Nova escravidão

Seis anos após o massacre de Eldorado dos Carajás, a realidade dos lavradores pouco mudou na região. O Pará, sob forte influência de latifundiários, é o estado com maior número de casos comprovados de trabalho escravo. Isso sem contar o descaso com a infância, que toma forma de meninas nos bordéis e de meninos em serviços insalubres no campo. Apesar do aumento no número de resgates de trabalhadores em 2001 pelo Ministério do Trabalho, faltam ações práticas para impedir que pessoas sejam escravizadas não só na Amazônia, mas em todo o Brasil.
Por Leonardo Sakamoto
 01/02/2002
Trabalhador em situação de escravidão resgatado da fazenda Peruano, município de Eldorado dos Carajás, Pará

Nos dias 13 e 14 de dezembro passado, foram resgatados 54 trabalhadores rurais que estavam sob condições degradantes de trabalho na fazenda Peruano, município de Eldorado dos Carajás, sudeste do Pará. A ação, realizada por uma equipe do grupo móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), foi motivada por denúncias de maus-tratos e cerceamento da liberdade. Pessoas não eram pagas havia meses, recebendo apenas arroz, feijão e alojamento – pequenas barracas de madeira, palha ou lona, em que se amontoavam 10, 20 redes. A água, suja e imprópria, servia para consumo, banho e lavagem de roupa. Um perigo, haja vista que muitas vezes a pele ficava contaminada com veneno usado no pasto e não havia equipamentos de proteção.

Segundo Marinalva Cardoso Dantas, chefe da equipe, ao todo foram registrados 20 autos de infração – entre eles o de trabalho infantil. A fazenda de gado, considerada modelo no desenvolvimento de matrizes reprodutoras, inseminação artificial e comercialização de embriões, foi obrigada a pagar os salários e direitos trabalhistas devidos. O proprietário, Evandro Mutran, um dos maiores criadores de nelore do estado, procurado por esta reportagem, não foi localizado.

No ano passado, de acordo com a Secretaria de Inspeção do Trabalho, cerca de 1,6 mil pessoas foram resgatadas no país em operações dos grupos móveis de fiscalização em conjunto com a Polícia Federal – o maior número registrado até hoje e um grande salto se comparado a 2000, quando 583 pessoas ganharam a liberdade. Aproximadamente R$ 1,2 milhão em direitos trabalhistas pagos, isso sem contar o valor das multas geradas pelos autos de infração.

O trabalho escravo hoje não é o mesmo das senzalas e do tráfico negreiro que vigorou por séculos. Mudou, assumiu nova cara, mas manteve a característica de privar o ser humano de sua dignidade. Apesar do aumento na eficiência da fiscalização, não há o que comemorar. Uma série de entraves à ação dos grupos móveis e a carência de políticas públicas contra o trabalho forçado impedem que milhares de outras pessoas alcancem a liberdade. Indefinições jurídicas, impunidade e a falta de uma política fundiária eficaz têm garantido a utilização de mão-de-obra escrava em fazendas, garimpos, bordéis, indústrias e estabelecimentos comerciais.

Grupo de trabalhadores resgatados na fazenda Peruano

"Infelizmente não há uma estatística exata de quantos permanecem em situação análoga à escravidão", afirma Cláudio Secchin, chefe da divisão de apoio à fiscalização móvel. O MTE considera que há três cativos para cada libertado, de acordo com dados obtidos nas ações. Frei Xavier Plassat, da coordenação nacional da campanha contra o trabalho escravo da Comissão Pastoral da Terra (CPT), discorda e acredita que o número de pessoas que todo ano caem em cativeiro seja muito maior. O órgão, ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e a mais importante entidade não-governamental que atua nessa área, estima que existam entre 8 mil e 12 mil trabalhadores em situação de escravidão ou de superexploração no período de pico do serviço de limpeza de pasto na Amazônia, entre maio e agosto.

A transformação da maior floresta tropical do mundo em pasto tem sido realizada boa parte das vezes por mão-de-obra escrava trazida do nordeste. Se o Pará é o local com maior incidência de casos (60% do total, segundo o MTE), Maranhão, Bahia e Piauí, além de usuários, são os principais fornecedores de gente.

