Desmatamento no Cerrado: controle feito por frigoríficos é pior do que na Amazônia

Apuração da Repórter Brasil analisou documentos oficiais e imagens de satélites que mostram derrubada sem permissão de mata em fazendas do Cerrado, que são fornecedoras de gado aos dois maiores frigoríficos do país: JBS e Marfrig
Por André Campos e Carlos Juliano Barros | Foto: Adriano Gambarini (WWF Brasil)
 10/06/2020

Celeiro do agronegócio brasileiro e “caixa d’água” das bacias hidrográficas de biomas como Amazônia, Caatinga e Pantanal, o Cerrado já perdeu metade da sua cobertura vegetal original para pastagens e lavouras como soja, milho e algodão. Apesar de o ritmo de desmatamento ter caído nos últimos dois anos, o desmatamento ilegal de novas áreas, do Mato Grosso à Bahia, segue acontecendo — e preocupando. 

Se a Amazônia tem cerca de 70% de áreas públicas e boa parte de seu território protegido por unidades de conservação e terras indígenas, o Cerrado está majoritariamente nas mãos do setor privado. E é ponto pacífico entre ambientalistas que tanto as políticas governamentais como as iniciativas de produtores rurais e empresas do agronegócio deixam a desejar quando o assunto é a preservação da savana brasileira. 

Na indústria da carne, as diferenças entre os dois biomas são bastante visíveis. “Na Amazônia, devido à pressão que acontece há mais de dez anos, houve um avanço significativo na gestão de cadeia de fornecedores dos frigoríficos”, afirma Daniela Teston, gerente de engajamento corporativo da WWF Brasil. Mas não se pode dizer o mesmo do Cerrado.

Uma investigação da Repórter Brasil levantou documentos oficiais e imagens de satélites que apontam desmatamento não autorizado em fazendas do Cerrado que fornecem gado às duas maiores companhias de proteína animal do país: JBS e Marfrig.  

Ambas já são signatárias de um acordo com o Ministério Público Federal (MPF) que desde 2009 proíbe o abate de gado proveniente de terras indígenas, reservas ambientais e fazendas abertas sem permissão dos órgãos competentes no bioma amazônico. No caso da JBS, o grupo assinou um compromisso mais abrangente em 2011, válido para a chamada “Amazônia Legal” – região administrativa que não se restringe ao bioma amazônico e também engloba áreas de Cerrado.    

Um dos exemplos pesquisados pela reportagem é o da Fazenda Prata, no município de Paranatinga (MT). A propriedade da empresa RLA Gonçalves Agropecuária tem mais de 41 mil hectares — o equivalente a 260 parques do Ibirapuera, o mais conhecido da cidade de São Paulo. 

De acordo com um relatório técnico de maio de 2017, realizado por determinação do Ministério Público do Estado do Mato Grosso (MP-MT), o imóvel rural está localizado em uma “importante zona ecológica com elevada biodiversidade em região de transição entre Cerrado e Amazônia”. O laudo ressalta ainda a “proximidade de terras indígenas e a presença de 260 nascentes que drenam para o Alto Rio Xingu”. 

O mesmo relatório aponta que, entre 2011 e 2016, cerca de 616 hectares de vegetação nativa da fazenda foram suprimidos sem licença ambiental. A empresa responsável pela Fazenda Prata chegou a firmar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o MP estadual para recompor o passivo ambiental. No entanto, o monitoramento por satélites do sistema Prodes/Cerrado do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) revela novos desmatamentos sem permissão após esse período. 

(Arte: Rafael Mantarro/Repórter Brasil)

Entre 2018 e 2019, a Fazenda Prata forneceu animais para a unidade da JBS em Diamantino (MT) e para o abatedouro da Marfrig em Paranatinga. A RLA Gonçalves Agropecuária também transferiu animais da Fazenda Prata para engorda em outra propriedade do grupo, a Fazenda Diamante. Localizada no município de Poxoréu (MT), a estância forneceu gado a duas plantas frigoríficas da Marfrig no Mato Grosso. 

Procuradas, as duas companhias confirmaram a relação comercial com a RLA Gonçalves Agropecuária. Em nota, a Marfrig afirma que a unidade de Paranatinga teve suas operações encerradas em dezembro de 2019. O texto diz que a empresa está “iniciando negociações para a expansão do monitoramento geoespacial também para o Cerrado”. 

“É importante lembrar que, no bioma Cerrado, existem muitas fitofisionomias diferentes (cerca de 25 padrões de vegetação natural) que precisam ser estudadas com cautela para serem bem-sucedidas no processo de monitoramento geoespacial das áreas”, acrescenta a nota da empresa. “Mesmo assim, desde 2019 já estamos coletando mapas de nossos fornecedores no Cerrado para que, em um curto período de tempo, tenhamos elementos suficientes para realizar o monitoramento”.

Já a JBS não fez comentários específicos sobre o caso e afirmou que “a rastreabilidade de toda a cadeia da carne, embora seja uma tarefa complexa, pode ser alcançada no médio prazo”.

