No dia da abolição, sai maior condenação por trabalho escravo no país

Fazendeiros alagoanos são obrigados pela Justiça a pagar R$ 3 milhões por indenizações morais coletivas. Até agora, o campeão de valor em sentenças condenatórias havia sido o senador João Ribeiro, obrigado a pagar R$ 760 mil por manter escravos em sua fazenda
Por Leonardo Sakamoto
 13/05/2005

A empresa Lima Araújo Agropecuária Ltda foi condenada nesta sexta-feira, 13 de maio, a pagar R$ 3 milhões de reais por reduzir cerca de 180 pessoas (entre os quais nove adolescentes e uma criança) à condição de escravas em suas fazendas Estrela das Alagoas e Estrela de Maceió, em Piçarras, Sul do Pará. Por três vezes, essas propriedades rurais foram palcos de libertação de trabalhadores em ações de fiscalização: em fevereiro de 1998, outubro de 2001 e novembro de 2002. A decisão foi tomada pelo juiz titular da 2a Vara do Trabalho de Marabá, que acolheu uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho. A essa decisão cabe recurso. Esgotados os recursos, o montante será destinado ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).

Este é o maior valor já aplicado em uma sentença por trabalho escravo – legalmente extinto no país há exatos 117 anos. Até agora, o campeão de valor em sentenças condenatórias havia sido o senador João Ribeiro (PL-TO), obrigado a pagar R$ 760 mil por danos morais por aliciar e manter 38 escravos em sua fazenda Ouro Verde em 22 de fevereiro deste ano. A primeira indenização milionária (R$1.350.440,00) foi obtida através de um acordo entre o Ministério Público do Trabalho, a Justiça do Trabalho e a empresa Jorge Mutran por escravidão na fazenda Cabaceiras, em Marabá (PA), em agosto de 2004.

A sentença, proferida por Jorge Ramos Vieira – o mesmo juiz que celebrou o acordo entre a Jorge Mutran e o MPT – prevê, além do pagamento da indenização por danos morais coletivos, o cumprimento de obrigações: ficam também os réus avisados para não descontarem mais do que 25% de gastos com alimentação do salário dos empregados de forma a não configurar endividamento do trabalhador; não manter mais empregados sem carteira assinada; não utilizar mais os “gatos” [contratadores de mão-de-obra a serviço do fazendeiro], entre outras adequações das fazendas às normas trabalhistas.

O processo, que possui quase 100 páginas, determina a quebra dos sigilos bancário e fiscal, decreta a indisponibilidade de bens e defere o bloqueio imediato e preventivo do valor de R$ 3 milhões que for encontrado em contas bancárias em nomes dos réus – as alagoanas Lima Araújo Agropecuária, a PH Engenharia, a Construtora Lima Araújo e os proprietários dessas três empresas – Fernando Lyra de Carvalho e Jefferson de Lima Araújo Filho.

Em caso de descumprimento da ação, será cobrada uma multa diária de R$ 10 mil por empregado em situação irregular.

Processo recorde, condenação idem
O montante de R$ 3 milhões pode assustar, mas é bem menor se for considerado o valor pedido pelo Ministério Público do Trabalho do Pará em sua ação: R$ 85,056 milhões. O valor corresponderia a 40% do patrimônio estimado pelo MPT das duas propriedades, que têm como principal atividade a criação de gado para corte. Em valores, este foi o maior processo já movido contra uma empresa por trabalho escravo no Brasil.

O próprio gerente da Estrela das Alagoas, convocado para depor, confessou que a fazenda utilizava “gatos”, contratadores de mão-de-obra que estão relacionados com o trabalho escravo. A própria testemunha de defesa, um funcionário da fazenda, afirmou que havia duas categorias de trabalhadores: os fixos e os temporários e que a situação destes últimos era bem pior, com barracões de lona em péssimas condições de higiene.

A própria Lima Araújo já havia sido réu em outras três ações por trabalho escravo, tendo sido condenada a pagar R$ 30 mil por danos morais coletivos e flagrada cometendo o mesmo crime logo depois. De acordo com Lóris Rocha Pereira Júnior, procurador do Trabalho responsável pela ação milionária, as constantes reincidências da Lima Araújo na utilização de mão-de-obra escrava, a situação degradante em que sempre eram encontrados os seus funcionários e o descaso com a Justiça e o trabalho dos fiscais justificaram o tamanho do pedido.

“Eles não respeitam a lei ou as autoridades constituídas. Tanto que, enquanto tramitava uma ação na Justiça do Trabalho [por causa de trabalho escravo encontrado em uma das fazendas], uma outra fiscalização do grupo móvel do MTE encontrou novamente escravos na Lima Araújo”, afirma Rocha. Além disso, a empresa já havia assinado um termo de compromisso na Justiça do Trabalho, garantindo que não haveria mais descumprimento da legislação trabalhista.