Casos de condenação são raros: em todo o país, houve apenas dois. Recentemente, o de uma fazenda em Rondônia, julgado em última instância, e o de Antônio Barbosa, proprietário da fazenda Alvorada, município de Água Azul do Norte (PA). Como a pena estabelecida pelo Código Penal é pequena e dá direito a sursis, o juiz a transformou em doação de 30 cestas básicas durante seis meses. O que não amedronta ninguém, haja vista que trabalhadores foram novamente resgatados das terras de Barbosa após uma fiscalização realizada em novembro passado. "Há fazendas que já foram flagradas cinco vezes", afirma José Batista, advogado e coordenador regional da CPT em Marabá (PA). A própria falta de definição sobre o que seria hoje "trabalho escravo" tem dificultado a aplicação de penas e garantido a impunidade.

Nova escravidão

Comete um grande equívoco quem iguala a situação atual àquela que existia no país até o final do século 19. Afirmar que, apesar da Lei Áurea, a escravidão não terminou é fazer uma confusão que acaba atrapalhando a busca de soluções objetivas para o problema.

Camisa de garimpeiro contratado para limpar pasto.

Segundo Antônio Penalves Rocha, professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo e um dos maiores pesquisadores do assunto, antes de mais nada, é necessário fazer uma diferença entre a existência de trabalho escravo e a sociedade escravista. Nesta, as leis garantiam a possibilidade de uma pessoa assumir a propriedade de outra e de seus herdeiros. Ou seja, isso era aceito e incentivado pelo Estado. De acordo com Penalves, houve apenas cinco sociedades escravistas na história, nas quais o sistema de produção e a própria organização social estavam baseados totalmente na utilização desse tipo de mão-de-obra: Brasil, Estados Unidos, Caribe, além de Roma e Grécia antigas. Com a promulgação da Lei Áurea, em maio de 1888, o Brasil foi o último país a pôr fim à escravidão, com a revogação dos instrumentos jurídicos que a sustentavam.

Isso não significa que a utilização de trabalho semelhante ao escravo tenha terminado. O cativeiro justificado por títulos de propriedade já começava a dar lugar à servidão por endividamento mesmo antes dessa data, como aco
ntecia no caso dos migrantes nordestinos que acabavam se tornando escravos nos seringais amazônicos.

Em 1926, a Liga das Nações – sociedade de países que se originou após a 1ª Guerra Mundial – adotou uma convenção na qual se proibiram a escravidão e o tráfico de pessoas, discorrendo a respeito da necessidade de evitar que o trabalho forçado produzisse "condições análogas à escravidão". Trinta anos mais tarde, a ONU adotou a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, ampliando o conceito de trabalho forçado e descrevendo as práticas análogas à escravidão. Entre elas, estavam a servidão (na qual, em troca do acesso à terra, a pessoa fica obrigada a trabalhar e a viver nela) e a prática de "comércio" de mulheres ou crianças, oferecidas em matrimônio, no abatimento de uma dívida ou passadas em herança como instrumentos de trabalho.

José Carlos Filho, 62 anos, encontrado doente na rede de um dos alojamentos e internado às pressas. Ele tremia há três dias, não de malária ou dengue, mas de má alimentação.

De acordo com Penalves, a forma mais encontrada no Brasil é a da servidão, ou peonagem, por dívida, em que a pessoa empenha sua própria capacidade de trabalho ou a de pessoas sob sua responsabilidade para saldar uma conta. Mas isso acontece sem que o valor das tarefas executadas seja aplicado em sua liquidação de forma razoável ou que a duração e a natureza do serviço estejam claramente definidas. Ambas as convenções, a de 1926 e a de 1956, entraram em vigor no país em janeiro de 1966.

Durante muito tempo, negou-se a existência de formas de escravidão no território nacional. Para alguns juristas, políticos e fazendeiros, o problema é coisa do passado, uma vez que não há mais o direito à propriedade sobre outra pessoa.

