“A gente também se coloca à disposição de lutar pela vida. Se o nosso destino for esse, paciência, outros aparecem e tocam a luta”. É assim que José Amaro Lopes de Sousa, o Padre Amaro, encara as constantes ameaças de morte que recebe como um dos coordenadores da regional do Pará da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que atua em Anapu, onde a freira Dorothy Stang foi assassinada no último dia 12. Amigo da missionária, o padre de 38 anos sofre com o destino dela e de outros companheiros de luta que tombam dia a dia por causa do conflito fundiário na região. Desde sábado, só na cidade de Anapu outros dois trabalhadores rurais foram mortos.
Nascido na cidade de Itapecuru, no interior do Maranhão, logo aos onze anos começou a participar do sindicato dos trabalhadores rurais da região, como ajudante na delegacia sindical. Mais tarde entrou para o seminário e, percebendo os males do coronelismo, que expulsava e explorava populações vulneráveis, como ribeirinhos e quebradeiras de coco, passou a se interessar cada vez mais pela causa dos trabalhadores rurais. “Aquilo foi me irritando porque o evangelho diz que a terra é um dom de Deus para a gente usufruir, e não para explorar”.
Em entrevista à Agência Carta Maior, o padre fala sobre como é a vida dos trabalhadores rurais e suas lideranças, que convivem diariamente com a violência em Anapu, a atuação corrupta das polícias civil e militar e a omissão histórica dos governos. Segundo ele, não adianta proteger os defensores de direitos humanos se a população continuar insegura. A segurança tem que ser para todos. Ele defende uma reforma agrária clara para acabar com os conflitos, e aponta o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) como uma possível saída para a o problema da destruição da floresta.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista, concedida por telefone:
Agência Carta Maior – Por que você foi ameaçado de morte?
Padre Amaro – Como pároco da Paróquia Santa Luzia, vejo nas comunidades o clamor do povo contra o projeto fraudulento que ocorreu aqui. Os fazendeiros acharam que eram donos de tudo e começaram a grilar as terras da União e a jogar capim, colocar trator dentro, derrubar a floresta, tomando dos posseiros e dos trabalhadores. A gente, junto com a CPT e os sindicatos dos trabalhadores rurais, começou a denunciar essas coisas e eles não gostaram porque somos uma pedra no sapato deles. A gente vem falando, denunciando a questão dos direitos humanos e a questão da segurança.
CM – Como essas ameaças costumam ser feitas?
PA – Às vezes direta, outras vezes indiretamente, usando outro trabalhador para dar o recado, pessoas sérias. Eu e a irmã [Dorothy], como representantes da CPT, ajudamos a fundar a associação dos assentados. No sábado retrasado, três pessoas pegaram o presidente da associação na rua e o humilharam com facas. Depois disseram para ele que “o que tinha para aquele padre da cabeça seca era uma bala, e que para aquela irmã os dias estavam contados”. Ele nos procurou, mas a irmã não acreditava muito que isso fosse acontecer. Eu pedi para ele ir na polícia civil registrar a queixa e ele disse “padre, desculpa, mas já tem tanta queixa nossa na civil que eles já estão até enjoados da nossa cara”. E é justamente isso que vem acontecendo. A gente denuncia para os órgãos que se dizem competentes, mas eles não fazem nada. Eu e a irmã fazíamos o pacote junto das denúncias, e não colocávamos só a questão pessoal, fazíamos a denúncia coletiva.
CM – Como é viver sob constantes ameaças?
PA – Tem momentos em que a gente fica um pouco tenso. Mas quando você entra nesses travessões precários, e chega na casa do trabalhador, na comunidade, e celebra a palavra de Deus no meio do povo, que você vê a felicidade com que é acolhido, com que a palavra de Deus também é acolhida, colocada no coração das pessoas simples que lutam em prol dos seus direitos, isso dá ânimo e o medo passa. Eu levo muito comigo e gosto de refletir sobre a imagem do Cristo pregado na cruz, não simplesmente porque ele está lá. Ele foi pregado, mas ressuscitou. Esse é o motivo da gente lutar, lutar por um Cristo que foi pregado injustamente porque lutava, e lutou até às últimas conseqüências, por direitos humanos, como a própria irmã fez. E a gente também se coloca à disposição de lutar pela vida. Se o nosso destino for esse, paciência. Outros aparecem e tocam a luta. A luta continua.
CM – Além de sofrerem violência, é comum que trabalhadores rurais e defensores dos diretos humanos sejam criminalizados, como ocorreu com Irmã Dorothy, acusada de fornecer arma para o assassinato de um segurança?
