Discordo das opiniões que dizem que o programa de governo do presidente Lula para a reeleição – lançado hoje – seja muito superficial, pelo menos no que diz respeito ao campo.
É claro que aquela revista de pouco mais de 30 páginas é incapaz de expor como o poder executivo federal vai tocar o Brasil nos próximos quatro anos. Em 2002, foram 73 páginas de plano e mais 16 cadernos temáticos – o que já era pouco. A campanha atual prometeu lançar cadernos específicos para cada setor, mas já estamos a um mês da eleição. E se considerarmos que muitas propostas que estão no plano recém-lançado não são novidade, mas apenas inércia do atual mandato, com seus vícios e virtudes, esse é um bom texto para mostrar que as mudanças vão continuar no ritmo em que estão.
O programa é mais específico no que diz respeito ao interesse do grande capital e mais genérico nas demandas dos povos do campo. Além disso, metas que beneficiariam a população mais pobre, e que deveriam estar citadas mesmo que de forma superficial, não aparecem.
Antes de entrar na crítica ao plano propriamento dito, vale ressaltar duas coisas. Primeiro, que o Geraldo Alckmin, o principal adversário na disputa presidencial, não lançou seu plano de governo (deve terminar às pressas o seu documento e trazer à público em breve apenas por pressão da concorrência). Segundo, apesar dos seus problemas, este governo fez mais para a população do campo do que os anteriores. A não criminalização dos movimentos sociais, a abertura de diálogo e a possibilidade da participação popular na construção de um projeto alternativo, ainda que a passos curtos, já são suficientes para exemplificar isso. Pois as administrações anteriores privilegiaram religiosamente, a tradição, a família e a propriedade rural acima de tudo. Contudo, esperava-se mais desse plano de governo, até porque os integrantes da equipe de Lula têm mais conhecimento agora de como funciona a máquina pública do que na eleição passada.
O governo apenas propõe "manter a prioridade no combate ao trabalho escravo e infantil, na perspectiva de sua erradicação" (página 18). OK, mas qual candidato iria propor em um plano público algo diferente disso? Pois com exceção da direita agrária tinhosa, ninguém se arriscaria a perder votos defendendo a prisão de trabalhadores ou a exploração de crianças. Mas quais são as metas para se alcançar isso? E a aprovação da proposta de emenda constitucional que prevê o confisco de terras em que trabalho escravo for encontrado, que está rastejando na Câmara há 11 anos? Projeto que, aliás, era citado no plano de governo de Lula em 2002 como objetivo do poder executivo e que agora é apenas uma vaga lembrança no Planalto. E só se mantém acesa por ação de abnegados funcionários públicos, de entidades da sociedade civil e da Organização Internacional do Trabalho.
Por ação dessas pessoas, o combate ao trabalho escravo transformou-se em prioridade de Estado em 2003. Cerca de 5 mil trabalhadores foram libertados entre 1995 e 2002, enquanto que mais de 16 mil foram retirados de fazendas entre 2003 e hoje. Escravocratas são condenados a pagar indenizações, perdem o acesso ao crédito, perdem clientes. Mas a campanha à reeleição parece temer estabelecer metas reivindicadas pela própria Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo. Talvez porque a articulação política deste governo tenha feito tão pouco nesse sentido. Se as coisas caminharam no executivo federal nessa área, foi pela ação dos ministérios que atuam nas áreas sociais.
Espero que a falta de metas mais específicas no item que versa sobre "Trabalho e Emprego" não seja um sinal de que um ministério importante como esse vá entrar na negociação pós-eleição e cair na mão de um ministro como os do governo FHC, "imprevisíveis". Que geraram histórias mal-contadas, como a fracassada tentativa de encobrimento de uma libertação de escravos em fazendas de políticos da base governista.
Há no programa de governo de Lula diversos objetivos para o campo, mas a maioria é destinada ao desenvolvimento de áreas como infra-estrutura, cujos principais beneficiários são empresas nacionais e estrangeiras. Essas metas continuam colocando como prioridade a alternativa de crescimento econômico alavancado por grandes projetos, principalmente na região amazônica, seguindo uma fórmula que só garante a exploração de camponeses, quilombolas, indígenas e ribeirinhos. Fórmula testada com sucesso pela ditadura militar, diga-se de passagem.
Na mesma página 18, está a construção das hidrelétricas do Rio Madeira e Belo Monte, "com respeito às normas ambientais". Como se o projeto de criação dessas usinas já não fosse, por si, um desrespeito à proteção não só do meio ambiente, mas também às populações tradicionais que dele dependem para sobreviver. O Brasil não aprendeu nada com todo o processo das hidrelétricas de Tucuruí e Balbina.
Nas páginas 21 e 22, destaca-se a criação de unidades de conservação para incentivar a preservação ambiental. Mas não se fala, nessa meta, das comunidades expulsas quando são criados os parques nacionais – unidades que não têm conseguido garantir a preservação dos ecossistemas devido, entre outras coisas, ao sucateamento e corrupção no Ibama. O plano não propõe, por exemplo, um modelo novo em que se leve em conta populações ribeirinhas como parte do sistema de proteção ambiental. Sabe-se que o Ministério do Meio Ambiente vem caminhando nesse sentido, mas o plano de governo preferiu ignorar isso.