Em 1971, surgiram as primeiras denúncias de formas contemporâneas de escravidão, feitas por dom Pedro Casaldáliga sobre a situação dos trabalhadores com dívidas impagáveis. Sete anos mais tarde, a denúncia feita pela CPT contra a fazenda Vale do Rio Cristalino, pertencente à Volkswagen, localizada no sul do Pará, a partir do depoimento de peões que conseguiram fugir a pé da propriedade, deu visibilidade internacional ao problema. Mas isso não foi suficiente para inibir tal crime. No ano passado, em uma fazenda no município maranhense de Açailândia 41 crianças mantidas em regime de escravidão foram resgatadas.

Integrantes do grupo móvel de iscalização checam os caderninhos dos gatos nos quais ficam anotados as dívidas dos trabalhadores

Dívidas

O sistema pode sofrer variações dependendo do local, mas em boa parte do país funciona da mesma forma. Não é apenas o cerceamento da liberdade que o caracteriza, e sim uma série de etapas. Segundo Ela Wiecko de Castilho, subprocuradora-geral da República e professora de direito penal na Universidade de Brasília e na Universidade Federal de Santa Catarina, o processo inclui: recrutamento, transporte, hospedagem, alimentação e vigilância. E cada qual com a existência de fraudes, ameaças e violência física ou psicológica.

Devido à seca, à falta de terra para plantar e de incentivos dos governos para fixação do homem no campo, aos altos juros do crédito agrícola, ao desemprego nas pequenas cidades do interior ou a tudo isso junto, o trabalhador acaba não vendo outra saída senão deixar sua casa em busca de sustento para a família. Ao ouvir rumores de que existe serviço farto em fazendas, ele vai para esses locais espontaneamente ou é aliciado por gatos (contratadores de mão-de-obra que fazem a ponte entre o empregador e o peão). Estes, muitas vezes, vêm buscá-lo de ônibus ou caminhão – o velho pau-de-arara.

Já na chegada, o peão vê que a realidade é bem diferente. A dívida que tem por conta do transporte aumentará em um ritmo constante, uma vez que o material de trabalho pessoal, como botas, é comprado na "cantina" do próprio gato, do dono da fazenda ou de alguém indicado por eles. Os gastos com refeições, remédios, pilhas ou cigarros vão para um "caderninho", e o que é cobrado por um produto dificilmente será o seu preço real. Um par de chinelos pode custar o triplo. Além disso, é costume do gato não informar o montante, só anotar. Saber o valor correto não adiantaria muito, pois, na maioria das vezes, o local de trabalho fica em áreas isoladas e os peões não têm dinheiro. Cobra-se por alojamentos precários, sem condições de higiene.

Local onde é retirada a água para beber, cozinhar, onde toma-se banho e lava-se as roupas do alojamento do trabalhadores do gato frazão. Acreditam que não é necessário ferver a água.

No dia do pagamento, a dívida do trabalhador é maior do que o total que ele teria a receber – isso considerando que o acordo verbal feito com o gato é quebrado, tendo o peão direito a um valor bem menor que o combinado. Ao final, quem trabalhou meses sem receber nada acaba devedor do gato e do dono da fazenda, e tem de continuar suando para poder quitar a dívida. Um poço sem fundo.

Muitas vezes quando peões reclamam das condições ou querem deixar a fazenda, capatazes armados os fazem mudar de idéia. "A água parecia suco de abacaxi, de tão suja, grossa e cheia de bichos." Mateus*, natural do Piauí, e seus companheiros usavam essa água para beber, lavar roupa e tomar banho. Foi contratado por um gato para fazer "roça de mata virgem" – limpar o caminho para que as motosserras pudessem derrubar a floresta e assim dar lugar ao gado – em uma fazenda na região de Marabá. Com os olhos cheios de água, conta que, no dia do acerto, não houve pagamento. Ele reclamou da água na frente dos demais e por causa disso foi agredido com uma faca. "Se não tivesse me defendido com a mão, o golpe tinha pegado no pescoço", conta, mostrando um corte no dedo que lhe tirou a sensibilidade e o movimento. "Todo mundo viu, mas não pôde fazer nada. Macaco sem rabo não pula de um galho para outro." Mateus foi instruído pelo gerente da fazenda a não dar queixa na Justi&
ccedil;a.

