Lábrea, AM

No sul do Amazonas, Lábrea é ‘laboratório do crime’ marcado por roubo de terras, desmatamento e ausência do Estado

Por Pedro Sibahi

Em 2019, pelo menos dois posseiros foram assassinados no Seringal São Domingos, gigantesca área que oficialmente pertence à União, mas que é alvo de grileiros de terras, madeireiros ilegais e pistoleiros

O município de Lábrea, no sul do Amazonas, é o décimo maior do país e também um dos menos povoados, com menos de um habitante por km². Contudo, o vazio que mais chama a atenção não é o demográfico, mas aquele causado pela ausência do Estado – que transforma Lábrea em uma espécie de laboratório do crime no meio da Amazônia. Alvo da ação de grileiros, madeireiros ilegais e pistoleiros, com moradores que afirmam ter ocorrido ali mais de cem assassinatos na última década, a região parece ter sido esquecida pelas autoridades.

Na manhã do sábado 30 de março de 2019, Nemes Machado de Oliveira, 50 anos, havia alimentado os animais e estava tomando café na porta da sua casa. Não teve tempo de subir as escadas para se esconder. Foi alvejado pelas costas e caiu próximo aos degraus. Ele era uma das lideranças entre os posseiros que buscavam garantir um pedaço de terra no Seringal São Domingos, área de 22 mil hectares que oficialmente pertence à União, mas está há décadas em disputa entre posseiros, madeireiros, fazendeiros e grileiros. Cerca de 140 famílias de posseiros viviam no seringal desde 2016, mas quase todas abandonaram suas casas em 2019, quando houve uma série de ataques de pistoleiros ao local.

Segundo relatos, um grupo de seis pistoleiros, todos armados e encapuzados, entrou no seringal em três motocicletas. Eles teriam ameaçado várias famílias e colocado fogo em residências. Após os disparos em Nemes, sua casa foi queimada com seu corpo dentro, que acabou parcialmente carbonizado. Um vizinho, Sidney Miguel Andrade, 40 anos, também teve a casa queimada e, assim como outras famílias, deixou a terra. De acordo com o relato das famílias que viviam no seringal, os mandantes dos crimes seriam fazendeiros, grileiros e madeireiros que se consideram donos da área.

Nenhuma força policial foi ao local no dia do assassinato de Nemes. A tarefa de resgatar o corpo para garantir um enterro digno coube a seu filho, Kailon de Oliveira, que junto a outros posseiros chegou ao seringal apenas na tarde do dia seguinte. O corpo de seu pai já estava em decomposição. Ao lado dele, cartuchos de munição .38 e .22.

Como alguém que tá bem num dia pode morrer de meningite no outro? Foi morte matada

Fonte que diz ter encontrado o corpo de Denis

Contatado pela Repórter Brasil, o filho de Nemes preferiu não se manifestar. Outro posseiro que esteve no seringal junto a Kailon também disse que não gostaria de conversar sobre o ocorrido, alegando que, após dar depoimentos à polícia, nada aconteceu. Preferia não tocar mais no assunto.

A região onde está o Seringal São Domingos é conhecida como Ponta do Abunã e fica próxima à fronteira do Amazonas com Acre e Rondônia, uma região de difícil acesso e que vive um apagão de autoridades, porque as principais cidades próximas ficam nos estados vizinhos.

O ataque dos pistoleiros não teve Boletim de Ocorrência (BO) localizado. Questionada pela Repórter Brasil, a Secretaria de Estado da Justiça e Segurança Pública do Acre informou que “a família da vítima realmente esteve no Centro Integrado de Inteligência de Acrelândia, porém, não foi registrado Boletim de Ocorrência e nem abertura de inquérito - sendo o caso direcionado à Lábrea/AM.”

Como o crime ocorreu em Lábrea, de acordo com o Código Penal, a investigação seria de responsabilidade da polícia do Amazonas. Somente em 3 de abril, quatro dias depois do assassinato, o Secretário de Segurança Pública do Amazonas, coronel Louismar Bonates, determinou envio de reforços ao município de Lábrea.

