Fazendeiro do Pará mascara trabalho escravo

O Pará é o Estado com maior incidência de trabalho escravo no Brasil. A explicação passa pela sua imensa fronteira agrícola, que avança velozmente para o Oeste, derrubando a floresta amazônica e plantando pasto para gado. A utilização de trabalho escravo garante economia no serviço e lucros maiores para o bolso dos latifundiários. Em 2003, houve um aumento na fiscalização do governo. Com isso, os fazendeiros da região Sul do Pará estão desenvolvendo artimanhas para se adaptar a essa nova realidade e mascarar o trabalho escravo, evitando multas, processos judiciais e mandados de prisão.
Por Leonardo Sakamoto
 01/12/2003

Goianésia (PA) – O Pará é o Estado com maior incidência de trabalho escravo no Brasil. A explicação passa pela sua imensa fronteira agrícola, que avança velozmente para o Oeste, derrubando a floresta amazônica e plantando pasto para gado. A utilização de trabalho escravo garante economia no serviço e lucros maiores para o bolso dos latifundiários. Em 2003, houve um aumento na fiscalização do governo. Com isso, os fazendeiros da região Sul do Pará estão desenvolvendo artimanhas para se adaptar a essa nova realidade e mascarar o trabalho escravo, evitando multas, processos judiciais e mandados de prisão.

Foi o que aconteceu nesta semana na fazenda Nossa Senhora Aparecida, município de Goianésia, quando 31 pessoas foram libertadas por uma equipe do grupo móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). A ação contou ainda com a participação do Ministério Público do Trabalho e da Polícia Federal.

Os peões, que haviam sido aliciados para derrubar a mata e limpar o pasto, estavam submetidos a condições degradantes. Em certos poços, a água – utilizada para beber, lavar roupa, tomar banho e preparar a comida – exibia um coloração escura, além de exalar um odor fétido. Os trabalhadores estavam em barracas cobertas de lona ou palma de babaçu, amontoados em redes, onde conviviam adultos, mulheres e crianças. Carne só de caça, quando alguém conseguia acertar um tatu, uma paca ou um macaco.

Enquanto isso, mais de 3.000 cabeças de gado pastavam na fazenda, que possui cerca de 7,5 mil hectares de terra – parte dela não regularizada. O proprietário, Aloísio Alves de Souza, afirmou que tem outra fazenda na região, com mais 1.500 hectares e outras 800 rezes. “Tem vez que a gente passa mais de mês sem carne”, lembra Charles Monteiro, que prestava serviço há oito anos na fazenda.

Nesse mundo de chão, impera a lei do mais forte, no melhor estilo dos faroestes americanos. Fala mais alto quem tem o argumento de uma arma de fogo. E na sede da fazenda, a Polícia Federal encontrou o fazendeiro fortemente respaldado. Duas armas calibre 38 e dois rifles, um calibre 20 e um 12 de repetição e muita munição. Todas sem registro. Muitos trabalhadores tinham medo do patrão, que havia até imposto um toque de recolher. Sob a justificativa de impedir assaltos, proibiu que qualquer pessoa passasse pela porteira da fazenda à noite. O que desobedeceu a ordem conta que foi recebido a balas.

Maquiagem trabalhista

Não é apenas o cerceamento da liberdade que configura o trabalho escravo, mas sim uma série de etapas. Segundo Ela Wiecko de Castilho, subprocuradora-geral da República e professora de direito penal na Universidade de Brasília e na Universidade Federal de Santa Catarina, o processo inclui recrutamento, transporte, alojamento, alimentação e vigilância. E cada qual com a existência de maus-tratos, fraudes, ameaças e violências física ou psicológica.

A forma mais comum de escravidão no Brasil é a servidão por endividamento. Ao ouvir rumores de que existe serviço farto em fazendas, o peão vai para esses locais espontaneamente ou é aliciado por gatos (contratadores de mão-de-obra que fazem a ponte entre o empregador e o peão). Já na chegada, o peão vê que a realidade é bem diferente do que havia sido prometido.

A dívida que tem por conta do transporte aumentará em um ritmo constante, uma vez que o material de trabalho pessoal é comprado na “cantina” do próprio gato, do dono da fazenda ou de alguém indicado por eles. Os gastos com refeições, remédios, pilhas ou cigarros vão para um “caderninho”, e o que é cobrado por um produto dificilmente será o seu preço real. Cobra-se por alojamentos precários, sem condições de higiene.

No dia do pagamento, a dívida do trabalhador é maior do que o total que ele teria a receber – isso considerando que o acordo verbal feito com o gato é quebrado, tendo o peão direito a um valor bem menor que o combinado. Ao final, quem trabalhou meses sem receber nada acaba devedor do gato e do dono da fazenda, e tem de continuar suando para poder quitar a dívida.