PA – Essa criminalização é comum. O governo precisa criar vergonha e colocar juízes, promotores, pessoas capacitadas e competentes, que lutem mesmo pela causa dos trabalhadores. Nós temos aqui quatro trabalhadores da gleba de Madacaraí que estão presos injustamente há quase um ano. Já foram negados vários pedidos de habeas corpus. Na audiência que ocorreu recentemente, pressionamos o ministro Marcio Thomaz Bastos. A gente esperava que esses companheiros fossem responder em liberdade, mas no final das contas isso foi negado a esses companheiros. Isso é muito triste.
CM – O que causa essa situação de violência contra trabalhadores rurais, sindicalistas e defensores dos direitos humanos. Como os governos federal e estadual podem resolver essa questão?
PA – Nós falamos tanto em reforma agrária, em assentamentos, mas entra governo e sai governo e não se tem uma reforma agrária clara que possa tirar o latifúndio do meio do trabalhador, porque o trigo não pode crescer no meio do joio. Precisamos de uma coisa concreta, não só fazer a reforma agrária, mas dar crédito para essas pessoas simples trabalharem. Isso diminuiria a violência no campo e na cidade. Antes os dados mostravam que muitas pessoas estavam indo para a cidade, mas a gente percebe que nesses últimos anos muitas pessoas estão procurando o campo para trabalhar. O que está faltando é mais força por parte dos governos para fazer uma reforma agrária eficiente e tirar as questões partidárias do meio dessas questões da luta pela vida. Se vai fazer, faz de uma vez, não é para ficar brincando de reforma agrária.
CM – Com os holofotes ainda em cima da questão do conflito fundiário e a violência no Pará, os trabalhadores rurais e as lideranças continuam sendo assassinados. O que explica tanta ousadia por parte dos mandantes?
PA – O que justifica isso é que esses grupos são os mesmos que financiam as campanhas políticas. Agora estão chegando as próximas eleições para governador, deputado, senador. Esses grupos se sentem com as costas quentes, porque muitos dos nossos governantes estão com o rabo preso com eles. Se eles forem presos, muitos políticos n&a
tilde;o vão ter dinheiro para fazer as próximas campanhas políticas e se manter no poder.
CM – Segundo a CPT, 25 pistoleiros com mandado de prisão estão soltos no Pará. Qual é a importância de combater a impunidade nesses casos?
PA – Na questão das crianças emasculadas de Altamira, por exemplo, os que foram condenados estão respondendo em liberdade. Isso frustra os populares, as pessoas simples e humildes. Até para fazer uma denúncia, para lutar por seus direitos as pessoas têm medo. Porque depois a pessoa é deixada exposta. Fica ao Deus dará, não se sente segura. Como é que você vai confiar numa polícia que tem uma precariedade de trabalho, de tudo, tanto a polícia estadual quanto militar, que às vezes se obriga a se corromper até para sobreviver? Isso tudo atrapalha o processo.
CM – A lista de pessoas marcadas para morrer, como estava Irmã Dorothy, é longa e conhecida. As denúncias são feitas para as autoridades competentes, mas nada é feito. Por que é tão difícil conseguir proteção policial?
PA – Como eu falei para os ministros que vieram aqui, é muito cômodo você ter segurança particular, quando na verdade o nosso povo fica inseguro. Hoje mesmo tivemos aqui uma assembléia com duzentos trabalhadores que vieram para o velório da irmã e depois foram para suas casas, para seus lotes. A preocupação que se tem é que os jagunços estão soltos. Na hora do velório, um posseiro da gleba Manduacari me procurou no altar e falou: “padre, agora acabam de matar mais um trabalhador rural, aqui na gleba”. Esse clima de terror é uma coisa macabra mesmo. No ano passado melhorou um pouco, menos companheiros tombaram. Talvez algumas pessoas não tiveram a coragem de denunciar essas mortes. Muitos são mortos e ficam no anonimato. No início desse ano, no meio de fevereiro, o número já é muito assustador. Só aqui em Anapu, desde sábado para cá morreram três companheiros e ainda teve outras mortes no Pará, como o companheiro de Parauapebas. É uma coisa que é até difícil de falar.
CM – Alguns dias antes do assassinato de Irmã Dorothy, foi iniciada no Pará a implementação do Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, com o objetivo de criar uma coordenação estadual que vai fazer um diagnóstico da situação no estado, articular as instituições governamentais para tomada de providências, capacitar os defensores para a autodefesa e treinar policiais. Você acredita que um projeto como esse pode funcionar?
PA – Se for uma questão séria, se levarem mesmo a sério, pode funcionar. Criam muita lei que fica no papel, tanta burocracia que ela não sai. E isso também é frustrante pra nós. Agora, tem que ter um tipo de segurança não simplesmente para uma, duas ou três pessoas que estão na frente, mas para que o povo possa se sentir seguro.
