Senzalas bolivianas

Imigrantes bolivianos ilegais fogem da falta de emprego na terra natal para cair no trabalho semi-escravo em confecções localizadas na região central da cidade de São Paulo, como Brás, Pari, Bom Retiro e Liberdade
Texto e Fotos: Carlos Juliano Barros
 01/10/2001
Comemoração do aniversário da independência da Bolívia, em São Paulo

Brás. Bairro central da capital paulista que abriga milhares de imigrantes bolivianos. René Barrios faz parte desse contigente de estrangeiros. Seu apartamento, cujo aluguel consome boa parte da renda mensal, comporta sua tecelagem, além da mulher, filha, cunhado e outros dois compatriotas. Na modesta sala há sete máquinas de costura, às quais se dedicam durante toda a semana, inclusive aos domingos. Para eles, não há folga. O ambiente é fechado, turvo. O peso da labuta diária se faz sentir no ar. A lenta velocidade do elevador que conduz os moradores do edifício contrasta com o ritmo frenético do cotidiano e das mãos habilidosas desses bolivianos.

René, porém, pode ser considerado um vencedor. Atingiu o objetivo do qual grande parte dos bolivianos que entram irregularmente no Brasil, à procura de melhores oportunidades de emprego (os chamados "migrantes laborais"), fica alijada: montar a própria tecelagem, ainda que muito humilde. Apesar do relativo êxito, teve de enfrentar uma via-crúcis. Ao chegar de La Paz, em 1996, recrutado por um colega também boliviano, René trabalhou três meses sem receber um centavo. Depois de muito hesitar, resolveu buscar uma nova ocupação. Para tanto, a Praça Padre Bento, no Pari, famigerado ponto de encontro e de comércio informal dos bolivianos, serviu como verdadeira agência de empregos. "Há anúncios de ofertas espalhados pela praça", conta. René, então, trocou várias vezes de patrão, até conseguir dinheiro para comprar sua primeira máquina e, assim, trabalhar por conta própria. Porém, as marcas do tempo em que foi explorado não são esquecidas. Com escassas horas de descanso, geralmente após as refeições, René e sua mulher chegavam a trabalhar em turnos de 16 horas diárias. Conseguiam costurar, aproximadamente, trinta peças por dia, recebendo de R$ 0,50 a R$ 1,00 por cada uma.

Ciclo Vicioso

Homem, jovem, solteiro, pouco qualificado. Esse é o perfil do migrante boliviano que vem para São Paulo. Geralmente, ele já possui um contato na cidade, sejam familiares ou amigos, apesar de entrar de maneira irregular no país. "Há toda uma rede de relações que sustenta o fluxo migratório", explica Sidney Silva, padre, mestre em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo e diretor do Centro de Estudos Migratórios (CEM). Padre Sidney, como é conhecido, acrescenta ainda que quase sempre existe um intermediário que contrata a mão-de-obra. Experiência no ramo é pressuposto básico, já que até o mercado informal é vítima da concorrência desenfreada dos tempos de globalização. O boliviano chega para trabalhar, majoritariamente, em tecelagens, onde é pago por peça produzida. As tecelagens, usualmente, funcionam em salas apertadas, que abrigam não só as máquinas, como também todos os empregados. "Havia um quarto para homens e outro para mulheres", lembra René. Como se não bastassem as péssimas condições de instalação, quase dois terços do dinheiro pago diariamente a ele eram descontados. O patrão – que pode ser judeu, coreano, brasileiro e também boliviano – "arca" com as despesas de moradia e comida. Assim, estabelece-se uma dependência muito forte, que, às vezes, pode constituir uma relação de semi-escravidão, já que o boliviano tem de trabalhar muitos anos até conseguir saldar sua dívida, completa Padre Sidney.

Trabalhadores chegam a ficar 16 horas nas oficinas de costura

Muitas vezes, para garantir controle de seus empregados, os patrões intimidam por meio de possíveis denuncias à Polícia Federal (PF) ou, até mesmo, por coerção física. Todavia, na prática, as ameaças raramente são concretizadas. Até mesmo alguns bolivianos que, assim como René, conseguiram certa estabilidade financeira após comprar suas máquinas, dão continuidade ao ciclo de subjugação de seus próprios conterrâneos.

Obstáculos

É impossível restringir o fluxo migratório oriundo da Bolívia. Os 3,4 mil km de fronteira inviabilizam a contenção de migrantes que fogem desesperadamente de um país que tem os piores indicadores sociais de toda a América do Sul – de acordo com o relatório sobre o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), divulgado anualmente pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). A Bolívia ocupa a posição número 104, num total de 162 países. Para efeitos de comparação, o Brasil se situa na 69º colocação. É por causa dessa conjuntura miserável que muitos bolivianos se sujeitam a condições sub-humanas de trabalho na cidade de São Paulo. "Pelo menos existe emprego", explica René.

