100 anos de servidão No Amazonas, extrativistas trabalham para pagar dívidas ao patrão. Há três gerações ciclo aprisiona famílias no corte da piaçaba, a palha da vassoura Por Thais Lazzeri, do alto e médio Rio Negro (AM) Imagens Fernando Martinho 19 de outubro de 2017 Muitos anos depois, diante do irmão caçula, o sexagenário Augusto Miranda Brasão, haveria de recordar que, aos 12 anos, trabalhava ao lado do pai no corte da palha de piaçaba para pagar dívidas aos patrões. Essa palmeira, cuja fibra é usada na confecção de vassouras, marcou a vida de Augusto, seu irmão, pai e avô. Há cem anos, as diferentes gerações da família Brasão vivem sob um expediente criminoso que aprisiona milhares de extrativistas de origem indígena no alto e médio Rio Negro, no Amazonas. Os irmãos vivem na comunidade Malalahá. Como no romance “Cem Anos de Solidão”, do colombiano Gabriel García Márquez, a vida dos piaçabeiros se repete em ciclos e tem toques de realismo fantástico. Estão presos a um modo de exploração em que o trabalho se confunde com pagamento de dívida, uma realidade que parece saída do passado. A relação se baseia em um sistema de empréstimos fornecidos pelos patrões, nome dado aos comerciantes que controlam a produção. Pela comida suficiente para um mês de atividade, o patrão cobra cerca de R$ 1.500 – alguns itens sofrem ágio de até 300% em relação a produtos similares vendidos na cidade. Já o quilo da piaçaba vale cerca de R$ 2. O trabalhador recebe apenas o que sobra (quando sobra), descontados os empréstimos para o rancho – nome dado pela população local à alimentação por empreitada, transporte e itens básicos de trabalho. Do total pago no final do mês, o empregador ainda desconta 20% por possíveis impurezas, a tara. E em alguns casos ainda pode tirar 10% pelo “aluguel” do local de trabalho, no caso daqueles que se declaram como donos da área. Três gerações Como o avô e o pai, os irmãos Brasão trabalham na extração da piaçaba, cuja fibra é usada na confecção de vassouras Trabalho escravo Piaçabeiros trabalham semanas ou meses dentro da floresta para pagar dívida contraída com patrões, como são chamados os comerciantes no rio Condições de trabalho Um lona presa a estacas faz a vez de moradia. Não há banheiro, pia, local para armazenar comida nem equipamento de segurança. Trabalhadores caçam para comer Exigência do patrão Para entregar o produto, piaçabeiros precisam pentear, cortar e aparar as fibras da piaçaba em toras. Depois, amarram com fita Toneladas de piaçaba As toras de piaçaba são transportadas por balsa. Na imagem, uma das pilhas de piaçaba na comunidade Tapera “O objetivo é manter o piaçabeiro endividado e subordinado a vida inteira”, afirmou o pesquisador Márcio Meira, ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), que estudou o ciclo da servidão amazonense. Os habitantes do Rio Negro chamam esse sistema de aviamento. Servidão por dívida é o nome oficial, segundo o Código Penal Brasileiro, uma das formas de trabalho escravo contemporâneo. Desconsiderar esse tipo de exploração como trabalho escravo é o que pretende a portaria publicada no último 13 de outubro pelo Ministro do Trabalho Ronaldo Nogueira, que tenta alterar a definição atual. “A portaria acaba com o conceito de trabalho escravo contemporâneo”, diz Antônio Carlos de Mello, coordenador do programa de combate ao trabalho forçado da Organização Internacional do Trabalho no Brasil. Para Rafael Garcia Rodrigues, procurador do trabalho e ex-coordenador nacional de Erradicação ao Trabalho Escravo do MPT, a portaria pode “aniquilar” o conceito de servidão por dívida. “É um retrocesso inacreditável.” A decisão do governo, sem discussão prévia, acontece … Continue lendo Servidão por dívida
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