CM – O que fazer para acabar com as ameaças de morte, assassinatos e outras formas de repressão dos trabalhadores rurais e ativistas?
PA – Ampliar a polícia e torná-la eficiente, combater ferrenhamente esse tipo de pessoas. A pessoa que comete o dano às vezes é pega, mas quem manda não é pego porque tem dinheiro. Sai daqui, muda de Estado ou de país e fica assim. O governo não enfrenta, não faz caça mesmo dessas pessoas, para colocar na cadeia e fazer pagar pelos danos causados, danos ambientais, morais e ao direito à vida. Tem uma série de regalias porque tem curso superior, tem isso e tem aquilo, e fica às vezes respondendo em liberdade.
CM – Há participação de policiais civis e militares em muitos casos de violência contra os defensores e trabalhadores rurais. Como combater isso?
PA – Primeiramente teria que equipar as polícias, dar uma condição digna para eles trabalharem e viverem, e colocar pessoas preparadas. Às vezes, só com a 4a série completa, bota farda nas costas, arma na cintura e sai por aí. Chega numa cidade pequena como Anapu e parece que ele é o dono do mundo. Como aqui mesmo no comando da polícia militar tivemos que fazer um abaixo-assinado, encabeçado pela CPT e pelos movimentos sociais, e vigília com velas na frente da polícia para tirar o comandante. Porque, quando ele pegava as pessoas para conversar, era um grosso, batia, chutava mãe de família, chamava de bandido, de irresponsável. Até que nos ouviram e tiraram esse comandante daqui. Eles colocam pessoas que não têm formação para isso, para lutar contra esses problemas. A gente acha que a presença da polícia deve ser para manter a segurança, e não a insegurança.
CM – Além das ameaças de morte, que outras formas de violência contra os trabalhadores rurais são freqüentes?
PA – Os direitos do trabalhador são negados. Às vezes um fazendeiro faz um travessão e de repente coloca uma cancela e um cadeado, como nós já tivemos por aqui. O trabalhador parte para o confronto, tem que enfrentar o gato que está lá, alguns colocam os trabalhadores para trabalhar na fazenda, não pagam direito. Isso ameaça toda a questão dos direitos humanos, e esse tipo de ameaça faz com que o trabalhador não se sinta à vontade, não se sinta seguro na sua própria terra. A violência é freqüente, o pessoal chega demarcando, mesmo dentro da área que o trabalhador está trabalhando às vezes alguns atrevidos dentro da própria roça do trabalhador e começam a tirar madeira ilegal. A primeira coisa que os trabalhadores fazem é procurar a gente, a CPT, eu e a irmã, o sindicato dos trabalhadores rurais. A voz que eles têm aqui somos nós, que acabamos entrando em confronto e os fazendeiros não gostam disso. Eles tentam negociar com os trabalhadores, e depois dizem: “agora vai procurar aquele padre porque eu sei o que eu tenho para ele e para vocês”. Esse é um tipo de ameaça explícita. Agora mesmo, numa fazenda aqui perto, a polícia encontrou seis crianças que estavam lá sozinhas porque os pais tinham desaparecido. E os pais faziam parte da associação da fazenda. Sabe lá o que aconteceu com esses pais. As crianças estão aí, o mais velho tem sete anos. É uma barbaridade escancarada, uma violência contra os direitos das pessoas, uma coisa que deixa a gente muito triste.
CM – O caso da missionária Dorothy Stang tem recebido grande destaque da mídia. Por que as dezenas de casos a cada ano não têm a mesma reação da opinião pública?
PA – Desde quando chegou no Brasil, a irmã é uma pessoa que doou a sua própria vida a essa luta, ela é tida como uma mãe dos pobres mesmo. Ela tinha uma formação, uma capacidade de enfrentar todos os poderes, que ela ia mesmo e não media esforços para isso. A pessoa que tivesse contato com ela ficava marcada para o resto da vida pelo jeito simples, humilde, meigo. Uma pessoa que não matava sequer uma mosca. Na hora mesmo que ela foi assassinada, pegou a bíblia e dis
se que a única arma que ela tinha e que a gente usa é essa. Uma pessoa de 74 anos, aquela figura frágil, mas com o espírito muito forte, que adentrava essas matas. É uma coisa que choca mesmo a opinião pública. No momento do velório, dava para ver o sufoco da pessoas, o choro, dizendo “e agora?”. Alguém disse que nesses tempos de emancipação do município ninguém fez mais do que ela. O pouco que ela tinha ela colocava em comum. E hoje é difícil encontrar alguém com essas qualidades.
