Acusação internacional

Brasil responde por execuções da Polícia de SP e por violações no presídio de Araraquara

Comissão Interamericana avaliará Operação Castelinho, realizada em 2002 pela PM e que terminou com execução de 12 pessoas. Já Corte Interamericana determinou a garantia da dignidade dos presos em Araraquara
Bia Barbosa
 20/10/2006

Em março de 2002, a Polícia Militar de São Paulo interceptou, na região de Sorocaba, a 96 km da capital, um ônibus e dois carros e exterminou seus ocupantes, supostos integrantes do PCC (Primeiro Comando da Capital) que estariam indo para a capital realizar um assalto. Ao todo, 12 pessoas foram mortas. Depois, descobriu-se a verdade: com a autorização de dois Juízes de Direito, alguns presos fossem libertados ilegalmente e recrutaram pessoas para a realização de um suposto assalto a um avião pagador, que jamais existiu. Há fortes indícios de que a denominada Operação Castelinho foi, na verdade, uma ação da Polícia Militar para eliminar essas pessoas, colocada em prática pelo Gradi (Grupo de Repressão e Análise dos Delitos de Intolerância). Criado para investigar crimes de intolerância social, sexual e religiosa, suspeita-se que o Gradi atue como cobertura legal para grupos de extermínio. O Grupo operaria retirando prisioneiros do sistema carcerário e os infiltraria em quadrilhas, montando emboscadas que resultam em mortes violentas e que ocorrem sob o argumento de “perdas em combate”.

Depois do ocorrido, a Procuradoria Geral de Justiça pediu a apuração do envolvimento do secretário de Segurança Pública, Saulo de Castro Abreu – até hoje no governo de São Paulo, e dos juízes Maurício Lemos Porto Alves e Octávio Augusto Machado de Barros Filho. Em fevereiro de 2005, desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo arquivaram o processo, alegando falta de provas contra os investigados. Como o Ministério Público não foi ouvido na ocasião, recorreu da decisão, e agora o processo está no STJ (Superior Tribunal de Justiça). Já a ação contra os 53 policiais militares e 2 ex-presos que participaram da operação caminha a passos lentos na Comarca de Itu-SP, enquanto que nenhuma das ações de indenização movidas pelos familiares das vítimas foi concluída.

Nesta quinta-feira (19), o Estado brasileiro teve que se manifestar perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA (Organização dos Estados Americanos) por conta da Operação Castelinho. Em 2003, a Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos (FidDH) enviou o caso à Comissão, pedindo a responsabilização do Estado diante da ausência de punição e responsabilização dos culpados por parte da Justiça brasileira. A audiência para ouvir as duas partes envolvidas – o Estado brasileiro e a entidade peticionária, que denunciou o caso à OEA, ocorreu em Washington, nos Estados Unidos, durante esta seção de reunião da Comissão, que segue até o próximo dia 28.

“O Estado brasileiro não apresentou nada de novo. Alegou que os processos estão em andamento e que, portanto, ainda não foram esgotados todos os recursos internos para o tratamento do caso pela Justiça brasileira”, conta Hélio Bicudo, presidente da FidDH. Uma das prerrogativas para que um caso seja aceito pela Comissão Interamericana é que todos os recursos internos de um país para sua solução já tenham sido aplicados. Por isso, o Brasil pediu o arquivamento da denúncia.

“Em contrapartida, dissemos que a Comissão e a Corte Interamericana podem considerar os recursos esgotados se ficar comprovada uma delonga nos processo e quando houver uma perspectiva de demora da solução. E isso já aconteceu há quatro anos. Mesmo no caso da ação contra os juízes e o secretário de Segurança Pública, a perspectiva de solução é de longuíssimo prazo. Basta lembrar o caso do Carandiru, que também foi levado à Comissão. O órgão aceitou o caso, fez recomendações internacionais ao Brasil e até hoje não foi solucionado internamente. A ação contra os mais de 50 réus deste processo da Castelinho pode demorar de 10 a 15 anos”, avalia Bicudo.