Nas páginas 19 e 20, está a ampliação e recuperação (leia-se, terraplanagem e asfaltamento) da BR-163, a rodovia Cuiabá-Santarém, para "escoamento de cargas e passageiros". A falta de sinceridade política impede que seja dito que a ampliação dessa rodovia é uma demanda do latifúndio monocultor e exportador e das tradings estrangeiras e nacionais para o escoamento da soja plantada na Amazônia Legal – comércio que ajuda o país a manter o superávit em nossa balança comercial. Para que possamos continuar pagando os juros da dívida e, assim, podendo contrair mais empréstimos. A vida do morador da BR-163 vai melhorar com o asfalto? Em um primeiro momento talvez sim, mas os efeitos devastadores do crescimento do agronegócio na região Oeste do Pará colocarão a pique todos os benefícios alcançados. Quem diz isso não são ambientalistas considerados "xiitas", mas gente de dentro do governo federal.
Talvez por não ter conseguido encarar a estrutura agrária do país como seria necessário par
a mudar a vida da população rural, não foi possível cumprir a meta de 400 mil assentados que o próprio governo sugeriu. Não há, neste plano, referência de quantas famílias serão assentadas ou quanto de recurso será destinado à reforma agrária em um segundo mandato. Como o governo está correndo neste final de ano para não ser cobrado por promessas de campanha, passou a assentar trabalhadores no estilo do governo passado ("Aqui está a terra. Até logo e passar bem"), e não do modo como começou o mandato. Como a população poderá cobrar algo nessa área sem um referencial quantitativo e qualitativo? Faltou coragem para ousar.
Dois temas aparecem juntos no mesmo item na página 15 – "Reforma Agrária e Política Agrícola". A dúvida é se isso foi preguiça dos diagramadores do documento ou se essa é a visão real de um provável segundo mandato sobre o tema. Foi uma conquista a separação da reforma agrária da política agrícola convencional com a criação do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Historicamente, as grandes somas de dinheiro não vão para reforma agrária ou financiamento da pequena produção, e sim para as propriedades ligadas ao agronegócio monocultor e exportador.
E perguntar não ofende: "Construir um novo modelo institucional para as comunicações, com caráter democratizante e voltado ao processo de convergência tecnológica" (páginas 17 e 18) significa que vai ser revista a decisão arbitrária do Ministério das Comunicações sobre a escolha do modelo japonês para a TV Digital? Caso contrário, já nasce morta a meta colocada em seguida e que diz respeito à democratização dos meios de comunicação no país.
"De um lado, o bloco conservador que governou o Brasil na década de noventa e nos primeiros anos deste século. De outro, as forças progressistas comprometidas com um projeto nacional de desenvolvimento popular, democrático e soberano que passaram a governar o Brasil desde janeiro de 2003. (…) Assim, as eleições de 2006 – mais do que quaisquer outras no passado – estarão marcadas por um enfrentamento político-ideológico que opõe um bloco social comprometido com profundas mudanças na sociedade brasileira àqueles que sempre utilizaram o poder do Estado em benefício dos interesses de uma minoria."
O programa de governo tem razão ao apontar a existência dessa dicotomia. Contudo, uma disputa tão importante quanto a que está sendo travada entre o candidato Alckmin e o presidente Lula é a que existe internamente entre grupos do poder executivo e que foi observada nos últimos quatro anos. De um lado, ministérios e funcionários públicos que atuam nas melhorias das condições sociais, econômicas, ambientais, políticas e culturais através de mudanças estruturais do país sob a ótica da população marginalizada e que precisa do Estado. Mudanças que poderiam levar a uma diminuição real da desigualdade, alçando à categoria de cidadão a maior parte dos brasileiros que hoje estão "do lado de fora". Vamos chamá-los de "engajados", só para irritar quem não gosta desse tipo de classificação.
Do outro lado, um grupo que defende a ideologia que sempre esteve no poder. Cujas medidas levam à centralização em detrimento à distribuição, ao escoamento irracional das riquezas, à dependência econômica, ao pragmatismo político que destrói as reservas naturais e o meio ambiente e que garante a manutenção do status quo no campo. Esses chamaremos , na falta de termo melhor, de "entreguistas".
Para alegria dos donos de bancos, como bem afirmou Olavo Setúbal, do Itaú, tanto faz quem ganhe, Lula ou Alckmin. Ou seja, os entreguistas têm conseguido se manter hegemônicos apesar das importantes conquistas dos engajados. O que está em jogo entre eles é um modelo de desenvolvimento, acima de tudo. Desenvolvimento que o presidente da República, na página 3 do plano, diz que será o nome de seu segundo mandato.
Resta saber qual dos dois grupos será a cara do período 2007 – 2010. Pelo programa de governo, temo que os entreguistas estejam em vantagem.
A íntegra do programa de governo pode ser baixada clicando-se aqui.