é de outubro de 2006. No pedido feito em novembro de 2007, a data indicada é julho.
Carolina argumenta que a mudança de nomes dribla a verificação do Fórum, que faz a pesquisa com base nos réus envolvidos. "Como a área da Emae é muito grande, eles colocaram nomes de pessoas diferentes e no final, nos dois processos, escreveram ´e todas as outras pessoas ocupantes da área`."
A Repórter Brasil entrou em contato com o departamento de comunicação da Emae, mas a empresa não designou nenhum representantes para dar entrevista sobre o caso Real Parque e se limitou a enviar uma nota por e-mail. "Quanto ao pedido de condenação de multa, por suposta litigância de má-fé, a EMAE manifestou-se oportunamente sobre essa questão improcedente, tendo adotado as medidas jurídicas cabíveis", informa.
Decisão
A Defensoria aposta na confirmação da litigância de má-fé dos advogados da companhia, mas calcula que a resolução final do caso tende a demorar. "É uma discussão longa. A Emae pode e vai recorrer", pondera Carolina Pannain, para quem o desfecho do caso pode levar mais de cinco anos.
"Temos decisões em que o juiz acabou dando ganho de causa à população ocupante do terreno", lembra, confiante, a defensora. Como o litígio refere-se aos 17 mil metros quadrados totais da área, ela acredita que basta que alguns moradores provem que estavam no local há mais de cinco anos. "O que conta é a área ocupada. Se o terreno estava lá e a pessoa comprou o barraco, já conta para o tempo do usucapião", esclarece.
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Zenaide Santos conseguiu levar apenas o fogão e o tanquinho, que quebrou durante o despejo |
Ansiedade
A maioria das pessoas que perderam seus barracos em dezembro de 2007 estão em casas de amigos ou parentes no próprio Real Parque. Algumas foram alojadas em hotéis pagos pela Emae durante um mês. De acordo com os moradores, duas famílias aceitaram dinheiro oferecido pela empresa para comprar passagens e voltar para suas cidades de origem. "Essas pessoas nunca tinham passado uma coisa dessas. Vieram para São Paulo procurar emprego e aconteceu isso. Elas não queriam mais ficar aqui", relata Eva dos Santos Vieira. Ela mesma também teve sua casa derrubada por máquinas, oito dias depois de ter perdido o emprego. Participou da manifestação com outros moradores e sentiu no rosto o gás de pimenta, com a filha de dois anos no colo.
Desde então, voltou, com os três filhos, à casa dos pais, também no Real Parque. Moram ao todo dez pessoas sob o mesmo teto. "Por mais que seja mãe e pai, não dá. Depois que eu tive minha casa, voltar para cá foi difícil", desabafa. "Mas ainda bem que eu tenho eles, né? Se eu não tivesse ninguém, estaria na rua, pior do que estou hoje".
Eva, que nasceu e cresceu no Real Parque, agora sonha em deixar não só a favela como a cidade de São Paulo. "Aqui dentro a gente não consegue ir para frente". Mas só quando conseguir guardar dinheiro. "Não tenho condições. Coloquei uma barraquinha na rua para vender churrasco porque não dá para ficar sem fazer nada". Ela espera a indenização por conta do despejo para chegar mais perto de seu sonho.
Um mês antes do despejo, Eva reformara o seu barraco. Com o salário e um adiantamento, construiu mais um cômodo (cozinha) e um banheiro, onde ia colocar o piso, mas acabou desistindo para poupar recursos. "Se eu tivesse feito o piso, o prejuízo teria sido maior ainda…"
Depois da desocupação, Zenaide Santos, outra moradora do Real Parque, ficou um mês alojada na Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) Pero Nero com mais 14 pessoas, até conseguir ficar na casa de uma amiga da filha. Ela perdeu quase tudo: recuperou apenas o fogão e o tanquinho, que acabou quebrando "na confusão" do despejo. Na ponta do lápis, ela ficou sem a televisão nova, a geladeira, o tanquinho, as roupas e os investimentos para construir o barraco.
Com o dinheiro da filha e mais dois empréstimos de amigos, Zenaide vai tentar comprar um barraco, desta vez em outro lugar. "Quem sabe, né? Se sair um dinherinho vou para o Norte". Ela é de Tobias Barreto, no estado de Sergipe, quase divisa com a Bahia. "No fim do ano eu ia pra lá, estava quase comprando passagem. Faz 15 anos que não vejo a minha mãe".
A Subprefeitura distribuiu sacos de lixo e havia caminhões para levar os objetos, mas as pessoas não foram informadas para onde seriam levadas. Eva, que com a ajuda dos pais e da irmã conseguiu tirar todos os seus pertences da casa, foi alertada sobre o caminhão. "O mesmo homem que me deu o saco de lixo avisou para não colocar nada no caminhão, se eu tivesse como levar, porque eu não ia mais ver as minhas coisas. A maioria das pessoas deixou os móveis do lado dos predinhos [de moradia popular] do Cingapura. Alguns ficaram mais de 15 dias lá porque as pessoas não tinham para onde levar."
"Mesmo antes de descobrir que havia outro processo, nós já tínhamos pedido o cancelamento da reintegração de posse porque entendemos que houve abuso e que as pessoas mereciam indenização", lembra Carolina. "A perda de móveis, de documentos e de roupas sem tempo de retirá-las fere a dignidade humana".
Em protesto contra o despejo, moradores interditaram a Marginal Pinheiros, que passa ao lado do Real Parque. Para liberar a via, a Tropa de Choque da PM utilizou balas de borracha, cassetetes, bombas de gás lacrimogêneo e gás de pimenta, inclusive contra mulheres e crianças. Um grupo de jovens moradores do Real Parque, o "Favela Atitude", produziu um vídeo sobre o episódio.
Soma-se a isso a especulação imobiliária. Cada uma das cerca de 70 famílias do Jardim Panorama, favela vizinha ao Real Parque, recebeu, em junho de 2007, indenização de R$ 40 mil da JHSF. A empreiteira constrói um empreendimento de luxo na região. Enquanto os moradores do Real Parque lutam por moradia, a Emae não quer perder a oportunidade de contabilizar ganhos com a venda do amplo terreno numa das áreas mais valorizadas de São Paulo.
Na verdade não há dizer nem comprovar que todos são iguais perante a justiça. Os desiguais são tratados por suas desigualdades. Esta a razão da controvertida busca do judiriário, mesmo que ilegal a forma de atuar.
Há os que ditam a forma de atuar. Muitas são as informações desencontradas.
É no mínimo ridícula esta situação sempre o direito é mais direito para alguns ,já passou da hora do direito agir com respeito e fazer o direito ser o que se relata na constituição…
Não podemos deixar alguns fazerem das leis constitucionais uma mera casa de prazer há onde quem paga mais tem mais, por isso e para isto temos de unir forças dentro das nessecidades nesta imensa trincheira da luta de classes…
A trolha é sempre dirigida para uma só classe social. Não me venham dizer que todos são iguais perante aos julgadores – são perante a Lei, mas, a diferença é muito grande. Os julgadores julgam aquilo que se lhe oferece escrito no papel. Quem tem maior convencimento leva. Quem não tem, leva também, mas sabemos oquê. Assim não fosse, não haveria poderosos grilheiros/posseiros.