Anapu, PA

Na cidade onde Dorothy foi assassinada, disputa pela terra segue derramando sangue

Por Daniel Camargos

Disputa fundiária fomenta violência enraizada em Anapu (PA), onde três pessoas foram executadas em 2019; entre os investigados, um fazendeiro e político com um antigo histórico de conflitos com famílias sem-terra

Ao lado da sepultura de Dorothy Stang há uma cruz vermelha com o nome de 19 pessoas. Todas foram assassinadas por conflitos no campo nos últimos cinco anos em Anapu, no Pará. Foi ali, às margens da Transamazônica, que a missionária norte-americana foi executada em 2005. Passados mais de 15 anos, a disputa fundiária segue derramando sangue. Apenas em 2019, foram três assassinatos em Anapu.

“Aqui é demais da conta. Matam gente direto e ninguém vai preso. Virou uma coisa desordenada", desabafa uma familiar de Paulo Anacleto, o último nome dos 19 a entrar na cruz ao lado do túmulo da irmã Dorothy.

Antes dele, foram executados Márcio Rodrigues dos Reis, em dezembro de 2019, e Marciano dos Santos, em fevereiro do mesmo ano. Ao contrário do caso Dorothy, que ganhou repercussão internacional e cujos executores e mandantes foram condenados, a resolução dos três crimes se arrasta.

Essa violência que assola Anapu, simbolizada na cruz vermelha de cerca de 1,80 metro, também assombrava Márcio, liderança sem-terra que batalhava pela reforma agrária, há anos. Desde março de 2017, ele vinha sofrendo perseguições e ameaças. Chegou a ser preso mais de uma vez. Em uma delas, foi acusado de invasão de propriedade e porte ilegal de arma – Márcio, no entanto, estava no acampamento onde vivera por pouco mais de um ano, primeiro em 2014 e, depois, em 2016. “O delegado me prendeu. Estava junto com fazendeiros. Me algemaram, me chutaram, me deram uma coronhada na cara", contou Márcio à Repórter Brasil em novembro de 2018.

Entre idas e vindas na cadeia, com acusações que sua família diz serem infundadas, nasceu um de seus filhos – que acabou morrendo de pneumonia antes de ele ser solto. Quatro meses depois, quando estava encarcerado pela segunda vez, Márcio não conseguiu ver o nascimento de suas duas filhas gêmeas, que hoje têm pouco mais de um ano de idade.

O delegado me prendeu. Estava junto com fazendeiros. Me algemaram, me chutaram, me deram uma coronhada na cara

contou Márcio à Repórter Brasil antes de ser assassinado

“Dependo da ajuda das pessoas. Não tem como trabalhar, pois as meninas ainda estão muito pequenas”, conta Fernanda Lima Pereira, viúva de Márcio, que, além das gêmeas, tem uma filha de 4 e outra de 7 anos. Além de problemas financeiros, Fernanda convive com o medo constante. Seu desejo é sair de Anapu.

Quando a Repórter Brasil conversou com Márcio, em 2018, ele buscava uma maneira de sair da cidade por conta das ameaças. Depois de passar alguns meses fora, voltou a Anapu porque queria ficar perto da família. Sem conseguir a terra para viver com a mulher e as filhas, passou a trabalhar como motoboy.

Na noite de 4 de dezembro de 2019, recebeu uma ligação pedindo uma corrida de mototáxi para a cidade vizinha de Pacajá. Era uma emboscada. Foi assassinado no trajeto, em uma estrada de terra. E foi o único entre os 19 assassinados em Anapu nos últimos 5 anos que teve o pescoço cortado, segundo a freira Jane Dwyer, da CPT. “Foi morto com uma faca na goela. Para mostrar que ele estava falando demais", diz a religiosa.

O caso é investigado pela Delegacia de Crimes Agrários de Altamira. Segundo o delegado Fernando Marcolino, a realização de operações ambientais pela delegacia atrasam as investigações do assassinato de Márcio. “Mas está sendo tratado como prioridade", afirma, dizendo que já existe um suspeito.

Morto por pedir justiça

Cinco dias depois de Márcio, mais um nome se somou à cruz cravada no túmulo de Dorothy. Paulo Anacleto havia organizado um protesto no dia do enterro de Márcio, quando pediu justiça e punição dos responsáveis. Foi assassinado em 9 de dezembro. Paulo era presidente da associação dos mototaxistas, conselheiro tutelar e ex-vereador.

“Se alguém falar alguma coisa pode morrer. É uma máfia, e eles são muito perigosos”, diz uma familiar de Anacleto. Quando atuava na política, ele era contrário ao trabalho da missionária Dorothy Stang e contra os projetos de reforma agrária. Concedeu entrevistas para os jornais O Globo e Folha de São Paulo criticando o trabalho da missionária. “O Paulo [Anacleto] mudou e amadureceu depois que deixou de ser político. Assumiu a presidência da associação de mototáxis e passou a defender os seus", afirma a religiosa Jane Dwyer, que pertence à mesma congregação de Dorothy e dá continuidade ao trabalho missionário em Anapu.

A família de Paulo e a CPT entendem que há uma óbvia relação entre as duas mortes. Para eles, Anacleto foi assassinado porque organizou um protesto contra a execução de Márcio.

A Polícia Civil do Pará, contudo, tem uma versão diferente e trata o assassinato como um crime sem ligação com disputas fundiárias. Tanto que não encaminhou a investigação sobre a morte de Paulo para a Delegacia de Crimes Agrários (Deca) e manteve o caso na Delegacia de Anapu, onde o assassinato é tratado como um crime comum. “Não estou autorizado a passar nenhuma informação sobre esse caso", respondeu à reportagem o delegado de Anapu, Wilson José da Silva.

