Munduruku, PA

Autodemarcação: estratégia de defesa contra projetos do governo

Por Jéssica Mota e Thais Lazzeri

Cansados de esperar pelo reconhecimento oficial da Terra Indígena Sawré Muybu, no oeste do Pará, e de ter o destino decidido por um governo com o qual não tem interlocução, o povo Munduruku fez a autodemarcação do seu próprio território. Pressionados por um projeto de mega-hidrelétrica que alagaria parte da sua terra, sob a justificativa do governo de que a área não seria indígena, eles se organizaram para provar a existência do seu território tradicional.

Entre 2014 e 2015, os indígenas abriram trincheiras no meio da floresta para marcar as fronteiras da terra enquanto seguiam as coordenadas registradas pelo Relatório de Identificação - estudo feito pela Funai. Esse estudo é uma etapa importante dentro do processo oficial de demarcação, mas estava engavetado pela Funai desde 2013. O relatório só foi publicado em 2016, depois de a autodemarcação ser concluída e ganhar a atenção da imprensa.

Foto: Ana Mendes

“Nós não estamos sendo consultados sobre o que acontece dentro do nosso próprio território. Tem muito grupo querendo acabar com o nosso rio”, afirma a presidente da Associação Indígena Pariri, Alessandra Korap, de 33 anos. “A estratégia dos Munduruku é de uma sagacidade impressionante”, afirma a antropóloga Luísa Molina. “Os índios estão falando assim: ‘vocês só reconhecem quando é nos seus termos? Então vamos fazer nos seus termos’”, afirma Molina.

O grupo elaborou, ainda, um protocolo estabelecendo como querem ser consultados em relação a obras e medidas que afetem o seu território. A autodemarcação e o protocolo renderam um prêmio à comunidade, em 2015, dado pela Organização das Nações Unidas. As iniciativas foram consideradas como um fator relevante no conjunto de motivos que levou o governo federal a desistir, ou ao menos adiar, o projeto para a construção da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós.

Foto: Otávio Almeida / Greenpeace

O projeto do governo federal previa a construção de uma mega obra em uma área de floresta Amazônica nativa que já está sob pressão de madeireiros e garimpeiros locais. Entre 2001 e 2016, a região teve perda arbórea de mais de um milhão hectares, segundo dados analisados pela Global Forest Watch a partir do alerta Glad, um monitoramento por satélite que mostra perda da cobertura vegetal em tempo real. O estrago florestal poderia ser muito maior, caso a hidrelétrica tivesse saído do papel. Uma pesquisa do IPAM/Amazônia mostrou que com a futura construção de hidrelétricas, depois de 15 anos, o desmatamento na região equivaleria ao total já registado em toda a Amazônia.

Foto: Ana Mendes

Além da ameaça do governo federal, os Munduruku também correm risco por conta da ação do governo estadual. “Tem muito grupo querendo acabar com nosso rio e com as nossas terras, e o governo do estado não está respeitando a gente como prevê a lei.” Alessandra se refere ao decreto 1969, publicado pelo governador Simão Jatene (PSDB-PA) em janeiro deste ano. O decreto define novas regras estaduais para a consulta prévia sem prever as garantias para que as comunidades de fato participem do processo. Em defesa dos indígenas, uma recomendação pedindo a anulação do decreto foi assinada pelos Ministérios Públicos Federal e Estadual, em conjunto com outros órgãos governamentais.

Foto: Fábio Nascimento

Embora os munduruku saibam se associar com entidades consideradas aliadas, como é o caso do MPF do Pará, as lideranças argumentam sempre sobre a importância de se reconhecer o olhar indígena por trás da preservação. Para a munduruku Alessandra, a proteção da floresta significa muito mais do que hectares preservados, muito mais até do que o direito de caçar, pescar e colher. Ela perde o sono com o risco da destruição porque a sua luta é, sobretudo, pela manutenção do “ser” Munduruku. “Para todo lado tem ameaça, de grande e de pequeno. Não tem como dormir direito, que futuro as crianças Munduruku vão ter?”