Amazônia produz para fora e riqueza não gera bem estar social

No dia em que se encerra o ciclo de consultas sobre o plano de desenvolvimento da Amazônia do governo federal, pesquisadores e ambientalistas avaliam erros conceituais que transformaram região em produtora de riqueza para outros estados ou até o exterior e deixaram no subdesenvolvimento socioambiental 61% do território brasileiro
Verena Glass
 23/06/2006

Nesta sexta feira (23), terminou no Acre o ciclo de consultas públicas realizadas pelo governo federal em Brasília e nas capitais dos nove estados que compõe a Amazônia Legal – Cuiabá (MT), Belém (PA), Macapá (AP), Porto Velho (RO), Boa Vista (RR), Palmas (TO), São Luís (MA), Manaus (AM) e Rio Branco (AC) – para discutir o Plano Amazônia Sustentável (PAS), projeto que, em tese, definirá as macrodiretrizes que deverão balizar as ações do Estado para o desenvolvimento da região.

Segundo o Ministério do Meio Ambiente (MMA), que conduziu o processo, o PAS apresentaria "uma visão para um futuro sustentável da Região com base em um diagnóstico do seu desenvolvimento nas últimas décadas", ampliando a presença do Estado, garantindo a aplicação da legislação, fazendo o ordenamento fundiário e organizando os investimentos em infra-estrutura. Ou seja, o PAS seria um guarda-chuva conceitual ou marco para todas as opções políticas para o desenvolvimento da Amazônia.

Favorável à idéia em si, movimentos sociais e ambientalistas da região, no entanto, nem bem começou o processo de consultas públicas, fizeram duras críticas tanto ao conteúdo quanto ao processo de concepção do PAS. Em documento divulgado no dia 26 de maio, o grupo de trabalho sobre florestas do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o meio ambiente (FBOMS) afirmou que "a versão do Plano submetida à consulta não introduz perspectivas concretas de inovação, carece de qualquer recurso ou instrumento de implementação e ainda está na contramão, do ponto de vista conceitual, dos recentes anúncios de grandes investimentos na região por parte do governo federal".

Segundo Adriana Ramos, coordenadora de políticas públicas do Instituto Socioambiental (ISA), o maior problema do processo de debates do PAS é que logo de início o Plano não tem encontrado respaldo nem nos diversos setores do governo, dados os desencontros entre o MMA e os Ministérios da Agricultura, Minas e Energia e Integração, que estariam encaminhando projetos na Amazônia à revelia dos debates do PAS.

Ou seja, nos últimos três meses, segundo o FBOMS, o governo teria liberado, sem consultas públicas, 32 bilhões para investimentos na região para "atender interesses externos à mesma, tais como subsídios para o grande agronegócio, grandes hidrelétricas e pavimentação de estradas (todas atividades desprovidas até mesmo de licença ambiental)". "Trata-se de uma abordagem que o modelo concebido pelo PAS deveria justamente substituir, sendo que, ironicamente, o mesmo foca a necessidade de evitar, como no passado, que objetivos gerais do país como um todo sejam meramente transferidos para a Amazônia", afirma o documento do FBOMS.

Voltando às consultas públicas do PÁS, o atropelo que, segundo os movimentos sociais, caracterizou grande parte do processo – a maior reclamação foi que o documento a ser analisado só teria sido disponibilizado em cima da hora –, levou ao seu abandono pelas organizações sociais em Rondônia e a críticas em outros estados, como o Pará.

Em Porto Velho, “as falas [do governo] enfatizaram principalmente as grandes obras de infra-estrutura para a Amazônia, a exemplo da construção do gasoduto Urucu-Porto Velho e Hidrelétricas do Rio Madeira, sem tratar do PAS especificamente. Inclusive foi ressaltado que o PAS já está em execução parcial, através do PPA e outros instrumentos. Então para que discuti-lo, se ele já está em execução?”, questionou Silvanio Martins, coordenador regional da rede Grupo de Trabalho Amazônico (GTA) de Rondônia.

Em Belém, por considerarem insuficiente o resultado da consulta, os movimentos solicitaram a inclusão posterior no documento do PAS de um debate que será realizado pelas sociedade civil no fim deste mês.

QUE DESENVOLVIMENTO?

Com aproximadamente 5 milhões de quilômetros quadrados, a Amazônia Legal correspondente à cerca de 61% do território brasileiro é grandiosa em todos os sentidos: como pulmão do mundo, recordista em desmatamento, maior detentora de biodiversidade do planeta, pólo de conflitos.

Para ilustrar, alguns números: a Amazônia abriga cerca de 20 milhões de pessoas. 99% da área total das Terras Indígenas formalmente reconhecidas pela Funai ficam na região, e cobrem cerca de 97,4 milhões de hectares (ha). Unidades de Conservação criadas nos últimos anos protegem legalmente cerca de 48 milhões de ha. Mas a grilagem, principal fator de desmatamento da floresta amazônica, já abocanhou, segundo dados da CPI da Grilagem de Terras de 2001, mais de 100 milhões de ha de terras públicas. Nos últimos quatro anos, foram assassinadas 154 pessoas em conflitos pela terra, conforme levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Na última década, segundo a Confederação Nacional da Agricultura (CNA), o rebanho bovino da Amazônia Legal teve um crescimento de 194%, atingindo hoje cerca de 65 milhões de animais. Ainda de acordo com a CNA, no mesmo período a área de produção de soja cresceu 145%, ocupando cerca de 10,8 milhões de hectares.