A chegada sistemática dos bolivianos teve início nos anos 50. Porém, o motivo desse processo era diferente do atual. Muitos vinham para estudar e conseguir especialização. A partir da década de 80, porém, esse quadro começou a mudar. Para tentar a sorte no Brasil, os bolivianos se valem de diversas portas de entrada, cruzando clandestinamente a fronteira em pontos como Guajará-Mirim (RO) e Cáceres (MT). Outra via de acesso comum é Corumbá (MS), por onde entram legalmente no país, como turistas. Nesse ponto já se revela a primeira dificuldade dentre as inúmeras enfrentadas por esses migrantes. Enquanto europeus, americanos, ou até mesmo argentinos, recebem visto por 90 dias, prorrogáveis pelo mesmo período, os bolivianos, em geral, conseguem somente um mês.

Aniversário da Independência da Bolívia organizado pela Associação de Residentes

O cônsul adjunto da Bolívia em São Paulo, Ivanko Kuljis, não soube explicar a causa dessa discriminação. "Isso é procedimento da Polícia Federal. Nós (o consulado boliviano) não podemos intervir", argumenta. Já o chefe da Secretaria de Registros de Estrangeiros da Polícia Federal de São Paulo, Luiz Eduardo Machado, disse que o agente da PF da fronteira tem a liberdade de conceder a permanência pelo tempo que achar conveniente, já que "é po
ssível reconhecer, no ato, aquele que vem fazer turismo e o que vem tentar ganhar a vida no país". O critério parte de uma premissa muito simples: o turista deve ter dinheiro. E esses bolivianos são julgados por sua precária condição financeira – denunciada por roupas humildes e feição não-européia. Contudo, alguns chegam a dizer que sofrem menos com preconceitos no Brasil do que na Bolívia.

Estatísticas

Não existem dados precisos sobre o número total de bolivianos na cidade de São Paulo. A Polícia Federal, por exemplo, contabiliza 18.408 em todo o Estado. O Consulado, por sua vez, tem aproximadamente 15 mil cadastrados mas estima em 60 mil, apenas na capital paulista, o número de imigrantes. O CEM vai muito mais além. Chega a considerar de 60 a 80 mil na cidade, dos quais 25%, ilegais. Luiz Eduardo Machado crê que o número sugerido pelo CEM é exagerado, já que em 1998 houve a última anistia, pela qual 10.545 bolivianos obtiveram visto provisório, em todo o Brasil. "Só não se regularizou quem não quis", diz. Padre Sidney, porém, considera os dados da PF deslocados da realidade. Ele argumenta que muitos não se regularizaram por falta de informação, perda do prazo ou mesmo esquecimento. O alto custo do trâmite também contribuiu para diminuir o número de anistiados. E há também a resistência por parte dos patrões, já que a eles interessa a situação de ilegalidade de seus empregados. Dessa forma, eles podem potencializar ao máximo a exploração. Muitas vezes, a papelada nem é necessária. Por viverem enclausurados nas tecelagens, a regulamentação torna-se dispensável. Mesmo assim, muitos bolivianos têm filhos nascidos em território brasileiro, ou se casam com brasileiras, a fim de conseguir regularização, já que a Lei de Estrangeiros do Brasil, de 1980, prevê o benefício nesses dois casos.

Com relação ao panorama da população boliviana em São Paulo, o CEM aponta um aparente equilíbrio entre o número de mulheres (44%) e de homens (55%). Contudo, cabe ressaltar que a disparidade entre os sexos já foi bem maior. Há menos de 15 anos, a população masculina respondia por quase 74% do total. Isso porque o movimento migratório entre os dois países é fenômeno eminentemente masculino. Com relação à faixa etária, a maioria absoluta desses estrangeiros situa-se entre 18 e 44 anos, ou seja, enquadra-se na população economicamente ativa.

No tocante à localização, grande parte estabelece-se nos bairros centrais da capital, como Brás, Pari, Bom Retiro e Liberdade. Porém, com o aumento do custo do aluguel dessas zonas centrais, percebe-se uma significativa presença de bolivianos em bairros mais periféricos, como Guaianazes, Itaquera, São Miguel, entre outros.