No caso da fazenda Nossa Senhora Aparecida, Aloísio Alves de Souza fazia o pagamento mensalmente aos trabalhadores. Porém, descontava ilegalmente o valor da alimentação e de outros itens comprados na cantina – que, nesse caso, não era gerenciado pelos quatro gatos da fazenda, mas pelo próprio fazendeiro. Os peões recebiam o saldo restante em cheques. O interessante é que Goianésia não tem agência bancária. Os cheques eram aceitos pelo comércio local, mediante um desconto no seu valor nominal. Outras pessoas não conseguiam trocar os cheques. Em suma, no final, não recebiam seu dinheiro.

“Tudo que eles [os peões] pegam aqui tem desconto. Arroz, feijão, óleo, café, açúcar, sabão, milharina, bolacha…”, conta Manuel dos Reis, um dos gatos da fazenda que, indo contra o padrão encontrado, são miseráveis como os outros peões.

Outra coisa que pesa na determinação de trabalho escravo é o isolamento físico a que estavam submetidos. Ninguém era proibido de sair da propriedade – com exceção do horário do “toque de recolher”. Contudo, o isolamento geográfico criado pelas dezenas de quilômetros que separavam os barracos do telefone público mais próximo e a falta de transporte por parte do empregador são uma forma de cercear a liberdade.

“Cada dia mais os fazendeiros tentam ludibriar a situação do sul do Pará. Uma forma é fazer contratos fraudulentos de trabalho, mascarando os fatos para não ser figurado no trabalho escravo”, afirma Virna Damasceno, coordenadora do grupo móvel de fiscalização.

Aloísio pedia as carteiras de trabalho, mas não as assinava. Peões contam que tinham que assinar recibos em branco e nunca souberam bem o porquê. Outra “maquiagem” já havia sido descoberta na libertação de 22 trabalhadores na fazenda Entre Rios, em Sinop, Mato Grosso, no último dia 20 de novembro.

Um bom coração

“Um cerqueiro denunciou o [fazendeiro] Mazinho, ele ficou sabendo que vocês [grupo móvel de fiscalização] viriam e botou a gente para fora. Aí, meu tio trouxe nós para cá.” Roberto* conta que trabalhava em uma fazenda próxima e teve que sair às pressas. É comum a prática de despejar os trabalhadores, sem acertar nada, quando vaza a informação de que a fiscalização do governo está próxima. Analfabeto, trabalha na limpeza do pasto há anos. “Nem estudei um ano direito. Nós fica trabalhando direto! Por isso, só sei assinar o começo do meu nome. O sobrenome, não sei fazer ainda.” Dois adolescentes de 16 anos foram encontrad
os no serviço da propriedade.

Roberto conta que um par de botas sai por R$ 25 na lojinha do fazendeiro. Uma rede, R$ 16, e uma foice, R$ 12. Material de trabalho que deveria ser entregue gratuitamente. Junto com o equipamento mínimo de segurança, que também não existia.

Os 31 peões devem receber R$ 71.549,77 de direitos trabalhistas até terça-feira (2). Isso se o proprietário da Nossa Senhora não comprar briga. Durante a fiscalização, Aloísio teria ido ao hospital com pressão alta após um súbito mal-estar. No sábado, antes de saber o valor, eles estava bem de saúde. Contava que chegou na região em 1972, para “desbravar”. A sina de bandeirante lhe garantiu um latifúndio com milhares de cabeças de gado e extração de madeira.

“Minha fazenda não é diferente das demais.” Eles justificou as péssimas condições de trabalho ao seu lado filantropo. “Eu não tenho como manter alojamento. Estou até saindo do ramo, pois o insumo é caro e a remuneração é baixa. Mas o coração fala mais alto. Pessoas chegam aqui, pedindo pelo amor de Deus que lhes dêem um emprego.”

Um peão libertado não concorda com essa bondade explícita. “É, quando ele tá de bom coração, ele até dá carona até a cidade. Quando não, diz que é para a gente ir a pé mesmo. Ele diz que é um homem educado. Pela ignorância que trata nós, parece que não”.

Depoimentos mais antigos dizem que na época em que a derrubada da mata foi mais forte, trabalhadores eram espancados. A princípio, parece que socos e tapas foram deixados de lado, até para evitar complicações com o governo. Mas a floresta continua caindo e os peões tratados de forma desumana nessa terra em que boi vale mais que gente.

Grupo Móvel

Os direitos dos trabalhadores rurais freqüentemente são ignorados na chamada “fronteira agrícola”. Para impedir que isso aconteça, grupos móveis de fiscalização do Ministério do Trabalho, Ministério Público do Trabalho e Polícia Federal realizam vistorias de surpresa, aplicando multas e resgatando pessoas quando são constatadas irregularidades.

De acordo com levantamento realizado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) Pará e Mato Grosso são os Estados com maior incidência de utilização de trabalho escravo e de aliciamento. Piauí, Tocantins e Maranhão são grandes fornecedores de mão-de-obra. Neste ano, a Bahia entrou no rol dos que mais utilizam trabalho escravo. A fiscalização do Ministério do Trabalho já libertou em 2003 mais de 4.500 pessoas.

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