Especial – Tortura

Violência contra detentos perdura e questiona poder do Estado

Ações governamentais e da sociedade civil buscam há anos mudanças na polícia, no sistema penitenciário e na atuação da Justiça para combater a tortura. Enfrentam, porém, a omissão e a realidade das relações de poder
Por André Campos
 24/03/2008
 
ONU aponta recorrência de maus tratos nos
presídios brasileiros e cobra ações do governo
para mudar essa realidade (Foto: Arquivo ACAT) 

Em novembro de 2007, diretamente da sede da Organização das Nações Unidas (ONU), ouviu-se mais uma vez uma denúncia recorrente sobre a realidade brasileira: a da existência, segundo a própria ONU, de "tortura generalizada e sistemática" para milhares de detentos do país. Baseadas na visita de especialistas em 2005, as alegações fazem parte de um amplo relatório, ainda não totalmente divulgado, que enfatiza também aspectos discriminatórios da violação, que atinge principalmente os afrodescendentes.

Há sete anos, a noção de "tortura sistemática" já estava presente em outro estudo da ONU, produzido a partir de inspeções realizadas no ano 2000. O documento descreve nada menos que 348 alegações concretas de tortura, ocorridas em 18 estados ao longo da década de 1990. Chama a atenção também para um extenso rol de omissões e irregularidades, que tornam a prática dessa violência um ato de responsabilidade partilhada entre altos escalões e a figura do carrasco.

Assim como as denúncias, as políticas federais para enfrentar o problema também não são novidade. Ainda em 2000, diversas entidades reuniram-se para celebrar o Pacto contra a Tortura, em defesa da aplicação da lei que tipifica o crime. Já em 2001 nasceu o SOS Tortura, um disque-denúncia extinto pelo governo Lula menos de três anos depois. No mesmo ano surgiu o Plano Nacional de Combate à Tortura – que, no entendimento da gestão atual, apresentou resultados insatisfatórios por focar-se excessivamente na punição, em vez de buscar mudanças de procedimentos e práticas.

Tais transformações são o objetivo do Plano de Ações Integradas para Prevenção e Controle da Tortura, apresentado em dezembro de 2005. Última aposta do governo federal, ele se baseia em articulações com os estados para alcançar resultados efetivos. Até o momento, aderiram ao programa 13 unidades federativas – Acre, Distrito Federal, Espírito Santo e Rio Grande do Sul, além de todos os estados do Nordeste.

Passados mais de dois anos, contudo, a iniciativa esbarra num velho problema: falta de compromisso dos setores da segurança pública e do sistema de Justiça. Em diversas instâncias, prevalece o silêncio sobre o assunto.

As causas
Entre outubro de 2001 e julho de 2003, mais de 25 mil ligações foram atendidas pelo SOS Tortura. Elas deram origem, após filtragem, a 2,2 mil denúncias encaminhadas às autoridades competentes. Em nada menos do que 85,8% dos casos filtrados, as suspeitas de abuso recaíam sobre agentes públicos. Entre eles, a Polícia Civil responde por 31,4% das acusações, a Polícia Militar por 30,6% e os agentes penitenciários por 14%.

 
Reunião do grupo de combate à tortura do governo
federal: dificuldade para articular políticas com 
os estados (Foto: Roosewelt Pinheiro/ABr)

E por que o Estado tortura? Para Luciano Mariz Maia, procurador regional da República na 5ª Região, permanece ainda uma forte noção do uso da violência como forma de punição. "A idéia de castigar é tão presente que, muitas vezes, a polícia nem tem indícios concretos, mas percebe alguém em "situação suspeita" e dá o bote. A pessoa, assustada, tenta correr, mas é alcançada, e a polícia começa a bater sem nem saber exatamente o porquê", descreve.

Além disso, diz ele, outra face da tortura é a sua adoção como "método investigativo" para que supostos criminosos confessem delitos ou "abram o bico" sobre provas. Nesse contexto, ressalta o procurador, reside uma realidade cruel: a da tortura como um ato que se perpetua justamente porque produz resultados efetivos. "Não é feita por psicopatas, nada disso", explica. "É uma escolha racional, que fará com que aquele profissional ganhe credibilidade e passe a ser visto como eficiente em sua instituição."

De acordo com estatísticas do SOS Tortura, as delegacias de polícia apareceram como os locais onde se torturou com maior freqüência (47,2% das denúncias). É nas carceragens da Polícia Civil que muitos suspeitos ficam presos durante o inquérito, à mercê justamente de quem vai investigar o crime – e, não raro, em total incomunicabilidade com o mundo exterior. "Constatou que a maioria dos suspeitos acreditava que suas famílias não haviam sido informadas de sua prisão e seu paradeiro", atesta o relatório da ONU de 2000.

