‘Já pagamos pela terra com nosso sangue’: três anos após chacina de Pau D’Arco, sobreviventes vivem ameaça de nova ação policial

Cerca de 150 famílias de trabalhadores rurais continuam na Fazenda Santa Lúcia e podem ser despejadas sem ter para onde irem. Áudio obtido pela 'Repórter Brasil' mostra pressão de juiz sobre prefeito para abrir caminho à reintegração de posse
Por Maurício Monteiro | Fotos: Lunaé Parracho
 23/05/2020

Passados três anos do maior massacre rural deste século no Brasil, os sobreviventes e as 150 famílias que vivem no palco do conflito – a fazenda Santa Lúcia, em Pau D’Arco, no Pará –, seguem divididos entre a incerteza sobre a permanência na terra e os pedidos por justiça. E vivem sob ameaça constante de uma ação policial para reintegração de posse.

Em 24 de maio de 2017, dez camponeses foram brutalmente executados por policiais dentro da fazenda.

Quinze agentes – sendo treze militares e dois civis – foram indiciados e chegaram a ser presos, mas foram soltos em 2018 e respondem ao processo em liberdade. O que faz com que sobreviventes e seus algozes tenham de conviver pelas ruas de Pau D’Arco e da cidade vizinha de Redenção.

Nenhum mandante da chacina foi identificado até hoje.

Se algum consolo para as vítimas parece distante na esfera criminal, a desesperança é ainda maior quanto ao processo sobre a posse da terra.

Desde o final de 2013, mais de três anos antes do massacre, tramita na Justiça do Pará uma ação movida pelo proprietário da fazenda, Honorato Babinski Filho, que busca remover os ocupantes da área. Para o advogado de defesa dos sem-terra, José Vargas Júnior, o que se seguiu até hoje é uma mostra de que a Vara Agrária de Redenção, que preside a ação, não exerceu seu papel de mediar o conflito. “A vara agrária atua como despachante de latifundiário”, declara Vargas.

Jovem protesta durante a audiência judicial, em fevereiro de 2020, sobre reintegração de posse da Fazenda Santa Lúcia, em Pau D’Arco (Foto: Lunaé Parracho)

Para o advogado dos sem-terra, o processo ilustra o caos fundiário em que o Pará está imerso. A lentidão do Judiciário local, diz, agrava a situação. A última audiência realizada no âmbito do processo é emblemática. Realizada em 3 de fevereiro deste ano, o encontro aconteceu envolto em polêmica. 

Isso porque, dias antes, o juiz titular da ação, Haroldo Silva da Fonseca, juntamente com sua assessora, Camila Lobo, fizeram uma visita ao prefeito de Pau D’Arco, Fredson Silva Pereira (PSDB). O objetivo do magistrado era pressionar o prefeito por um local, mesmo que inadequado e de maneira provisória, para abrigar as famílias que ocupam a área “por dois ou três dias”, já que ele ordenaria o cumprimento de um mandado de reintegração de posse.   

A Repórter Brasil teve acesso a áudio exclusivo do encontro. O prefeito disse que não possui um local com estrutura adequada para receber as cerca de 150 famílias que vivem em uma área da fazenda. 

Mesmo diante das negativas do prefeito, o juiz e sua assessora insistiram. “Aqui [em Pau D’arco] não tem nenhum galpão, uma sede de sindicato, que vocês poderiam requisitar por dois, três dias? Ou uma quadra de esporte?”, questionou a assessora Camila Lobo. “Dessa envergadura, não. Com essa estrutura, não”, disse o prefeito. “Mas é igual eu te falei: não vai vir todo mundo”, emendou a assessora. “É desumano”, rebateu o prefeito.

Encontros entre juízes e prefeitos podem acontecer para discutir planos de remoção de famílias e estão previstos em lei. No entanto, a pressão feita para que o prefeito encontre um local, mesmo que inadequado e temporário, pode significar não cumprimento à resolução 10 do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, de 17 de outubro de 2018, que estabelece as diretrizes para garantia dos direitos humanos em situações de conflitos fundiários. 