Entrada da cidade de Eldorado dos Carajás, onde podem ser encontrados hotéis peoneiros e bordéis

Há trabalhadores que chegam à região sem ter feito acordo prévio. Hospedam-se nos chamados "hotéis peoneiros", ficando dias até que algum gato venha buscá-los, "compre" suas dívidas e os leve às fazendas. A partir daí, tornam-se seus credores e devem trabalhar para abater o saldo. Muitos seguem contrariados por estarem sendo negociados. Mas há os que vão felizes, pois acreditam ter conseguido um emprego que possibilitará honrar seus compromissos e enviar dinheiro para casa.

"O pessoal vai para o hotel no quilômetro 100 (da rodovia PA-150, entre Marabá e Eldorado dos Carajás) e a gente pega para trabalhar", afirma Júnior Costa Silva, o Corró, gato que trabalha para a fazenda Peruano. Ele, que desconta metade do pagamento destinado aos trabalhadores para cobrir despesas, chegou a confessar que não deixava os peões irem embora enquanto não quitassem as dívidas. Depois, diante de câmeras de vídeo, voltou atrás.

Esta reportagem visitou vários desses hotéis em Eldorado dos Carajás. Em dezembro, mês de chuvas, é mais difícil conseguir peões, mas o proprietário de um desses locais informou que, mesmo assim, poderia providenciar alguns, por um preço que seria acertado depois. Com o fim do período chuvoso, as pousadas ficam lotadas novamente. A atuação da fiscalização dos grupos móveis e da CPT na região tem contribuído para diminuir os negócios desses hotéis.

De maneira geral, a situação contemporânea é bem mais vantajosa para os "patrões", do ponto de vista financeiro e operacional, que a da época da escravidão. O sociólogo norte-americano Kevin Bales, em seu livro Disposable People: New Slavery in the Global Economy (Gente Descartável: A Nova Escravidão na Economia Mundial), traça paralelos entre esse sistema e o antigo. Entre eles estão: baixo custo de aquisição (muitas vezes, apenas o transporte); lucros maiores (não há gastos com manutenção); grande reserva de mão-de-obra (um gigantesco contingente de trabalhadores sem perspectivas); relação de curto período (terminado o serviço, não é mais necessário prover o sustento); escravos descartáveis (a reserva garante a rápida substituição, sem ônus ao empregador) e irrelevância de diferenças étnicas e culturais. Escravizam-se pessoas pobres e desprovidas de posses, mais vulneráveis a cair nas armadilhas. Bales faz uma estimativa de que existam atualmente 25 milhões de pessoas cativas em todo o mundo.

"Marabá", gato geral da fazenda Peruano mostra documentação à Marinalva Dantas, chefe da fiscalização. Há denúncias contra ele de violência a trabalhadores.

Fiscalização

Na década de 90, a pressão da sociedade civil e de organismos internacionais fez com que as autoridades corressem atrás de soluções. Em 1995, o governo federal criou os grupos móveis de fiscalização com o objetivo de averiguar as condições a que estão expostos trabalhadores, principalmente em locais remotos. Quando encontram irregularidades, como superexploração ou trabalho escravo, aplicam autos de infração que geram multas, além de garantir que os direitos sejam pagos aos empregados. Funcionários do MTE de diversos estados integram esses grupos, que possuem especialistas em várias áreas – da saúde à jurídica. Hoje, são quatro equipes que rodam o país e respondem diretamente a Brasília.

Graças à dedicação de seus integrantes, operações de libertação têm sido realizadas com sucesso, sendo esse o principal instrumento do governo. Entretanto, os grupos móveis estão rendendo muito menos do que poderiam caso tivessem maior apoio operacional e infra-estrutura adequada. "No ano de 2001, mais da metade das denúncias apresentadas pelas equipes da CPT do sul do Pará não foi apurada", lembra José Batista. A disponibilização de veículos, por exemplo, dependeu da boa vontade das delegacias regionais do trabalho. O sigilo, fundamental nesse tipo de operação, muitas vezes é quebrado antes de a ação começar, colocando em risco seu sucesso e a segurança das pessoas envolvidas.