Nos últimos três anos, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), os índices de desmatamento têm se mantido acima de 23 mil km², número superior aos da época da ditadura militar. Como exemplo dos impactos da devastação, ainda segundo pesquisadores do INPA, 43 a 50 milhões de aves e até 2 milhões de primatas foram diretamente afetados.

Diante deste universo, não é pequeno o desafio de planejar o desenvolvimento da Amazônia. Mas, historicamente, o ponto de partida da maioria dos planejamentos foi equivocado, avaliam pesquisadores e ambientalistas. Segundo Adriana Ramos, do ISA, o parâmetro adotado pelo poder público tem priorizado projetos que ainda fazem da Amazônia um produtor de riquezas para “exportação”, tanto para fora da região como para fora do país, e que contrapõe diametralmente a geração de divisas com o desenvolvimento regional. Nesse sentido, atividades como agropecuária, mineração e produção de energia, o forte da economia da Amazônia, pouco beneficiam as populações locais, carentes de infraestrutura básica como saneamento e comunicação, por exemplo.

“Os investimentos necessários são os nas soluções dos problemas sociais. A partir disto, a pergunta seria: o que, além de saúde, educação e emprego, precisa de recursos? Uma hidrelétrica como Belo Monte? Ou energia solar para as comunidades ribeirinhas, que poderiam até optar, avaliados os custos socioambientais, por Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs)? A pergunta prioritária é: os investimentos na região são para melhorar a qualidade de vida de sua população?
”, pergunta Adriana.

Na mesma direção, o paraense Tarcisio Feitosa, coordenador da CPT em Altamira e ganhador do premio Goldman Prize deste ano (considerado o Nobel do ambientalismo), avalia que, para os movimentos sociais que tanto tem criticado os grandes projetos infra-estruturais, na verdade o debate não é, por exemplo, o asfaltamento das grandes rodovias, mas o seu impacto.

“Eu também gostaria de ver a Transamazônica asfaltada, afinal nós aqui em Altamira ficamos quase seis meses isolados do resto do mundo. O problema é a política das laterais, o ordenamento fundiário das terras nas margens. A estrada que liga Altamira a Vitória do Xingu, quando era criança era margeada por uma porção de casas. Hoje são apenas duas fazendas, com algumas poucas pessoas cuidando do gado. Isto não gera renda”, exemplifica.

Por outro lado, considera Feitosa, é urgente que o Estado se faça mais presente na região e que permita a participação ativa da população local nos debates sobre desenvolvimento. “O movimento social nunca se furtou a discutir políticas públicas com o Estado. Ao contrário, sabemos muito bem para onde rumar. Pergunte a um pequeno agricultor o que pensa da educação e ele te dirá das Casas Familiares Rurais com a pedagogia da alternância. Pergunte sobre a produção, e ele falará do plantio sem queimadas. Pergunte aos comunitários de Porto de Moz, na reserva extrativista Verde Para Sempre, sobre a forma de produção, e eles falarão sobre planos de manejo comunitários. Para nós o processo está claro, fizemos experimentos durante anos e hoje sabemos como funciona”.

Na perspectiva da geração e distribuição de renda como fator de desenvolvimento, Feitosa acredita que seriam necessários investimentos em atividades que agregam valor aos produtos da região, “como uma indústria moveleira desenvolvida, que substituiria a exportação de toras cruas”.

Na mesma direção, o antropólogo do Museu Emilio Goeldi, Roberto Araújo, aponta como um bom modelo de políticas públicas o projeto elaborado para o Distrito Florestal Sustentável no Pará, área piloto para a aplicação da Lei de Gestão de Florestas Públicas do governo federal. O projeto prevê basicamente a regularização fundiária, o cadastramento de florestas públicas e o estabelecimento de assentamentos sustentáveis; investimento em estradas, com a pavimentação da BR 163, no contexto do Plano BR 163 Sustentável, a melhoria da trafegabilidade da BR 230 e a avaliação de navegabilidade dos rios da região; investimentos em energia com o projeto “luz para todos”, na distribuição, e o aproveitamento de biomassa, para produção; e no setor produtivo, recursos para a produção florestal sustentável, a integração de agricultura, pecuária e floresta, boas práticas de mineração, turismo sustentável, pólos industriais e arranjos produtivos locais, pesquisa e desenvolvimento tecnológico, e instrumentos de crédito e incentivos.

Em perspectiva complementar, o pesquisador do INPA, José Benatti, acredita que, do ponto de vista industrial e macro-econômico, o potencial da biodiversidade da Amazônia é outro setor que mereceria mais investimentos em pesquisa e desenvolvimento de produtos. “Teríamos que ter grandes centros de pesquisa farmacêutica para explorar a biodiversidade e agregar valor aos seus produtos, por exemplo”, sugere Benatti. Segundo ele, isto levaria inclusive o Estado a elaborar melhor a legislação que versa sobre crimes de biopirataria e acesso a conhecimentos tradicionais e repartição de benefícios, para evitar problemas e danos às comunidades tradicionais.

“Mas o que vemos é que tem dinheiro para quem gera dinheiro. Para a soja…”, lamenta Benatti.

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