Foi realizada em abril de 2020 a “Operação Sicário” para investigar os responsáveis pela morte de Paulo Anacleto, na qual foram cumpridos seis mandados de busca e apreensão em Anapu, Pacajá e Altamira.

A Repórter Brasil apurou que um dos investigados é Silvério Fernandes, um dos madeireiros mais poderosos da região – que acumula com os irmãos multas de mais de R$ 28,2 milhões por crimes ambientais – e atual presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Anapu.

Silvério reivindica na Justiça a posse da Fazenda Santa Maria, que fica no lote 44 – um pedaço da Gleba Bacajá, criada em 1975, durante a ditadura militar, e dividida para atrair “donos” para a colonização da Amazônia. Anos depois, o Incra vistoriou a área e encontrou muitos lotes em situação de completo abandono – foi então que a União começou a demandar de volta o terreno, já que os colonos não haviam explorado a terra. Com isso, começou uma disputa violenta entre os colonos e os sem-terra que até hoje faz vítimas.

Se alguém falar alguma coisa pode morrer. É uma máfia, e eles são muito perigosos

Familiar de um dos mortos

O fazendeiro tem um antigo histórico de conflitos com famílias sem-terra. Em 2016, ele e seus familiares teriam queimado as barracas dos camponeses poucos meses depois de os trabalhadores iniciarem a ocupação da Fazenda Santa Maria, segundo acusação do Ministério Público Federal. No inquérito, o principal denunciante contra o fazendeiro era, justamente, Márcio – o líder da ocupação na época. Segundo o MPF, Silvério e seu irmão, Luciano, “mandaram destruir objetos alheios, com o emprego de substância inflamável, por motivos egoísticos". Questionado, Silvério admitiu que “desmanchou" as casas. “O lote 44 é nosso. É nosso!", contou à Repórter Brasil em dezembro de 2018.

Uma das prisões de Márcio aconteceu justamente quando ele reconstruía sua casa após esse incêndio. Silvério estava ao lado dos policiais quando o sem-terra foi algemado.

Se na década de 1990 Silvério foi investigado por participação no esquema que ficou conhecido como Máfia da Sudam (que desviou mais de R$ 100 milhões em recursos de projetos de desenvolvimento para a Amazônia), atualmente ele é conhecido por sua atuação política – e proximidade com o alto núcleo fundiário do governo Bolsonaro. Ele foi vice-prefeito de Altamira e candidato a deputado estadual derrotado na última eleição, além de ter sido um dos principais cabos eleitorais de Bolsonaro na região do Xingu em 2018. Desde que Bolsonaro assumiu, é comum ver vídeos de Fernandes em reuniões com representantes do Incra ou ao lado do secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, o ruralista Nabhan Garcia.

Silvério tem vínculo, ainda que indireto, com o assassinato de Dorothy Stang. Primeiro porque um dos executores da missionária norte-americana, o Bida, se escondeu na fazenda do irmão de Silvério após o crime. Segundo, porque, conforme relatou Dorothy à Polícia Federal antes de morrer, Silvério a teria ameaçado. Ele teria dito à missionária para ninguém invadir suas terras ou “teria sangue até a canela”. Terceiro, porque os dois executores do crime haviam comprado um terreno de Silvério – terreno este que estava dentro dos planos e da luta por reforma agrária de Dorothy.

Procurado, Silvério Fernandes não retornou as ligações e nem as mensagens com pedido de entrevista.

Apesar do histórico, Silvério não foi alvo da segunda fase da operação Sicário, realizada em 20 de janeiro deste ano. Na operação, policiais civis prenderam dois suspeitos de terem matado Paulo Anacleto e decretaram a prisão de um terceiro, que está foragido. Segundo a polícia, a motivação do crime foi política, pois Anacleto tinha conhecimento de malfeitos de um ex-vereador e de um ex- secretário de administração de Anapu, que seriam os mandantes do crime.

“Não significa necessariamente que apenas as pessoas que foram presas nesta fase serão as pessoas que serão processadas”, afirma a promotora agrária de Altamira, Nayara Santos Negrão. Para ela, nos depoimentos dos presos, podem surgir novos fatos e evidências que levem a novas prisões.

Violência enraizada e Belo Monte

Outro que se uniu à cruz ao lado de Dorothy Stang foi Marciano dos Santos Fosaluza, assassinado na área urbana de Anapu em fevereiro de 2019 por causa da luta pela regularização de um acampamento. Segundo a CPT, ele era uma liderança importante no projeto de assentamento Mata Preta, onde 350 famílias aguardam a efetivação da reforma agrária. Os acampados convivem com diversas ameaças, chegaram a ser expulsos de suas casas e relatam perseguição de pistoleiros.

Mais de um ano e meio depois do crime, a Delegacia de Anapu, responsável pela investigação, não indiciou ninguém.

A violência da região, para a promotora agrária de Altamira, Nayara Santos Negrão, não só faz vítimas, como também complica as investigações. “Por ter muitas mortes, há uma dificuldade de conseguir testemunhas. As pessoas não querem se comprometer e isso acaba complicando a investigação", afirma.

Os três assassinatos em 2019 mostram que a violência segue enraizada em Anapu – só que, sem os holofotes e a atenção midiática do caso Dorothy. É uma violência pautada pela disputa fundiária, mas que também vem sendo alavancada pela proximidade com a hidrelétrica de Belo Monte. Os apenas 80 quilômetros que separam Anapu da usina fizeram a população local crescer 32%. A construção da hidrelétrica, no entanto, não absorveu toda essa nova mão de obra, gerando desemprego e empurrando as pessoas para atividades ilegais, como grilagem e desmatamento. Mais um elemento no cenário de brutalidade simbolizado pela cruz vermelha ao lado do túmulo de Dorothy.

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