Os bolivianos sem documentos se dedicam a outras atividades além da costura – que absorve 44% do total, segundo o CEM. Os homens trabalham no mercado informal ou arrumam emprego na construção civil, sem conseguirem, porém , qualquer tipo de garantia prevista pela legislação trabalhista. As mulheres, geralmente, tentam ganhar algum dinheiro como empregadas domésticas, sem carteira assinada também. Segundo Padre Sidney, esses imigrantes desempenham funções que grande parte da população não se prestaria a fazer. Portanto, a idéia xenófoba de que eles roubam trabalho dos brasileiros é facilmente rechaçada.

Jesus Arveras: assaltado e espancado

Apoio

Jesus Arveras carrega traços tipicamente bolivianos. Não trilhava, por sorte, o caminho da maioria de seus conterrâneos que chegam a São Paulo. Apesar de provir de uma família de poucas posses, Jesus tinha uma vida muito ocupada e de perspectivas relativamente esperançosas. Além de estudar, ele ainda encontrava tempo para fazer cursos de especialização, à tarde, e trabalhar como marceneiro, à noite. Sua grande paixão são os livros. "Eles são a minha namorada", revela. Outro grande objeto de seu afeto é a informática. Jesus tinha a ambição de conseguir um pouco de dinheiro, o mínimo que lhe garantisse a aquisição de um computador.

Porém, a sorte não sorriu para Jesus. Pouco tempo após sua chegada a São Paulo, foi assaltado e brutalmente espancado. Depois de encontrá-lo, a polícia entregou-o aos cuidados da Pastoral dos Migrantes Latino-americanos. Jesus, traumatizado com o infortúnio, sofreu seqüelas por causa dos golpes desferidos. Sem falar, permaneceu durante três meses na Associação de Voluntários para Integração do Migrante (AVIM), um albergue mantido pela Pastoral, ambos instalados na Igreja de Nossa Senhora da Paz. Com todos os documentos roubados, além de seus pertences, Jesus pouco pôde ser ajudado. As tentativas do Consulado Boliviano de encontrar sua família em La Paz foram frustradas. Por não haver outra alternativa, foi encaminhado para internação no Hospital Psiquiátrico da Água Funda. Depois de poucas semanas de tratamento, Jesus foi praticamente curado, voltando a ter uma vida normal. Com a alta, permaneceu mais alguns dias sob abrigo do AVIM. O consulado, para felicidade de Jesus, localizou parte de sua família, na Bolívia, e ele, finalmente, retornou para casa.

Localizada na Baixada do Glicério, região central da capital, a Pastoral dos Migrantes Latino-americanos, instalada na Igreja Nossa Senhora da Paz, dá todo tipo de assistência aos migrantes. Desde agendamento de cerimônias de batismo, até regularização dos que necessitarem. Nesse sentido, ela chega a ser mais representativa do que os próprios consulados. E não é só na área jurídica que a Pastoral marca presença. Ela também é responsável pela organização de diversas festas, eventos e missas que fomentam o resgate da cultura dos povos latinos, promovendo maior integração entre eles. A festa patronal da Virgem de Copacabana, santa padroeira da Bolívia, por exemplo, congrega milhares de bolivianos.

Uma das vitórias mais importantes da Pastoral no sentido de ampliar a cidadania aos imigrantes se deu em 1995. Nesse ano, a Secretaria da Educação revogou a resolução SE.9, de janeiro de 1990, que proibia crianças sem documentos de freqüentar escola particular ou estadual.

Entre 60 e 80 mil bolivianos em São Paulo, apenas 25% em situação ilegal

O Hospital Maternidade Leonor Mendes de Barros, no Belém, também é um importante centro de auxíl
io a esses estrangeiros. Fundado em 1944 com o intuito de socorrer os "pracinhas" (soldados do exército brasileiro da Segunda Guerra Mundial), a instituição tem em suas fileiras de pacientes um número considerável de bolivianas. Segundo a Diretora de Serviço de Arquivo Médico, Coleta e Classificação de Dados, Elizabeth Yamada, o fato de o hospital ser público e próximo do local de moradia dos bolivianos são motivos da procura. Somam-se a isso a flexibilidade com relação à exigência de documentação e a garantia de atendimento. Mesmo sem vagas, o Plantão Controlador do hospital encaminha as gestantes para outras entidades. "É o fim da peregrinação", afirma Elizabeth.