A resolução orienta que o juiz é o responsável por garantir que a realocação de famílias ocorra em local “pronto (construção de casas, fornecimento de água, saneamento, eletricidade, escolas, alocação de terras e moradias) antes da remoção da comunidade, respeitando os elementos que compõem a moradia adequada”. Em nenhum trecho a resolução autoriza o magistrado a determinar o local provisório de realocação. 

Juiz pressiona por remoção

A liminar de reintegração de posse havia sido aceita pelo juiz Silva da Fonseca, marcando a remoção das famílias para acontecer entre os dias 27 a 31 de janeiro de 2020. Mas, diante de recurso da associação que representa os ocupantes da Santa Lúcia, a medida foi suspensa pela juíza Elaine Neves de Oliveira durante as férias do titular. 

Entre os argumentos para o cancelamento da liminar, a magistrada citou justamente a indisponibilidade do município de Pau D’Arco para realizar a remoção das famílias.

Na conversa registrada em áudio, no entanto, identifica-se, no discurso do magistrado e de sua assessora, uma urgência em definir um plano de remoção às pressas, mesmo diante das alegações do prefeito de que não dispunha de meios para atender ao pedido. “Eu quero ver o que vocês podem nos dar em termos de estrutura para o dia dessa desocupação, porque de qualquer forma ela vai ser determinada”, disse o juiz na gravação, logo no início do encontro.  

Na audiência, reintegração de posse foi adiada para junho, pois surgiu a possibilidade de que os trabalhadores comprem a terra por meio de crédito fundiário (Foto: Lunaé Parracho)

Em entrevista na época à Repórter Brasil, Silva da Fonseca afirmou que pediu a reunião com o prefeito para saber qual estrutura física da cidade poderia receber as famílias. “Essa reunião não foi secreta nem sigilosa, foi uma reunião aberta. Uma preocupação que o juízo teve em, sendo cumprida essas determinações de desocupação, se ter cumprimento aos termos da resolução 10.”

Ele afirmou que a conversa tinha como objetivo “dar o mínimo de condições para que não seja desumana [a remoção], como o prefeito afirma”. Sobre a realocação temporária, o magistrado explicou que as famílias teriam que “voltar para o local de origem”, já que elas seriam “provenientes de um assentamento ao lado”. “Estou aqui para resolver questões processuais como magistrado. As questões sociais subjacentes cabem ao poder Executivo, que tem que dar condições para essas pessoas.”  

Já para o prefeito de Pau D’arco, Fredson Silva Pereira, o juiz “está bem duro na decisão de remover as famílias da área”. “Acredito que isso deve ser uma pressão por parte da dona da propriedade [a fazenda Santa Lúcia]”, disse. 

Ele afirmou também que, dias antes de receber a visita do juiz, foi procurado pelos advogados dos proprietários da fazenda, via telefone. Ele instruiu a assessoria jurídica da prefeitura a informar o mesmo que repetiu ao magistrado: Pau D’Arco não tem condição de abrigar as famílias hoje moradoras da Santa Lúcia. O município é o segundo menor do Pará, em população, com pouco mais de 5.500 habitantes. 

O advogado Ailtamar Carlos da Silva, que defende a família Babinski, disse à Repórter Brasil que o telefonema serviu para avisar o prefeito que não havia mais acordo para manter as famílias na área, já que o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) havia desistido de comprar o terreno. “Nós tínhamos um acordo com o Incra, mas que não foi cumprido. No atual governo, a direção do Incra nos disse que não ia mais pagar, que não tinha dinheiro e que não tinha interesse em resolver o problema”, afirmou o advogado.