"Os entraves surgem, pois os grupos móveis especiais de fiscalização ainda não dispõem de pessoal e estrutura totalmente independentes, de modo que sempre precisam contar com a colaboração das regionais do trabalho nos estados – o que em algumas oportunidades, infelizmente, não contribui para o sucesso das operações", afirma Cláudio Secchin. Segundo ele, as equipes estão sendo munidas de condições logísticas mais apropriadas, o que inclui, além de localizadores por satélite (GPS), material para registro de imagens e radiocomunicadores, veículos com tração nas quatro rodas, etc.

Há dificuldades em convencer burocratas de que telefones via satélite e helicópteros não são um luxo e sim equipamentos fundamentais, já que as ações, por vezes, desenrolam-se em regiões isoladas. Mesmo numa picape tracionada, uma equipe pode levar horas até chegar a uma fazenda. Vale a pena lembrar que locais onde a fuga é difícil são os preferidos por quem usa trabalho escravo.

Fila para poder fazer a carteira de trabalho. Quase ninguém possuía o documento. Cerqueiros, roçadores e outros que ficavam com os gatos não eram registrados.

Outro problema grave é a falta de policiais federais. Numa operação realizada em dezembro passado, uma equipe de fiscalização chegou a ficar cinco dias de braços cruzados à espera de policiais em Marabá.

"Foi de fato lamentável o ocorrido, pois impediu que naquela oportunidade o grupo tivesse apurado, se não todas, pelo menos um número maior das denúncias encaminhadas", explica Raquel Andrade Cunha, do Departamento de Promoção dos Direitos Humanos, órgão ligado ao Ministério da Justiça. "Na repressão ao trabalho escravo, o respaldo da Polícia Federal é essencial. Temos consciência
de que é preciso melhorar a qualidade desse apoio", afirma Raquel. Ela destaca a agilização da criação de um grupo especial para promover a repressão ao trabalho escravo, a capacitação de seus integrantes e a viabilização de infra-estrutura.

Segundo Raquel, a própria Polícia Federal reconhece a dificuldade. "No entanto, entendemos que, apesar dessas limitações de pessoal, devem ser feitas gestões para que, em curtíssimo prazo, a liberação dos agentes federais se dê de forma mais ágil para apoiar as ações do grupo móvel", diz ela.

A grande quantidade de denúncias também levou à criação do Gertraf (Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado) em 1995, cujo objetivo era viabilizar uma articulação entre as autoridades competentes na esfera federal para a luta contra o trabalho escravo. Essa estrutura, que tem como base os ministérios do Trabalho e Emprego e da Justiça, também coordenaria as ações públicas com esse objetivo. Passados sete anos, no entanto, há uma série de críticas em relação ao desvirtuamento da função original do Gertraf, ao mesmo tempo em que são desenvolvidos projetos para a reformulação de suas atividades.

"Quando falamos em mau funcionamento do Gertraf, aludimos ao fato de que este só tem atuado como fórum periódico onde se fala de trabalho escravo, mas nunca como instância de efetiva coordenação da ação do poder público – instância portanto executiva. Apesar do nome `grupo executivo`, o Gertraf não é nem deliberativo nem operacional. Mudar sua estrutura para conselho também não vai sanar esse vício", analisa frei Xavier Plassat.

Policial Federal mostra material para a fabricação caseira de cartuchos de grosso calibre na casa do gato Corró.

O fato é que, hoje, a articulação das equipes de fiscalização com outras áreas está bem abaixo do esperado. "A carência de pessoal muitas vezes é o principal obstáculo para a composição dos grupos", lembra Secchin. "Mas seria interessante que o Ministério Público Federal fizesse apontamentos para que a ação fosse conjunta, devido à sua vasta competência nas diversas matérias envolvidas: criminais, cíveis, fundiárias e ambientais."