Em 5 de abril de 2019 foi realizada no Acre uma reunião entre Ministério Público Estadual Federal, Incra, Comissão Pastoral da Terra e Defensoria Pública da União, quando foi assinado um termo de cooperação entre os estados do Acre, Rondônia e Amazonas para realizarem ações para tentar pacificar a região. Na semana seguinte, a Polícia Federal abriu inquérito e realizou algumas oitivas com os agricultores atingidos pelos atos de violência.

Um novo ataque de pistoleiros foi realizado no Seringal São Domingos nas semanas que se seguiram. Em 22 de abril, Adam Passos, 19 anos, foi alvejado ao chegar em casa, no Ramal Brindeiro, dirigindo a caminhonete da família, conforme noticiou o jornal local ACJornal. Adam foi internado e se recuperou.

Com os ataques, muitos fugiram com medo. O objetivo principal dos pistoleiros – forçar a saída das famílias de dentro do seringal – estava se cumprindo. A maioria das casas foi abandonada ao longo de 2019, restando alguns poucos moradores. Entre eles, estava Denis, de 38 anos, que foi encontrado morto no dia 2 de novembro de 2019.

Sem documento de identificação, o corpo de Denis foi levado para a cidade mais próxima, Acrelândia, onde o laudo da necropsia afirmou que a causa oficial da morte foi meningite. No entanto, a Repórter Brasil, que esteve em Lábrea pouco depois do assassinato do jovem sem sobrenome, escutou relatos de moradores que contestam a versão oficial. “Eu que encontrei o corpo. Tinha marca de bala no rosto e sinais de tortura”, garante um caçador que não quis se identificar. “Como alguém que tá bem num dia pode morrer de meningite no outro? Foi morte matada”, atesta.

Fontes informaram que Denis cuidava da terra de outro posseiro, Silvio Batista. Procurado pela reportagem, Silvio não atendeu às ligações. A reportagem entrou em contato com a Delegacia Geral de Acrelândia, e a policial que atendeu afirmou que não foi localizado nenhum registro de ocorrência envolvendo nenhum Denis em novembro de 2019.

A Secretaria de Segurança Pública do Amazonas foi questionada sobre os casos, e limitou-se a afirmar que os dois assassinatos estão “sob investigação e mais informações não podem ser repassadas no momento, para não atrapalhar o andamento dos trabalhos policiais”.

Questionada posteriormente sobre a responsabilidade perante os crimes em território amazonense, a Secretaria de Segurança Pública afirmou que os boletins de ocorrência foram feitos na delegacia do distrito de Extrema, no Estado de Rondônia. Consultado pela Repórter Brasil, o escrivão da delegacia de Extrema, Ozias Correia, afirmou que “inexistem ocorrências policiais com estas vítimas”. O escrivão afirmou ainda que “segundo informações, os corpos foram levados para Acrelândia-AC, onde as vítimas residiam. Não passou pela delegacia de Rondônia nenhum documento, até porque o fato aconteceu no Estado do Amazonas”. Extraoficialmente, fontes afirmam que não houve inquérito policial instaurado para nenhum dos casos.

Um ano e meio após o primeiro crime, que terminou com a morte de Nemes, o delegado de Lábrea encontra-se 400 km ao norte, no município de Tapauá, pelo qual também responde. Lábrea também passou a maior parte do período com a Promotoria de Justiça sem promotor, até que em 27 de julho, Sylvio Duque Strada assumiu em definitivo o cargo no município. Até o fechamento desta matéria, ele ainda estava analisando os procedimentos internos da procuradoria e afirmou que não poderia se pronunciar.

Estes são apenas mais dois dos incontáveis assassinatos não explicados – e impunes – no Seringal São Domingos.

*Colaborou Maurício Monteiro

Chapada dos Guimarães, MT

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