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Histórias de quem foi algoz e vítima em casas de reclusão

Ex-presidiário no Carandiru afirma carregar até hoje as seqüelas de espancamento sofrido na penitenciária. Na Fundação Casa (ex-Febem), três monitores descrevem um cotidiano de violência entre agentes e internos

Oito meses de internação na enfermaria da extinta Casa de Detenção de São Paulo, popularmente conhecida como Carandiru. De acordo com P., ex-presidiário, este foi o saldo do pedido de atendimento médico que fez ao diretor do presídio. Como não estava enxergando bem, queria autorização para uma escolta até um hospital fora da cadeia. No entanto, ao informar que era do Pavilhão 9, o diretor, nervoso, teria mandado ele sair. Foi quando, alega, tropeçou acidentalmente ao sair. O barulho, segundo ele, foi interpretado como um chute na porta.

Este foi o estopim, segundo P., para pontapés e golpes com cano de ferro desferidos contra ele por cerca de cinco agentes da penitenciária acionados pelo diretor. Ferido, foi levado à cela de castigo, sem direito a exame médico. "Só consegui atendimento uns 15 dias depois, porque outros presos protestaram aos gritos por causa da minha situação", afirma.

Em agosto de 2000, cerca de um mês após os fatos descritos, esteve no Carandiru o próprio relator da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre tortura, Nigel Rodley. À época em missão oficial no Brasil, ele encontrou P. numa cadeira de rodas. Segundo o relator, o detento apresentava graves ferimentos compatíveis com seu relato, incluindo uma grande ferida infeccionada nas costas. Além disso, não conseguia mover seu braço direito.

Rodley teve acesso ao relatório disciplinar sobre o caso. "O executante entrou na sala da diretoria do núcleo de segurança sem autorização e foi pedido imediatamente que esperasse atendimento do lado de fora. Ignorou o pedido completamente e começou a correr e chutou a porta com muita agressividade", diz o documento.

P. permaneceu no Carandiru até 2001. E afirma que, a partir do episódio, enfrentou ameaças. "Os funcionários falavam que, se eu fosse depor contra eles, sofreria as conseqüências", lembra. "Vinha o juiz corregedor na penitenciária, mas eu ficava quieto. Como estava preso, estava na mão deles."

Ao sair, em livramento condicional, abriu um processo contra os agressores, com base na Lei de Tortura. Em 2003, esteve frente a frente com os acusados em audiência judicial. Também foi chamado para prestar esclarecimentos na corregedoria das penitenciárias paulistas. O caso, contudo, nunca foi julgado.

O andamento do processo foi prejudicado em 2004, quando P., preso em Ferraz de Vasconcelos (SP) acusado de roubo, viu-se impedido de acompanhar o caso. Permaneceu encarcerado até julho de 2007, quando foi absolvido por falta de provas.

As seqüelas físicas e psicológicas permanecem. Relatórios médicos comprovam o comprometimento dos movimentos do braço direito. "Eu não procuro me lembrar da tortura, só que tudo traz ela à tona. Se tento arrumar um emprego, não consigo por causa do braço", exemplifica. P. afirma que hoje só consegue fazer bicos. "É uma coisa que eu vou levar para a vida toda."

Do outro lado das grades
Monitor da Fundação Casa (ex-Febem) desde meados da década de 1990, L. conheceu a tortura logo no seu primeiro dia de trabalho. Durante uma revista, encontraram facas artesanais escondidas no dormitório de um interno, que foi então levado para um canto e espancado por dezenas de funcionários – sob o olhar do próprio diretor local. O agente novato acompanhava a cena, assustado. Até que recebeu a ordem para bater também. "É assim que funciona", conta ele. "Se você não bater, você não serve".

Atualmente, L. está afastado, cumprindo licença médica. Toma remédios para depressão, convive com crises de fúria e com problemas relacionados ao alcoolismo. Tudo isso, diz ele, é resultado do ambiente de tensão, violência e ameaças na Fundação. Entre 1998 e 2002, 60% dos afastamentos de profissionais na instituição se relacionavam a quadros de transtornos mentais. Dados de novembro de 2005 indicavam que 11% dos funcionários estavam fora do serviço por problemas de saúde.

"Quando você entra lá, ninguém te diz o que fazer", relata W., hoje aposentado, depois de mais de 15 anos como monitor na Febem. Nesse contexto, conta ele, os colegas de equipe viram a principal referência, por meio de uma série de regras não escritas. Por exemplo, é considerado um "parasita" quem não age com veemência nos momentos de tensão – repressão de conflitos, pressão para extrair informações de internos, etc.

