13 de maio

Aos 125 anos da abolição, historiadora defende importância de combate à escravidão contemporânea

Para a professora Angela Maria Gomes, associar a escravidão antiga à sua forma contemporânea dimensiona de modo claro a violência contra a dignidade humana
Por Guilherme Zocchio
 12/05/2013
Angela Maria de Castro Gomes Foto: Arquivo Nacional
Professora Angela Maria de Castro Gomes Foto: Arquivo Nacional

Nesta segunda-feira, 13 de maio, celebra-se os 125 anos da Abolição no Brasil. A escravidão, porém, está longe de acabar no país. Nesta entrevista exclusiva, Angela Maria de Castro Gomes, professora do departamento de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas, defende a importância de se chamar a atenção para  esta violação que, apesar de abolida oficialmente, continua presente, sob novas formas. Ela defende o conceito de “trabalho escravo contemporâneo”, e afirma que sua  dimensão política e simbólica deve ser ressaltada. “É inaceitável que pessoas ainda trabalhem e vivam submetidas a esse tipo de condição”, diz.

O trabalho escravo contemporâneo no Brasil está definido pelo artigo 149 do Código Penal e é crime. Ela ressalta que o conceito foi estabelecido  a partir do engajamento de atores sociais em uma disputa política na sociedade brasileira, e deve ser valorizado por “fazer um laço com a sociedade” e transmitir “de forma rápida e clara” como se dá a exploração de milhares de pessoas no país.

Qual a importância de se usar o termo escravidão contemporânea?
No dia 13 de maio essa questão volta de uma maneira muito forte. Estamos falando de um fenômeno contemporâneo, que significa a exploração sobre as condições de trabalho e de vida.  Este conceito é significativo porque reúne significados políticos e sociais muito fortes. Essa designação não veio nem espontaneamente nem naturalmente. Foi, na verdade, objeto de disputa e é importante falar em “trabalho escravo contemporâneo” porque temos um histórico secular, em que a figura do escravo materializa para a sociedade exatamente aquela pessoa que está submetida a condições de trabalho e de vida sub-humanas. A designação é capaz de fazer um laço com a sociedade, e é capaz de transmitir a ideia de forma rápida e clara.

Qual é o conceito de  trabalho escravo?
O que se entende por trabalho escravo é algo que o próprio Código Penal define. Até 1940, este conceito não existia na legislação. Entrou em 1940 e foi mudado no ano de 2003. Isso aconteceu porque houve pressão e alianças entre agentes privados e públicos que lutaram para essa reformulação. Houve uma expansão do conceito. Durante bastante tempo, a ideia estava ligada à condição de submissão que implicava na perda de liberdade. Isso vinha de uma conceituação clássica do que é escravidão, que basicamente significava “supressão da liberdade”, quando um homem era propriedade de outro e, com isso, perdia a sua liberdade. A grande mudança extremamente eficaz no sentido de se poder reprimir e entender esse fenômeno novo é que o conceito de trabalho análogo ao de escravo hoje encobre igualmente as pessoas que estão submetidas a condições que são chamadas de condições degradantes e humilhantes de trabalho. Essas pessoas podem até ir e vir, mas a maneira elas estão trabalhando e vivendo é indigna para a pessoa humana.

Costureiro escravizado foi resgatado produzindo peças em São Paulo. Foto: Guilherme Zocchio
Costureiro escravizado foi resgatado produzindo peças em São Paulo. Foto: Guilherme Zocchio

A questão da dignidade é a principal diferença?
Sim. Porque, a partir da segunda metade do século XX, há uma transformação internacional no que se refere à compreensão de formas de se tratar a pessoa humana. Pessoas não podem ser submetidas a determinadas condições de vida e de trabalho. Não se pode retirar a dignidade das pessoas.

