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Pescadores e vazanteiros do norte de Minas Gerais
Foto: Gui Gomes

Pescadores e vazanteiros do norte de Minas Gerais


Pescadores que plantam nas margens do Rio São Francisco são expulsos e ameaçados de morte. Comunidade inteira entrou em programa de proteção

Por Jessica Mota
Fotos Gui Gomes, do Vale do São Francisco
27 de janeiro de 2018

COMUNIDADES PESQUEIRAS E VAZANTEIRAS DO SÃO FRANCISCO

  • Onde estão: nas margens do rio São Francisco, no norte de Minas Gerais (e também na Bahia)

  • Atividades: pesca, roçado, caça e coleta de alimentos na mata

  • Por que lutam: querem os Termos de Autorização de Uso Sustentável, concedidos pela Secretaria de Patrimônio da União a comunidades que fazem uso tradicional das beiras de rio

  • Ameaças: fazendeiros e grileiros. Projetos de desenvolvimento estatais, expansão do agronegócio, unidades de conversação e turismo

  • Como se organizam: Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais, Campanha Nacional pela Regularização dos Territórios de Comunidades Tradicionais Pesqueiras, Sindicatos de Trabalhadores Rurais, articulações entre as comunidades

Tem quem compare Reinaldo Silva a Zumbi dos Palmares. Isso porque, como o líder quilombola, Reinaldo só anda à noite. Tem motivo. Ele lidera a retomada das terras de sua comunidade e corre risco se visto de dia. Vive com a esposa e a filha, de 11 anos, e mais 74 famílias na comunidade de Maria Preta, norte de Minas Gerais, município de Itacarambi.

A vida toda o rio São Francisco garantiu sua sobrevivência, pela pesca e na área de vazante, onde plantam feijão, milho, abóbora, quiabo e tantos outros alimentos na terra fertilizada pela cheia do rio. Assim já se vão os 40 anos que Reinaldo carrega no corpo. Nos últimos três, porém, a chuva não apareceu e as famílias não conseguiram colher nada. Mês passado a chuva voltou com força. Os ciclos da água têm disso. São as outras pressões que representam a maior ameaça ao seu modo de vida.

As comunidades pesqueiras e vazanteiras do norte de Minas convivem há gerações com o sufocamento do seu território, além do constante risco de serem expulsas da beira do rio que lhes dá a vida. Na região dos municípios de Itacarambi, Manta e Januário, se tem notícias de 16 comunidades pescadoras e vazanteiras. Ao longo do rio São Francisco, são mais de 300.

Desde 2012, comunidades de todo Brasil promovem uma campanha nacional para buscar a regularização dos territórios pesqueiros. Nesse processo de troca, muitas têm aprendido sobre direitos territoriais. Mas, junto com a luta por direitos, também vêm a violência, as ameaças e os processos judiciais.

Foi nos anos 1950, quando o governo de Minas criou o Projeto Jaíba, considerado o maior projeto de agricultura irrigada da América Latina, que os habitantes de Maria Preta foram expulsos. A retomada da beira do rio começou em março de 2014, depois que Reinaldo aprendeu sobre os direitos de comunidades tradicionais, como a sua. Descobriu que as beiras de rio pertencem à União e que, de acordo com a lei, elas têm destino de uso para comunidades tradicionais que ocupam este pedaço de chão. Foi aí que a luta começou e a comunidade pediu à Secretaria de Patrimônio da União a concessão do Termo de Autorização de Uso Sustentável, que regulariza o uso tradicional dessa área. O processo ainda não andou.

A justiça estadual tem sido o canal por onde chegam as ordens de despejo expedidas em favor de fazendeiros, ainda que a beira de rio seja de competência federal. É pelos tribunais também que lideranças e agentes de organizações que apoiam as comunidades para garantir o cumprimento da lei são perseguidos e criminalizados.

Foto: Gui Gomes As famílias vivem nas margens do Rio São Francisco, no norte de Minas, e dependem do rio para sobreviver. Foto: Gui Gomes
Foto: Gui Gomes Albertino Alves de Araújo, de 70 anos, trabalha na Ilha Esperança desde 1982. Foto: Gui Gomes

Sufocamento

Reinaldo relata que vaqueiros armados, em defesa da fazenda que cerca a comunidade,aparecem atrás do gado que chega perto das casas dos pescadores para fazer xingamentos e ameaças. Por tudo isso, ele foi incluído no Programa de Defensores de Direitos Humanos, mas não vê eficácia. “É um programa que só protege depois que morre, pra ser bem realista”.

É por isso que Maurício Silva, morador da comunidade de Barrinha, vizinha a Maria Preta, fala com nítida apreensão. “A lei não funciona pros pequenos”, sublinha. Em Barrinha e Cabaceiras existe um pedido de reintegração de posse em favor de Helton Jun Yamada, diretor da fazenda Brasnica, reconhecida pela produção de frutas. A angústia vem de que aconteça o pior, dizem os moradores: que as casas, roças e criações de animais sejam destruídas, como aconteceu em Canabrava.

Lá, Solange Santos observa do outro lado do rio o mato tomar conta da casa que construiu e da plantação que criou. A liminar de despejo veio em 2016 pela vara de justiça agrária de Minas Gerais, mas a decisão foi suspensa. Ainda assim, agentes da Polícia Militar derrubaram casas no dia 18 de julho de 2017, acompanhados dos herdeiros de Breno Gonzaga Junior – Adriano, Artur e Bráulio. Gonzaga Junior era dono da fazenda Canabrava/Bananal, onde há cerca de três anos não há moradores.

Dois dias depois, funcionários e os herdeiros da fazenda retornaram, atearam fogo em tudo e destruíram o restante das casas. Esses episódios foram registrados em perícia do Ministério Público Federal. O relatório aponta que, ao ser questionado, com os braços cobertos de cinza, Adriano Gonzaga negou responsabilidade pelos incêndios e tiros deflagrados. A perita do MPF avalia que “eles agiram por entender que possuíam direito de posse resguardado pela decisão judicial”, apesar de revogada.

No dia 1º de agosto, o desembargador Antônio Bispo, do Tribunal de Justiça de Minas, determinou a prisão de qualquer pessoa na área e pediu investigação policial contra as lideranças de Canabrava e agentes do Conselho Pastoral de Pescadores. As famílias se abrigaram na ilha Esperança, onde a violência continuou.

Atualmente, com a cheia do rio, a ilha está debaixo d’água e as famílias sem ter onde morar. Toda a comunidade foi incluída no Programa de Defensores de Direitos Humanos e tem sobrevivido de doações. “Hoje a pesca tá fechada, e não tem vazante, não tem nada, já estou passando até necessidade pra falar a verdade”, relata Clarindo Pereira.

Unidas, no dia 13 de novembro, as comunidades ocuparam a sede da Secretaria de Patrimônio da União em Belo Horizonte para pedir urgência na regularização. Uma semana depois, cerca de 500 pescadores e pescadoras artesanais de diferentes partes do Brasil ocuparam o Ministério do Planejamento, em Brasília. Em dezembro, foram feitas as vistorias de identificação das áreas, mas “não há previsão para a conclusão desses trabalhos”, afirma a secretaria em resposta aos questionamentos da reportagem. Enquanto isso, a insegurança das comunidades persiste, por todo o rio São Francisco. E a luta também.