CM – Depois que um crime como esse ocorre e recebe grande cobertura dos meios de comunicação, o governo federal se pronuncia e interfere na questão, a polícia federal age rapidamente. O que ocorre depois que o interesse pela notícia passa?
PA – Eu falei para os ministros que vieram aqui que eu tenho muita dificuldade de acreditar na justiça. Uma semana antes do caso da irmã, tinham queimado a casa de um trabalhador pai de dez filhos, e a gente registrou a queixa na polícia civil. Eles disseram que iriam lá pegar, queriam usar o carro da paróquia, só que ele não estava em condições. Então os movimentos populares alugaram um carro para eles irem lá, mas os policiais disseram que não dava para ir porque o tempo não estava bom. Quando foi no outro dia, o próprio fazendeiro que mandou queimar a casa do pessoal e colocou os pais de família na rua estava de mãos dadas com a polícia civil daqui. Se você é trabalhador e vem lutar pelos seus direitos, como você faz? O próprio governo do Estado está tentando tirar a responsabilidade dele. Isso dá uma indignação na gente. Eu espero que com a chegada da polícia federal as coisas melhorem.
CM – Por que o Pará é o Estado com o maior índice de assassinatos ligados à disputa de terras, além de ser campeão de desmatamento ilegal, exploração de madeira, grilagem de terra e trabalho escravo?
PA – É resultado de uma questão que já é muito antiga. Aqui no Pará as pessoas chegavam e marcavam as terras, diziam simplesmente: “aqui é meu e pronto”. E depois vendiam para pessoas do sul do país, que nunca estiveram aqui. Depois elas aparecem com documentos de cartórios fraudulentos, dizendo que são donas de uma imensa área de terra onde tem trabalhadores e trabalhadoras. Só agora o Estado está fazendo o reordenamento fundiário. Antes não tinha nada disso. Isso tudo que está acontecendo é justamente resultado da ausência do Estado na região.
CM – Como os governos federal e estadual podem resolver essa questão? O que precisa ser feito com mais urgência?
PA – O reordenamento fundiário é importante. Se o fazendeiro tiver documento que comprove a posse da terra – se não for de algum cartório fraudulento –, ele tem que mostrar para o governo, que então deve pagar indenização e tirá-lo de lá. É isso o que tem que se fazer. Não dá para os fazendeiros e madeireiros ficarem dentro da área do PDS, tem que colocar só o trabalhador lá. E deixar o trabalhador em paz para que o PDS possa ser implantado para valer.
CM – Como você avalia a proposta do governo federal de aumentar a implementação de postos avançados na região, com a presença do exército, Ibama e Incra?
PA – Seria bom. Mas, na criação da associação-mãe da reserva extrativista Verde para Sempre, em Porto de Moz, a ministra e o presidente do Incra falaram disso, e eu, alegre, falei para um trabalhador do Incra “que bom que agora vai avançar, vai equipar, com transporte e tudo”. E ele disse: “para nossa unidade vão ser 18 carros e nós precisamos de uns 80”. Então eu caí das pernas, pelo amor de Deus. O governo anuncia uma coisa grande, que vai ampliar tudo, mas não acontece nada. Por isso a gente fica meio descrente nessas coisas. Melhorou um pouco desde que o governo Lula assumiu. Antes, para falar com um ministro, para chegar até uma pessoa dessa, era muito difícil, a gente ia para Brasília e ficava dormindo que nem cachorro e porco debaixo da Esplanada dos Ministérios. Só depois de um bom tempo, de um bom cansaço, você era atendido e ainda por um secretário de um secretário do ministro. Agora está acontecendo uma coisa diferente, eles estão vindo aqui falar com a gente. Um gesto bonito até mesmo com a morte da irmã, a Marina Silva veio e estava lá, dormiu em Anapu, acompanhou tudo. Você vê que algo está mudando, não é fácil essas coisas. Mas está faltando mais força.
CM – Como combater o desmatamento e garantir um desenvolvimento sustentável na região? O PDS é uma saída?
PA – Justamente. E é por isso que estão ocorrendo essas mortes, essas coisas. Porque dentro do PDS a pessoa vai ter o título coletivo da área, vai trabalhar, produzir, mas também reflorestar e conservar as essências naturais que se tem. Justamente por isso que companheiros como a irmã tombaram, porque o fazendeiro, o madeireiro não vai mais poder chegar lá e dizer “essa área aqui é minha”, ou dizer “te dou 20 ou 30 reais nessa árvore”, que depois ele vende por quase mil reais. O trabalhador junto com a associação é que vai dar o preço do seu produto.
Da Agência Carta Maior