Alguns magistrados entendem que o trabalho escravo  é apenas uma ofensa aos direitos trabalhistas. Acompanhamos recentemente o caso de um juiz federal que negou o processo  e não reconheceu a escravidão. O que pensa disso?
Durante muito tempo no Brasil não estava muito claro quem tinha a competência de julgar casos de trabalho escravo: se seria a Justiça Federal ou a Justiça Estadual. Mas ficou decidido que é a Justiça Federal que tem essa competência. Hoje não há dúvidas com relação a isso. Além disso, trata-se de um crime que ofende direitos do trabalho, e, portanto, também diz respeito à Justiça do Trabalho. Vale ressaltar que muitas vezes é a partir do desrespeito aos direitos do trabalho que se chega a localizar pessoas em situação de escravo e a estender essa ideia. É a ponta do iceberg.

Por que temos deputados e senadores que dizem que não existe trabalho escravo e que reclamam constantemente de supostos abusos da fiscalização?
A situação é complexa, porque há grande empresas, inclusive multinacionais, envolvidas nessa prática criminosa. São interesses poderosos economicamente e politicamente, gente com voz no Parlamento. Uma das formas de se opor é exatamente dizer que está havendo “abuso” da fiscalização. Deve-se compreender isso dentro da dinâmica de resistência ao avanço dos procedimentos de fiscalização e de repressão. O trabalho escravo hoje é encontrado no campo, no interior do país, mas igualmente em áreas urbanas. É importante destacar que isso não está ligado somente a condições de trabalho “não modernas”. E a resistência se dá de formas variadas, inclusive com pistolagem. Há o caso dos auditores fiscais do MTE que foram assassinados na chamada Chacina de Unaí.

O trabalho escravo está associado ao lucro então?
Exatamente. Há trabalhadores que acabam não ganhando nada, ou, se ganham, o valor é absolutamente irrelevante. Geralmente eles têm baixa qualificação profissional, alguns são imigrantes. Os processos de endividamentos dessas pessoas começam, às vezes, com o custo do deslocamento,  muito antes de elas iniciarem efetivamente o trabalho. E essas pessoas que não recebem nada são muitas vezes são vistas como descartáveis. Algumas sofrem desgaste físico enorme e morrem. Mesmo com liberdade de ir e vir, o trabalhador não aguenta depois de um tempo, exatamente porque é humanamente impossível aguentar. Há casos de trabalhadores no corte de cana que morreram pelo excesso de trabalho. Isso não pode acontecer no século XXI.

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Trabalhadores resgatados produzindo carvão em condições degradantes em Goiás. Foto: MTE

Como prevenir aliciamento de pessoas ao trabalho escravo?
O próprio governo tem a lista com empresários e empresas flagrados, a “lista suja”, que implica em restrições a créditos governamentais. Também há iniciativas importantes da sociedade civil. No setor do carvão, por exemplo, onde a exploração aparece junto de crimes ambientais, o Instituto do Carvão Cidadão certifica que a origem desse produto não envolve trabalho escravo e presta auxílio àquelas pessoas submetidas à condição de escravo. É claro que políticas em relação ao trabalhador são fundamentais para complementar e prevenir a questão. Os auditores, os procuradores e os nossos magistrados vêm se empenhando em ações de propaganda, no sentido de prevenir o aliciamento de pessoas e mostrar para os trabalhadores qual a forma que se recruta para esse trabalho e que deve ser denunciada. As ações de fiscalização avançaram nesse sentido. Começaram sistematicamente em 1995. Logo vamos ter 20 anos de combate. Evidentemente não acabamos com a exploração, mas hoje há muito mais gente que sabe que essa é uma prática criminosa.

O Brasil é modelo no combate à escravidão?
O país tem agido corretamente e o combate é política de Estado, o que é fundamental. Não se trata de uma política de um governo específico. Muda o governo e continua a política. As ações de auditores, procuradores, magistrados, as ONGs e sindicatos de trabalhadores não foram suficientes para erradicar a escravidão, mas o efeito é positivo. É claro que existem dificuldades, inclusive no Parlamento.

Poderia ser pior?
Não tenho a menor dúvida. Seria muito pior porque evidentemente os interesses favoráveis à manutenção e ao aprofundamento dessa prática teriam muito mais força. E é inaceitável que pessoas ainda trabalhem e vivem submetidas a esse tipo de condição.

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