Conceição do Araguaia, PA

‘O fazendeiro fala que justiça é ele quem faz’

Por Daniela Penha

Desde que ocuparam uma fazenda que alegam ser da União, famílias sem-terra sofrem ameaças e intimidações; José foi assassinado um dia depois da audiência pública que pedia a reintegração de posse da fazenda em Conceição do Araguaia, no Pará

Luzia* lembra que estava brincando com a filha dentro de casa quando ouviu um barulho, "um tiro que saiu de dentro do mato" e atingiu seu marido. Luzia também lembra dos 16 anos de casamento com José Araújo dos Santos – 16 anos sentindo medo do que pudesse acontecer, alguns dos quais pedindo para que saíssem de acampamentos como o da fazenda Safita, em Conceição do Araguaia (PA). Mas ela também lembra que argumentar sobre isso era inútil porque ele sempre participou da luta pelo direito à terra.

“Ele falava que ia atrás de um futuro, faculdade dos meninos, um comércio para nós. Fiquei sozinha com três crianças”, diz Luzia, de 43 anos, que enfrenta problemas de saúde e cuida dos filhos de 10, 14 e 15 anos. No dia do assassinato, em 26 de setembro de 2019, ela conta que saiu correndo para buscar ajuda, com medo de que pegassem ela e a filha. Depois, voltou ao local com policiais: “Peguei umas panelas, documentos e umas mudas de roupa. O resto, deixei tudo lá”. Trouxe consigo também um temor que ainda a acompanha. “Se alguém me encara na rua eu já fico nervosa. Já morreram vários conhecidos nossos – e agora ele. Aqui sempre acontecem essas barbaridades”

Já morreram vários conhecidos nossos – e agora ele. Aqui sempre acontecem essas barbaridades

Viúva de José

A ocupação na fazenda Safita começou em 2018, quando trabalhadores rurais entraram na área defendendo que se tratava de terreno público. O fazendeiro Roberto Moussa Obeid, porém, reclama a propriedade da terra, apresentando documentação de compra, que foi reconhecida pela Justiça.

A professora Maria Lúcia Oliveira relembra em detalhes os primeiros 18 meses do movimento. Ela decidiu acompanhar o grupo, relatando em um diário a rotina de uma ocupação sem-terra. “Aqui acontecem muitas brigas pela terra. Eu quis conhecer e documentar.” Desde o início, ela conta, houve ameaças e retaliações. Tiroteios, fogo e agressões eram constantes. “Em uma ocasião, eu estava no barraco e acordei ouvindo barulho de tiros. Corremos para outro lugar. Dormi em uma moita”, relata, acrescentando que foram muitos os dias em que precisou se esconder dos tiros. “Ele [o fazendeiro Obeid] fala que a justiça é ele quem faz.”

José foi assassinado um dia depois da audiência pública que pedia a reintegração de posse das terras e horas depois que ele, a esposa e os filhos haviam se mudado para um espaço próprio no acampamento.

Até agora, não há respostas para o crime, investigado pela Delegacia de Conflitos Agrários de Redenção (Deca). Em nota, a Polícia Civil do Pará afirmou que “o inquérito policial está tramitando e o autor do crime já foi identificado”, mas não informou qual a causa do assassinato ou se o suspeito já foi indiciado. O Ministério Público, procurado, não quis se manifestar porque não entrou no caso.

Dois meses depois do assassinato de José, cerca de 50 famílias que viviam na fazenda foram despejadas após decisão do juiz da Vara Agrária de Redenção, Haroldo Silva da Fonseca.

Dois meses depois do assassinato de José, cerca de 50 famílias que viviam na fazenda foram despejadas

Procurado, o fazendeiro Roberto Moussa Obeid afirmou que não há conflitos. “Uma fazenda toda vida tranquila, sem problema nenhum. Houve invasão, mas da parte da fazenda não houve violência nenhuma”. Ele disse não conhecer José Araújo e afirmou não haver inquéritos em seu nome.

De acordo com o Incra, “a fazenda é um imóvel particular, titulado pelo Governo do Estado através do Instituto de Terras do Estado do Pará (Iterpa), que não está sobreposto a projetos de assentamento ou a gleba federal”. Explicou ainda que “não possui qualquer gerenciamento sobre o imóvel” e tampouco informações sobre a legitimidade da documentação de propriedade apresentada pelo fazendeiro, já que se trata de documento emitido pelo Estado.

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