Uma comissão criada em janeiro deste ano no âmbito do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana terá como objetivo acompanhar denúncias de violência no campo, exploração do trabalho forçado e escravo e de mão-de-obra infantil, além de propor mecanismos que proporcionem maior eficácia à prevenção e repressão a essas práticas. A comissão, que atuará em conjunto com o Gertraf, teria entre seus participantes os ministérios do Trabalho e Emprego e do Desenvolvimento Agrário, o Ministério Público Federal, a CPT, a Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura), a Associação dos Juízes Federais, o Fórum Nacional para a Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, a CNA (Confederação Nacional da Agricultura) e a Polícia Federal, entre outros.

A comissão nasce prometendo apoiar e buscar a implementação de uma série de iniciativas defendidas há tempos por quem luta contra o trabalho escravo – o que na maioria das vezes nada mais é do que simplesmente fazer valer a lei.

Cerqueiros perfuram a terra, plantando mourões e passando arame, quilômetros a fio sob as intempéries amazônicas.

Justiça cega

A discussão sobre o que seria o trabalho escravo contemporâneo se transforma num problema cotidiano quando a questão é a imputação criminosa. O artigo 149 do Código Penal trata da "redução à condição análoga à de escravo", estabelecendo pena de dois a oito anos de prisão a seus infratores. Genérico e impreciso, não especifica o que é "condição análoga à de escravo", deixando a cada juiz a função de interpretar o texto.

"Não é impeditivo, mas dificulta, pois tanto o Ministério Público quanto os juízes não têm conhecimento sobre isso. Uma conceituação facilitaria o cumprimento da lei", explica Ela Wiecko de Castilho. Segundo a subprocuradora, muitos juízes não aplicam as sanções do artigo 149 por puro desconhecimento ou falta de vontade política. Dificilmente se estuda o tema nas faculdades de direito. Torna-se, então, imprescindível que ele venha a ser discutido em encontros de magistrados.

Como já foi dito anteriormente, poucos foram condenados por utilizar trabalho escravo no país. Da mesma forma, também pode-se contar nos dedos os casos de prisão, como o de Max Neves Cangussu, de Bom Jardim (MA). Preso em flagrante em outubro de 2001 durante uma fiscalização, ele já foi solto e aguarda julgamento em liberdade.

Uma das propostas de reforma do Código Penal sugeriu a inclusão da seguinte tipificação do crime ao artigo: "Considera-se em estado análogo à escravidão quem é induzido a fornecer, em garantia de dívida, seus serviços pessoais ou de alguém sobre o qual tem autoridade, ou obrigado contra a vontade a viver e trabalhar em determinado lugar, remunerada ou gratuitamente". O governo federal, infelizmente, a deixou na gaveta.

Da esquerda para a direita, Corró, Frazão, Paulista e Luís, gatos que trabalham para fazenda Peruano.

A lei 9.777, de 29 de dezembro de 1998, trouxe alterações ao código e incriminou separadamente várias fases do processo de escravização nos artigos 207, 132 e 203. O objetivo foi diminuir a impunidade aos intermediários, agora com a possibilidade de condenação dos gatos, além do fornecimento de mais instrumentos de fiscalização aos grupos móveis. Constam da redação dos artigos: aliciar trabalhadores com o fim de levá-los a outras localidades do país, expor a vida de outro a perigo iminente (principalmente durante o transporte para a prestação de serviços), frustrar, mediante fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho – incluindo aqui a obriga&ccedi
l;ão de compra de "mercadorias em determinado estabelecimento, para impossibilitar o desligamento do serviço em virtude de dívida", da mesma forma que retenção de documentos ou coação.

Várias propostas que englobavam essas idéias foram desenvolvidas pelo Fórum contra a Violência no Campo, que reúne uma série de entidades governamentais e da sociedade civil. Uma vez que uma lei mais ampla com relação ao trabalho escravo não foi aprovada, o deputado Paulo Rocha (PT-PA) apresentou em 1995 uma proposta de emenda à Constituição Federal, acrescentando o trabalho escravo ao artigo 243, que trata da expropriação de terras em que sejam encontradas culturas ilegais de plantas psicotrópicas.

A mudança estabelece que as áreas sejam destinadas, então, à reforma agrária, com prioridade a quem já trabalhava no local, sem qualquer indenização ao proprietário.