Também é tratado com desconfiança aquele que mantém relações algo mais próximas, de mínima cordialidade com os jovens. Para W., tal situação encontra paralelo nos próprios códigos de conduta que norteiam os internos – já que, entre eles, acaba taxado de "pilantra" quem é visto como muito ligado aos monitores. "As regras são parecidas para os dois lados", reflete.

Tanto L. quanto W. relatam histórias de rebeliões nas quais foram feitos reféns. Carregam marcas de torturas – queimaduras e perfurações feitas por objetos cortantes – além de uma profunda descrença no pretenso papel de ressocialização desenvolvido pela instituição. "Dizem que você vai ser um educador, mas você vira um cão de guarda", desabafa W.

Para piorar, a tensão e medo não se restringem aos muros da Fundação. L. conta que, certa manhã, abriu a janela e viu um ex-interno trabalhando na feira que ocorre em frente à sua casa. "Ele me reconheceu", recorda. "Depois disso, mudei de casa."

Z., outro ex-funcionário da instituição, afirma esconder até hoje do filho de 15 anos que já foi um agente da Fundação. "Se ele conta para outros e a informação chega às pessoas erradas, matam o meu filho", acredita. "Pra mim, hoje em dia, todo mundo é suspeito."

Dependente de remédios para dormir, W. está divorciado desde 2001. "Agia em casa como se ainda estivesse dentro da Febem. Extravasava batendo nos meus filhos. Lidava com eles da mesma forma como tratava os infratores." Começou o que ele chama de "isolamento". Hoje evita sair de casa, e, quando está na rua, mantêm-se em alerta constante, procurando na multidão o rosto de ex-internos. "Já tomei três enquadros de gente que conheci lá dentro", diz.

Toda essa conjuntura, declara ele, afetou sua personalidade. "Hoje eu perco amizade fácil, não tenho mais confiança em ninguém", explica. "Fiquei metódico. Quero controlar tudo. Rádio alto, banho demorado, tudo me incomoda". Desmanchou namoros por conta das dificuldades de relacionamento, e os próprios filhos já não o visitam faz tempo. "Mas quer saber? Eu não estou fazendo mais questão de nada", desabafa.

Leia também as duas primeiras partes do Especial – Tortura:
Violência contra detentos perdura e questiona poder do Estado
Impunidade e monitoramento débil favorecem abusos

*Esta série de reportagens foi publicada em parceria com a revista Problemas Brasileiros


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3 Comentários

  1. Lucas Tavares

    Não resisti a comentar e vou entrar em contato. Mas, a priori, vale deixar claro: reportagem, principalmente no que tange a denúncias, deve dar espaço ao contraditório, ou, como se diz, ao outro lado. Sou coordenador de imprensa da Fundação CASA. E não fomos procurados. Os funcionários entrevistados citaram problemas que aconteciam. Hoje, eles não acontecem com tanta frequência e, quando ocorrem, providências são tomadas. E mais: de três anos para cá, há capacitação dos funcionários por meio de um trabalho bem interessante. Isso deveria ter sido explicado. Jornalismo se faz assim. Outro ponto: os dados citados de afastamentos não são oficiais. Será que estão certos? Precisamos levantar.

  2. Maria José Limeira

    Esses torturadores são animais. Deviam estar presos em jaulas, e tratados a pão e água. São uns cabras safados! Saludos. E Parabéns pelas reportagens. Maria José Limeira.

  3. Mazotto

    Boa tarde
    Doug Casarin
    Olha a data desta resposta que vc me deu.
    Mas espero que esteja bem agora .
    Li sobre uma exposição sua em Mogi Guaçu e achei muito interessante, gostaria de ter visto.
    Bom Trabalhei la muitos anos e duarante o tem´po em que trabalhei la consegui juntar um grande acervo com mais de 1111 (Um mil cento e onze ) fotos , quase vinte horas de video , centenas de objetos como armas, cachimbos , fogões de celas, maquina de tatuagem, utencilios, manuais, artezanatos e mais.
    e realizo pequenas esposicões em escolas no interior de SP, onde estou agora.
    e gostaria de poder fazer exposições em São Paulo e gostaria de sua ajuda ou parceria .
    e quem sabe podemos levar esta exposição para outros estado e ate para outros paises.
    Inclusive tem um documentario feito por um rede de tv americana que foi exibido em mais de oito paises, e gostaria que vc visse tambem .
    Tenho o maior acervo particular do carandiru .
    Peço uma ajuda ou uma orientaçao ou uma indicaçao para poder realizar estas exposições.
    Certo de poder contar com sua habitual compreensão, antecipo meus agradecimentos e aguardo.
    um Abraço
    Mazotto