Foi nesse clima de tensão, catalisado pela apreensão dos trabalhadores com a notícia do encontro entre juiz e prefeito, que a audiência do dia 3 de fevereiro começou. Vargas, advogado dos sem-terra, temia que o juiz pudesse determinar a reintegração imediatamente após o fim da sessão.

Ao fim da audiência, mesmo sob protesto do representante do fazendeiro Babinski Filho, o magistrado acabou por adiar novamente a reintegração para junho, pois surgiu a possibilidade de que os trabalhadores, por meio de uma nova modalidade de crédito fundiário, comprem a terra.

Embora essa alternativa possa significar um fim para a incerteza dos trabalhadores rurais e sua garantia de permanência na terra, ela não parece a melhor definição de justiça, no entender de Fernando dos Santos Araújo. Ele é um dos sobreviventes e viu seu namorado morrer na chacina. Chegou a entrar no programa de proteção a testemunhas, mas decidiu encarar o risco e voltar à Santa Lúcia. “A gente já pagou por essa terra. Com o nosso sangue”, disse ele ao magistrado.

Posse de fazendeiro é questionada

Advogando numa das regiões mais explosivas em termos de conflitos agrários do Brasil, e no estado que mais mata no campo, Vargas coleciona outras frustrações em relação ao processo da fazenda Santa Lúcia. 

Ele assumiu a representação dos trabalhadores apenas em 2017, mas a ação sobre a posse da terra já se desenrolava desde novembro de 2013. De acordo com o advogado, por quase três anos a defesa sequer foi corretamente citada, ou seja, convocada a se manifestar no processo. “De todos os princípios processuais, a citação das partes talvez seja o mais fundamental. Que conflito só tem um lado?”, protesta.

O maior sintoma dessa patologia processual, segundo o advogado, é a insistência do juiz em aplicar a reintegração de posse, ainda que documentos anexados à própria ação questionem a posse da terra pelo fazendeiro Babinski Filho.

Essa é, agora, a cruzada que Vargas pretende realizar nas instâncias superiores do Judiciário: discutir, afinal, quem tem a posse da Fazenda Santa Lúcia.

E é também com esse argumento que ele contesta a decisão do juiz Silva da Fonseca de manter a reintegração para junho. Segundo Vargas, o próprio Instituto de Terras do Pará (Iterpa), do governo estadual, desconsiderou um dos títulos apresentados por Babinski na ação por estar a quilômetros de distância da Santa Lúcia. “A cadeia dominial da fazenda não está totalmente formada no processo, só uma parte dela”, explicou o advogado dos sem-terra.

E esse não é o único problema. Existe a suspeita de que parte da propriedade seja, na realidade, composta por terras da União. “É inconcebível que a Vara Agrária de Redenção tenha movimentado todo o processo com o escopo apenas de fazer cumprir mandado liminar de reintegração de posse e não tenha um despacho sequer com o intuito de esclarecer a questão de dominialidade da área onde, em decorrência de sua malfadada atuação, foram mortos 10 trabalhadores rurais”, escreveu Vargas no recurso que apresentou ao Tribunal de Justiça do Pará.

O advogado Carlos da Silva contesta as afirmações. Ele diz que tanto o Incra como o Iterpa confirmaram nos autos que a fazenda pertence à família. “A fazenda Santa Lúcia não é terra pública, é terra de origem de domínio particular”, afirma.

Neste ano, por conta da pandemia de covid-19, os sobreviventes e ocupantes da Santa Lúcia não realizarão sua marcha ao memorial em nome das vítimas, como têm feito nos últimos dois anos. A homenagem será feita em um evento online em 29 de maio, nas redes sociais da Comissão Pastoral da Terra (CPT). A transmissão também vai lembrar o assassinato do casal de extrativistas Zé Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo, mortos em 2011 – no mesmo 24 de maio.

Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk, no marco do projeto PN: 2017 2606 6/DGB 0014, sendo seu conteúdo de responsabilidade exclusiva da Repórter Brasil


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