Vida de gado
As denúncias de maus tratos por parte dos trabalhadores eram freqüentes nas fiscalizações. A auditora do trabalho Marinalva Cardoso Dantas, que foi coordenadora do grupo móvel que verificou a situação da Estrela das Alagoas em outubro de 2001, conta, em seu relatório de fiscalização, a situação a que estavam submetidos os trabalhadores na fazenda:

“Havia barracos (…) localizados após uma espécie de fossa aberta, onde foi represada água. Nesse local, havia muitas fezes. Os trabalhadores passavam por esse charco equilibrando-se sobre dois caules de árvore. A fedentina era insuportável. Os utensílios eram lavados em água represada e imunda, no mesmo local onde se tomava banho e se lavava roupas. Determinamos que os trabalhadores fossem devidamente alimentados e alojados próximos à sede, em local higiênico, até o dia seguinte, quando se daria o transporte para o Tocantins, Estado no qual foram aliciados. Qual não foi nossa surpresa ao chegarmos no dia seguinte e constatarmos que os trabalhadores foram alojados no curral para gado próximo ao escritório da sede. O cenário era deplorável. Havia redes armadas nas cercas do curral, cujo chão estava repleto de fezes do gado. Os trabalhadores já haviam improvisado uma pequena cozinha num dos compartimentos do curral, onde tinha sido feito o jantar do dia anterior e o desjejum.” Segundo Marinalva, o gerente considerava todas as condições de trabalho normais para o Pará.

Nessa ação, 49 pessoas foram libertadas. Os trabalhadores tinham que pagar por tudo o que usavam, incluindo instrumentos de trabalho (motosserra, óleo, lima, botas, lanternas). Isso resultava em uma crescente dívida que comprometia todo o seu salário. “Havia dois empreiteiros, os conhecidos “gatos”, os quais usavam armas de fogo e facões para intimidar os trabalhadores”, relata Marinalva. Ambos foram presos na ação.

Em outra fiscalização, em fevereiro de 1998, na fazenda Estrela de Maceió, consta do relatório que “os trabalhadores aliciados foram transportados a partir de Redenção [município no Sul do Pará] até a fazenda (mais ou menos, 240 quilômetros) em caminhão com carroceria tipo gai
ola, destinado ao transporte de gado bovino”.

117 anos de abolição, 10 de marasmo
As duas fazendas somam juntas 90 mil hectares de área e possuem cerca de 40 mil cabeça de gado, segundo informações obtidas pelo MPT. Com base nos valores de mercado da terra e do boi na região, a Estrela das Alagoas e a Estrela de Maceió valeriam R$ 212,64 milhões. Vale ressaltar: as fazendas são fornecedoras de grandes frigoríficos da região, que distribuem carne para todo o país e o exterior. Tendo esse valor como referência, o procurador entrou com a ação de R$ 85 milhões.

Em sua contestação na Justiça, a Lima Araújo criticou o Ministério Público do Trabalho devido à desproporção entre a ação anterior de R$ 30 mil e a última de R$ 85 milhões. Os proprietários entraram com pedido para que a ação fosse diminuída para R$ 10 mil. Na sentença, o juiz Jorge Vieira nega o pedido. “O argumento mostra bem a índole dos mesmos. Ora, se nem mesmo com condenação três vezes superior estes foram demovidos das práticas ilícitas de que são contumazes infratores, a redução do pedido não encontra amparo sequer no bom senso.” E completa: “Desse modo, o pedido que consta na defesa de redução do valor da causa para R$10.000,00 é risível”.

A Justiça do Trabalho fez uma outra avaliação do patrimônio dos réus, chegando a R$ 10 milhões. A partir daí estabeleceu a condenação em R$ 3 milhões – bem menor que a ação do Ministério Público, mas 100 vez maior que a última condenação. Caso a Câmara dos Deputados já tivesse aprovado o projeto de emenda constitucional que prevê o confisco das terras em que trabalho escravo for encontrado, as constantes reincidências da Lima Araújo poderiam levar aos seus proprietários a um prejuízo muito maior. A PEC, aprovada em dois anos no Senado, arrasta-se na Câmara dos Deputados e está comemorando o seu 10o aniversário de trâmite neste ano de 2005.

A Lima Araújo Agropecuária Ltda. e suas duas fazendas estão na primeira “lista suja” divulgada pelo governo federal no final de 2003 – a atualização tem sido semestral. Na primeira lista, havia apenas cinco nomes que se repetem duas vezes: a Lima Araújo e o das famílias Bannach, Mutran e Quagliato – que possuem fazendas de gado de corte e inseminação artificial na região Sul do Pará e, historicamente, têm dificultado a erradicação do trabalho escravo na região de expansão agrícola amazônica.

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