A reportagem também entrou em contato com a RLA Gonçalves Agropecuária. “A Fazenda [Prata] continua sendo uma das mais preservadas de toda a região”, afirma a nota emitida pela empresa. Sobre as áreas desmatadas, a companhia afirma que elas foram abertas décadas atrás e se enquadram no conceito de “uso consolidado”. Por fim, o texto diz que “qualquer passivo eventualmente existente tem prazo hábil com amparo legal para fazer o procedimento de regularização”. No entanto, os esclarecimentos fornecidos pela empresa não condizem com as imagens de satélite e com os relatórios técnicos do MP, que apontam desmatamento recente na propriedade. 

Após a publicação da reportagem, a empresa RLA Gonçalves Agropecuária enviou e-mail com novos esclarecimentos. Sobre o acordo firmado com o MP-MT, a nota diz que “legalmente os TACs devem ser adequados à legislação vigente e, de acordo com o novo Código Florestal, estamos totalmente adequados”. A empresa sustenta ainda que a Fazenda Prata “tem reserva legal em excesso, áreas de preservação permanente preservadas e nenhum passivo ambiental. Não tendo, portanto, motivo para qualquer restrição”. A íntegra das respostas pode ser lida aqui

A Repórter Brasil também investigou outro caso envolvendo uma propriedade rural que fornece gado à JBS de Diamantino: a Fazenda Lua Clara, localizada em uma área de Cerrado no município de Campos de Júlio (MT). 

Em 2015, uma operação da Sema-MT (Secretaria de Estado do Meio Ambiente do Mato Grosso) em conjunto com a Polícia Militar multou o proprietário da fazenda — Eric Von Wagner — em R$ 354 mil por derrubar mata sem autorização. Três anos depois, ele foi novamente autuado pela Sema-MT, desta vez por desmatamento irregular nas margens de uma estrada que atravessa a fazenda.

O sistema de monitoramento do Inpe revela que, entre 2015 e 2016, um total de 835 hectares foi suprimido na Fazenda Lua Clara. No sistema da Sema-MT, não há nenhuma permissão para desmatamento.

Eric Von Wagner chegou a ser contactado pela reportagem, mas se negou a responder as perguntas sobre as áreas desmatadas. A Sema-MT também foi procurada e questionada sobre os dois casos investigados, mas não respondeu até o fechamento desta matéria. Já a JBS se pronunciou por meio de nota. “Para promover a transparência de suas ações, as operações de compras de gado e todo o sistema de monitoramento de fornecedores da Companhia são auditados anualmente, de forma independente”, afirma o texto.     

Rastreamento

“Para controlar o desmatamento do Cerrado, precisamos de um compromisso não só das empresas que compram gado, como daquelas que comercializam grãos, com o Ministério Público e com a sociedade civil, assim como já ocorre na Amazônia”, afirma Daniel Avelino, secretário-executivo da Câmara de Meio Ambiente e Patrimônio Cultural do MPF. 

Avelino é um dos coordenadores do Termo de Ajustamento de Conduta firmado em 2009 com mais de uma centena de frigoríficos que operam na Amazônia. O acordo é considerado um dos mais eficazes mecanismos de combate à destruição da maior floresta do planeta. “Precisamos construir algo nesse sentido para o Cerrado também – ele está em condições piores”, lamenta. 

(Arte: Rafael Mantarro/Repórter Brasil)

Nos últimos anos,  surgiram ferramentas para mapear o desmatamento e depurar a cadeia de fornecedores. A mais significativa é o rastreamento da devastação por imagens de satélite. Desde 2018, o Inpe estende ao Cerrado o mesmo acompanhamento que realiza há décadas na Amazônia, com alertas sobre focos de incêndio e um arquivo de imagens com o histórico de derrubada da vegetação. “Apesar de existir há dois anos a publicação de dados de desmatamento pelo Prodes/Cerrado, os frigoríficos ainda não incorporaram essas informações aos seus sistemas de monitoramento”, analisa Daniela.  

“É inacreditável ainda não haver um sistema de rastreamento eficiente para carne e para grãos [no Cerrado]. Tecnologia existe. Know-how existe. Sistemas de monitoramento para acompanhamento desse rastreamento existem. Não tem desculpa técnica para não fazer”, afirma André Guimarães, diretor-executivo do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia). 

A retórica dos governos federal e estaduais de estímulo à expansão da agropecuária e de afrouxamento da política ambiental também preocupa. 

“A redução da fiscalização vem acontecendo de maneira generalizada. E em muitos estados há também uma facilidade para se conseguir autorização de supressão vegetal”, analisa o diretor de conservação e restauração de ecossistemas da WWF Brasil, Edegar Oliveira. “Toda a metodologia para combater o desmatamento no Cerrado está disponível. A barreira que a gente tem é política e operacional, de fazer a coisa de fato andar”, finaliza. 

Nota de redação: a reportagem foi atualizada em 11 de junho de 2020, às 12h46, para inserir um posicionamento atualizado da empresa RLA Gonçalves Agropecuária.

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