"Com isso, resgata-se a função social da propriedade e ajuda-se a coibir a prática, pois os donos de terra que estiverem envolvidos serão penalizados", afirma Rocha. Atualmente, tanto o seu projeto quanto o similar do senador Ademir Andrade (PSP-PA) estão em trâmite nas Comissões de Constituição e Justiça de suas respectivas casas.

A expropriação livraria o país de algumas situações constrangedoras, como a que ocorreu na Flor da Mata, em São Félix do Xingu, sul do Pará. Em 1997, após constatação de trabalho escravo, a fazenda foi desapropriada para a reforma agrária por um valor 2.500% maior que aquele pago por Luís Pereira Martins três anos antes para sua aquisição. Na época, senadores e deputados ligados ao proprietário tentaram minar o trabalho do grupo móvel, alegando violência e arbitrariedade. No final, o fazendeiro lucrou com o cativeiro de 220 pessoas mais do que esperava. E a Flor da Mata se tornou sinônimo de impunidade.

Garimpeiros que vieram trabalhar na fazenda. Fazem um vai-e-vém da região de Serra Pelada para as fazendas da região de Eldorado e Marabá, sempre atrás do sustento.

Mudanças em curso também podem piorar a situação. A flexibilização das leis trabalhistas e o aumento do número de empregados terceirizados podem criar dificuldades para a fiscalização e inviabilizar punições a quem lucra com a prática, mas tem o cuidado de criar garantias em torno de si. Teme-se que, em último caso, seja imputado o lado mais fraco – como na tentativa dos administradores da fazenda Peruano de transferir a total responsabilidade trabalhista aos gatos. A justificativa é simples: os peões não são funcionários do dono da fazenda e sim de um empreiteiro contratado para fazer o serviço. Mesmo que esse gato seja pobre também.

Dentre as iniciativas que a comissão do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana promete apoiar está uma velha reivindicação: o corte de crédito oficial dado por agências de financiamento para as empresas reincidentes na contratação de mão-de-obra em desacordo com a legislação trabalhista. Muitos dos que se beneficiam do trabalho forçado contam com apoio, por exemplo, do BNDES e do Banco do Nordeste.

Há uma grande discussão sobre quem seria o responsável pelo julgamento, processo e fiscalização de questões relacionadas a novas formas de escravidão. Alguns defendem que sejam os estados, alegando que não há necessidade de ingerência da União em assuntos que as próprias unidades da federação teriam capacidade de resolver.

Isso desconsidera, porém, a realidade de certos locais do país, em que a lei escrita vale pouco e o que conta é a quantidade de cabeças de gado ou o número de alqueires de terra. Onde policiais mal pagos trabalham também como seguranças particulares e fazendeiros colocam seus protegidos e familiares em postos públicos, fundindo o que é publico ao que é privado. No Pará, por exemplo, está em curso uma campanha para a criação do estado de Carajás, desmembrando parte das regiões sul e sudeste do resto do estado. Mapas dessa unidade ainda fictícia, patrocinados por grandes fazendeiros, ornamentam hotéis e lojas de Marabá.

Monumento aos 19 trabalhadores rurais sem-terra mortos após confronto com a Polícia Militar em 17 de abril de 1996. Passados cinco anos, os responsáveis pelo massacre ainda não foram condenados.

A região de Eldorado dos Carajás se tornou conhecida internacionalmente após o confronto entre a Polícia Militar e o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), que resultou na morte de 19 lavradores em 17 de abril de 1996. Passados seis anos, os responsáveis pelo massacre ainda não foram condenados.

Uma saída que está tomando forma é a constituição de grupos móveis de fiscalização em que todos os componentes possam trabalhar em tempo integral no planejamento e realização de operações, com o comando centralizado e unificado em Brasília. Isso aumentaria o número de libertações e diminuiria as interferências políticas regionais no processo.

Além disso, tanto o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana quanto a Comissão Pastoral da Terra reforçam a necessidade de afirmação da competência da Justiça federal no julgamento de crimes relacionados ao trabalho escravo.

José Alves de Oliveira, natural do Maranhão, perdeu as contas das vezes que subiu e desceu com sacos cheios de lama em Serra Pelada. "Em Serra Pelada é melhor porque a gente tem nosso barraquinho."