Conivência
Em 2003, 13 entidades defensoras dos direitos humanos elaboraram um relatório sobre as ações da polícia de São Paulo que concluiu que a atuação da Secretaria de Segurança Pública, que sempre defendeu a legalidade de ações como essa, tem sido um fator importante no enfraquecimento da apuração dos casos. Segundo o documento, a desde a nomeação de Saulo de Castro Abreu Filho, o aparelho policial teria sido colocado em total liberdade para atuar. Haveria uma rotina de tortura para obtenção de confissões e uma promiscuidade entre o aparelho policial e o crime. O relatório aponta que, nesta gestão, as “corregedorias tiveram seu poder limitado por um discurso permissivo da violência do Estado frente ao crescimento da violência, pelo aberto apoio do Secretário a segmentos policiais tradicionalmente apontados como violadores dos direitos humanos (inclusive prestigiados com promoções e nomeações em altos cargos) e pela ingerência direta da Secretaria em investigações dos órgãos corregedores”.

As ações de Saulo de Castro contam ainda com o respaldo do governo de São Paulo. Depois do episódio da Castelinho, o então governador Geraldo Alckmin foi à televisão e declarou “nós vencemos mais uma batalha”. Aquele também era um ano eleitoral, e o caso – que pode ter sido a maior farsa da história da Polícia paulista, com vistas a elevar seu prestígio que à época andava em baixa – foi uma forma da Secretaria de Segurança Pública dizer à sociedade que estava combatendo o crime organizado.

“Alckmin defendeu enfaticamente a posição do secretário e chegou a me interpelar judicialmente por fazermos a denúncia. Minha impressão é que ele sempre defendeu a ação não só do secretário, mas a da neste caso”, acredita Bicudo.

Se aceitar a denúncia, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos deve, na seqüência, examinar o mérito do caso e então tecer recomendações ao Estado brasileiro que, uma vez não cumpridas, podem redundar no envio do caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos, cujas decisões obrigam o Estado a agir, já que em 1998 o Brasil aceitou submeter-se à jurisdição desse tribunal internacional.

Araraquara
Em um documento de 34 páginas, o pleno da Corte Interamericana de Direitos Humanos, sediada na Costa Rica, ratificou as medidas provisórias, anteriormente impostas por seu presidente, e reconheceu o Estado brasileiro como responsável pelas graves violações de direitos humanos a que foram submetidos mais de 1.400 presos que se encontravam em condições degradantes de aprisionamento na cidade de Araraquara, no interior de São Paulo, no primeiro semestre deste ano.

As decisões tomadas pela Corte tiveram como base a audiência realizada em 28 de setembro último, da qual participaram os representantes das organizações p
eticionárias: os advogados Hélio Bicudo e Carlos Gaio, diretor de Relações Internacionais da Justiça Global. Além de ratificar as medidas provisórias, a Corte as desmembrou em novas determinações. Uma delas, por exemplo, especifica que os direitos que devem ser garantidos aos presos os acompanham independente do seu local de detenção.

“Até o dia 8 de setembro, havia cerca de 700 presos em Araraquara. Sabendo da visita de um representante da Comissão Interamericana, o governo de São Paulo transferiu todos os detentos para 34 unidades. Então o argumento usado agora era o de que, como não há mais presos em Araraquara, as medidas não teriam fundamentos. Mostramos então que as medidas não eram em relação ao presídio, mas aos presos, como a garantia de suas vidas. Agora as medidas acompanham os presos”, explica Hélio Bicudo.

O juiz da Corte Antonio Cançado Trindade em seu voto deixou claro que não se trata de “limpar o lugar” ou mesmo de somente proteger as pessoas em questão. Ele afirma que o Estado é acionado para proteger coletivamente os membros de toda uma comunidade ainda que a base da ação seja a lesão ou a probabilidade ou iminência de lesão a direitos individuais. Segundo Cançado, a proteção dos direitos humanos, determinada pela Convenção Americana, para ser eficaz, abarca não só as relações entre os indivíduos e o poder público, mas também suas relações com terceiros.

O advogado ressalta em seu voto que a Corte Interamericana tem advertido que “toda a pessoa privada de liberdade tem direito a viver em condições de detenção compatíveis com sua dignidade pessoal e o Estado deve garantir-lhe o direito a vida e a integridade pessoal”.

Outra nova determinação da Corte é que, a partir de agora, as entidades peticionárias não podem mais ser impedidas de entrar nas 34 unidades para as quais foram transferidos os presos de Araraquara. Além do governo, elas também terão que enviar relatórios periódicos para a Corte informando em que condições se encontram esses detentos. “Antes o governo de São Paulo não nos deixava entrar. Agora, com esses relatórios, será possível fazer uma vigilância permanente da Corte sobre o sistema penitenciário paulista”, conclui Bicudo.

A íntegra da resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos para o caso pode ser encontrada em www.corteidh.or.cr.

Bia Barbosa é membro da ONG Repórter Brasil.

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