Há ainda uma equipe de profissionais, como fonoaudiólogos, fisioterapeutas, entre outros, que prestam serviços à comunidade. Contudo, o trabalho com as bolivianas, às vezes, é comprometido pela dificuldade de comunicação. "Muitas não falam português", revela a assistente social Regina Barros. Entre elas, não são raros os casos de pacientes com o estado de saúde debilitado por Doenças Sexualmente Transmissíveis, como a Sífilis, segundo Regina. Um dos fenômenos mais recentes e preocupantes, na sua opinião, é o número de bolivianas que têm filhos ainda na adolescência. "Elas fogem de seu país de origem, acompanhadas de seus parceiros, também muito jovens", resume. Por não terem responsável legal, como requer a lei, a situação dessas imigrantes se torna muito complicada. O Serviço Social da maternidade faz uma ponte entre os bolivianos e o consulado, com o qual possui relação amistosa, a fim de regularizá-los.

Organização

Coreanos, japoneses e italianos são colônias reconhecidamente organizadas. Jornal próprio e eventos sociais promovidos regularmente são indicadores desse evoluído grau de união. Nesse quesito, os bolivianos deixam uma pouco a desejar. Apesar de constituírem associações e entidades que zelam pela preservação de elementos da cultura de sua terra-natal, esses imigrantes ainda têm um longo caminho a percorrer até consolidarem uma identidade de peso dentro da cidade de São Paulo.

Fernando Vargas, um dos organizadores de campeonatos de futebol

Assim, a Associação dos Residentes Bolivianos, com sede no bairro da Casa Verde, foi criada na década de 60 com o intuito de ser uma referência a esses estrangeiros. Na década de 80, surgiu a Fraternidad Deportiva Juventud Boliviana, que se dedica, ainda hoje, à promoção de torneios de futebol. Na verdade, essa é uma das poucas opções de entretenimento dos bolivianos. "É um esporte de pobre, praticável em qualquer lugar", brinca Fernando Vargas, um dos organizadores dos campeonatos. Presidente da entidade por seis vezes, ele revela que o futebol é um dos raros momentos em que bolivianos de todas as partes da cidade, de todos os níveis sócio-econômicos, são reunidos. Fernando, tecnólogo formado pela Fatec, conta que uma ínfima parte dos participantes dos torneios tem nível superior de instrução. "Muitos são até analfabetos, fazem parte daquela camada que é semi-escravizada nas tecelagens", explica.

Hoje, a fraternidade tem aproximadamente 30 times filiados, hierarquizados em duas divisões. "Mas com o decorrer do ano o número de inscritos aumenta", acrescenta. Os torneios duram o ano inteiro, e os organizadores têm a tarefa de alugar as quadras aos fins-de-semana, pagar os árbitros e comprar os troféus. As atividades a que se dedica a fraternidade são meramente esportivas. Segundo Fernando, encontros festivos, como a comemoração do aniversário da independência da Bolívia (dia 6 de agosto de 1825), ficam a cargo da Associação dos Residentes.

Esperança

A motivação desses imigrantes é muito grande. Mesmo sabendo das precárias condições a que terão de se sujeitar, os bolivianos preferem a semi-escravidão em território brasileiro à perversa falta de opções de seus país de origem. Às vezes, depois de conseguirem regularização de sua situação aqui, muitos continuam trabalhando sem carteira assinada, pois sabem da dificuldade que enfrentarão se quiserem procurar por outros trabalhos. "Mas eles são relativamente bem sucedidos. Ao cabo de alguns anos, conseguem montar a própria tecelagem ou comprar algumas máquinas", comenta Padre Sidney. Como ele mesmo diz, o trabalho da Pastoral se depara constantemente com um dilema: denunciar ou não as condições sub-humanas de trabalho dos bolivianos. "É uma faca de dois gumes. Ninguém quer deixar o Brasil", explica.

O boliviano é tido como um bom trabalhador, que não se abate com as dificuldades da rotina, por piores que elas sejam. "Você não vê nenhum boliviano mendigando pelas ruas de São Paulo. Todos possuem ocupação e não têm medo do trabalho", revela o cônsul Ivanko Kuljis. Todavia, esse discurso abre precedentes para uma perigosa análise dessa questão, na medida em que pode induzir à crença de que o boliviano trabalha muito por ser disposto e competente, e não por ser explorado. Dessa maneira, essa "essência" do boliviano pode lastrear a manutenção dos fluxos migratórios que alimentam as relações de subjugação desses imigrantes.

O êxodo em direção ao Brasil é um grito de sobrevivência. Ivanko Kuljis encontra na globalização um dos culpados da situação desesperadora de seus compatriotas. A falta de emprego causada pela desenfreada concorrência imposta por transnacionais cria essa situação. Mas Ivanko entende a migração como um direito universal do homem. "O mundo é da família humana. A migração diz respeito à própria manutenção de sua vida."

São Paulo, Outubro de 2001

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