Prevenção

Muitos peões, mesmo sabendo que estão sendo explorados, decidem permanecer na fazenda até quitar totalmente sua "dívida", pois o calote é contrário ao seu código de honra. Essa ética vem sendo explorada por gatos e patrões para garantir a continuidade da relação de subordinação. De acordo com frei Xavier Plassat, o combate a essa situação passa pela conscientização sobre os próprios direitos e a identificação de arbitrariedades, entre outras medidas. O fato de a fiscalização dos grupos móveis garantir o recebimento de todos os direitos no ato auxilia esse processo. Para se ter uma id&
eacute;ia, há fazendeiros que não aceitam peões que já foram resgatados.

A CPT vem desenvolvendo uma campanha de conscientização entre os trabalhadores rurais, principalmente em estados conhecidos como fornecedores de mão-de-obra. O objetivo é quebrar o sistema no início.

"A campanha tem rendido frutos, mas poucos, pois a situação social está cada vez pior", desabafa o padre Ladislau, da CPT do Piauí. O estado sofre até com a conivência de políticos que se utilizam de trabalho escravo, como o ex-secretário de Agricultura e deputado estadual Chico Filho, em sua fazenda no Pará.

Mas mesmo fiscalização, multas, prisão dos envolvidos, cortes em linhas de crédito atacam as conseqüências, deixando muitas vezes a causa em aberto. O trabalhador resgatado não vê opções para a sobrevivência e acaba caindo de novo na armadilha.

"Com terra para plantar não teria ido embora. Além disso, pessoa bem estudada não precisa sair, arruma emprego. Os outros têm de ir para o machado mesmo", lembra o piauiense Mateus. Escravidão no Brasil é sintoma de algo maior: desigualdade. As pessoas não precisariam deixar seus estados se houvesse uma efetiva política de reforma agrária, acompanhada de juros baixos para o crédito rural e transferência de conhecimento. Infelizmente, o que vemos hoje é uma grande quantidade de desempregados, reserva de contingente para o trabalho forçado nas regiões de fronteira agrícola.

Mão-de-obra escrava era utilizada em caieiras da região de São Raimundo Nonato, no Piauí. Um duplo crime, pois as rochas destruídas nos fornos para a produção de cal traziam pinturas rupestres de milhares de anos. A ação da Fumdham (Fundação Museu do Homem Americano), que administra o Parque Nacional da Serra da Capivara, e a pressão de fiscais e da imprensa fizeram com que a destruição fosse interrompida.

A Fumdham está transformando a área em parque arqueológico, o que irá gerar empregos para a população local. Ao mesmo tempo, está se fomentando a produção de mel orgânico em locais próximos às antigas caieiras, abrindo alternativas de desenvolvimento sustentável. Projetos simples, mas que ajudam a fixar o homem em seu local de origem.

Prevenir, garantindo que a utilização de escravos nem venha a acontecer, custa bem menos aos cofres públicos. No Pará, os mais pobres estão tentando tornar-se donos de seu próprio destino, lutando por distribuição de terras, cercados por uma imensidão de latifúndios improdutivos. Mas quem vive o dia-a-dia da região diz que as coisas não melhoraram, mesmo com toda a vergonha trazida ao país pelo massacre.

Alojamento de palha e madeira onde se apertam 22 redes e seus donos, quase todos garimpeiros.

Uma confusão que não passa pela lógica simples dos peões. Raimundo Nonato, resgatado na Peruano após nove meses sem receber, mostra uma gaiola de madeira vazia, pendurada em uma árvore ao lado do apertado alojamento na fazenda. Conta que um rapaz havia capturado um passarinho na roça. "Um galo-de-campina. Mas ele não cantava. Quando está solto, ele canta. Mas passarinho preso não canta, não", acrescenta Joel Mourão Costa, três meses sem salário. "Se está preso, não tem liberdade. Todos têm de viver livres", completa Nonato.

E o passarinho voou com o consentimento de todos.

* Alguns nomes de trabalhadores que aparecem nesta matéria são fictícios, para garantir sua segurança.

Pará, dezembro de 2001 a fevereiro de 2002

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