Unidades para condenados ou para acusados que aguardam julgamento presos – penitenciárias, centros de detenção provisória, etc. – também surgem em destaque no panorama do disque-denúncia (26,9% dos casos). Segundo o padre Gunther Zgubic, coordenador nacional da Pastoral Carcerária, a tortura é uma realidade histórica nas relações de poder que permeiam esses locais.

Para exemplificar, o religioso relata um caso ocorrido no Complexo do Carandiru poucos anos antes de sua implosão. Um preso foi proibido de receber visita íntima porque sua mulher não obteve um crachá necessário. Em represália, atacou o agente que negou a autorização, provocando cortes superficiais. "Levaram-no do Pavilhão 9 até a sala da diretoria, espancando-o com canos de ferro", diz. Lá, descreve o padre, foram convocados os agentes novatos para uma espécie de ritual de batismo. "Isso era uma tradição", afirma. "O novo funcionário tem medo dos outros, e, depois que bate uma vez, nunca mais pode abrir a boca, porque também é torturador."

Políticas públicas
Atualmente, uma das principais propostas do governo federal para mudar essa realidade é a saída dos Institutos Médico-Legais (IMLs) do organograma das secretarias de Segurança Pública. A importância da perícia médica para obter provas em casos desse gênero é ressaltada por Pedro Montenegro, da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) – órgão que coordena o Plano de Ações Integradas. Ele afirma que a medida fortalecerá a independência desses institutos. "Se há uma denúncia de tortura em uma delegacia, é o próprio delegado quem vai ter de requisitar a perícia. Veja só que contradição."

Instituto Médico Legal de Pinheiros, em SP: falta
de independência do órgão complica apuração
de casos de tortura (Foto: Valter Campanato/ABr)

Luiz Carlos Galvão, presidente da Associação Brasileira de Medicina Legal, é favorável à separação. Ele afirma ser o Brasil um dos seis países do mundo em que a perícia está vinculada ao poder repressor (somente no Amapá e no Pará há IMLs autônomos). "Existe interferência direta, de intimidação mesmo", queixa-se.

Luiz Carlos ressalta que já houve legista com proteção da Polícia Federal devido a ameaças por conta de laudo que indicava tortura policial. Além disso, diz ele, o órgão é financeiramente desvalorizado na atual estrutura, o que leva a seu sucateamento.

No sistema prisional, sempre que alguém entra, sai ou é transferido, precisa passar pelo exame de corpo de delito. Durante esses procedimentos, são freqüentes os relatos sobre policiais que ficam na sala do médico, inibindo denúncias da vítima. Como se não bastasse, há casos em que o detido nem sequer é levado para a elaboração do laudo. Luiz Carlos defende a necessidade de exames periódicos nas pessoas privadas de liberdade. "Eles fazem o legista de palhaço", reclama. "Levam o camarada para você atestar que não há lesão e depois espancam, escondem, transferem de uma delegacia para outra. Depois, deixam-no incomunicável até que desapareçam as lesões."

Tais práticas fazem parte do que padre Gunther define como a "tática da transferência". Com a vítima de tortura sendo realocada, a apuração de denúncias perde-se na burocracia das notificações de translado, adiando em até meses a realização de um laudo médico. Gunther afirma que, muitas vezes, o juiz de execução penal – responsável por acompanhar as pessoas colocadas no sistema prisional – nem sabe quem está preso em sua jurisdição. "São Paulo se impôs, pela massa dos presos, que a própria Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) transfere sem precisar perguntar ao juiz", alega. "Por lei, seria o juiz que deveria autorizar [a transferência]".

Outra crítica diz respeito à lacuna de investimentos em policiamento investigativo. Luciano Maia lembra que há falta de treinamento e de agentes – e que, nesse contexto, "o suspeito torna-se fonte preciosa de informação". A valorização da perícia criminal, importante inclusive para solucionar casos de tortura, é defendida por Antonio Funari Filho, ouvidor da Polícia de São Paulo. "É preciso punir severamente a não manutenção do local do crime", afirma. "Desde que estou nesta função, não recebi nenhuma notícia de perícia feita no local de tortura", completa Pedro. Ele cita dados do Fundo Nacional de Segurança Pública para exemplificar a falta de atenção à área: em 2006, o montante destinado à perícia foi de apenas 4% dos recursos repassados aos estados.

Assim como no caso dos médico-legistas, a SEDH também defende a saída dos peritos criminais da estrutura da policia. "Se o secretário de Segurança tiver que fazer uma escolha entre comprar cem viaturas ou um comparador balístico (equipamento capaz de determinar a arma que disparou um projétil específico) que ninguém vai ver, ele vai comprar cem viaturas. Isso é óbvio", opina Pedro.

"Não à emancipação dos IMLs"

Especial – Tortura
Parte II – Impunidade e monitoramento débil favorecem abusos
Parte III – Histórias de quem foi algoz e vítima em casas de reclusão 

* Esta reportagem foi publicada em parceria com a revista Problemas Brasileiros

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