São Paulo e Brasília – Uma ligação telefônica realizada pelo presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti (PP-PE), na tarde de quarta-feira (1º) trouxe apreensão a empresas afiliadas ao Sindicato Nacional das Distribuidoras de Combustíveis, um dos signatários do Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, assinado no último dia 19 em Brasília.
Durante a ligação, a terceira pessoa na linha sucessória do país questionou por que as afiliadas do sindicato, entre quais empresas do porte da BR Distribuidora (braço de varejo da Petrobrás) e Ipiranga, cancelaram contratos de compra de álcool da Destilaria Gameleira. A empresa, de propriedade de Eduardo Queiroz Monteiro – irmão do presidente da Confederação Nacional da Indústria e deputado pernambucano Armando Queiroz Monteiro (PTB) -, foi autuada três vezes por manter trabalhadores em condições análogas à escravidão, mas conseguiu temporariamente sair da "lista suja" divulgada pelo governo federal por causa de uma liminar na Justiça.
A "lista suja", atualizada semestralmente pelo Ministério do Trabalho e Emprego, é uma relação de pessoas físicas e jurídicas flagradas com escravos pelo governo federal e que tiveram seus processos administrativos no MTE transitados em julgado. Procurado pela reportagem na tarde desta quinta-feira (2), Severino Cavalcanti se manifestou através de sua assessoria. Segundo seus assessores, a ligação telefônica feita ao sindicato teve caráter de “consulta” e tinha como objetivo descobrir por que o álcool da Gameleira não estava mais sendo comprado pelas empresas associadas à entidade.
Durante a conversa, foi explicado ao próprio deputado que ainda há restrições a essas empresas. Segundo Cavalcanti, o telefonema atendeu a pedido de deputados federais que queriam saber qual era o problema que impedia a comercialização. A assessoria do presidente da Câmara reforçou que ele é contra o trabalho escravo, tendo se manifestado várias vezes contra esse crime.
O deputado não admitiu, mas fontes contatadas pela reportagem revelaram que Cavalcanti também telefonou no final da tarde de quarta para a distribuidora de combustível Ipiranga. Quis saber as razões que levaram a empresa a não adquirir mais álcool da Gameleira, apesar de a empresa ter conseguido uma liminar na Justiça do Trabalho suspendendo-a da "lista suja" do trabalho escravo. O telefonema do presidente do Congresso aconteceu apenas meia hora após a Ipiranga confirmar aos advogados da destilaria a interdição de compra. Ele também teria ligado para a Petrobrás.
A suspensão nos acordos comerciais entre ambas as empresas aconteceu após a Ipiranga ter conhecimento do estudo da organização não-governamental Repórter Brasil, que identificou a cadeia produtiva do trabalho escravo no país. Essa pesquisa, solicitada pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, serviu de embasamento para que fosse firmado o Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, iniciativa do Instituto Ethos de Responsabilidade Social e da Organização Internacional do Trabalho. O Pacto, assinado no dia 19 de maio em Brasília, e já conta com cerca de 80 signatários, incluindo grandes empresas como Coteminas, Carrefour, Pão de Açúcar, Wal-Mart/Bompreço, Petrobrás, Shell e Ipiranga.
A fazenda Gameleira, localizada no município de Confresa, Estado do Mato Grosso, foi flagrada três vezes utilizando escravos. Apenas em uma das ações dos grupos móveis de fiscalização – responsáveis pelo resgate desses trabalhadores e formados por auditores do Ministério do Trabalho e Emprego, procuradores do Trabalho e policiais federais – foram libertados 318 pessoas. A propriedade produz 30 milhões de litros de álcool por ano e, de acordo com a pesquisa, possuía relações comerciais com a Petrobrás, Ipiranga, Shell, Texaco, entre outras.
No dia 11 de maio, os advogados da família Queiroz Monteiro conseguiram uma liminar na Justiça do Trabalho suspendendo o nome de sua fazenda da "lista suja", base da cadeia produtiva.
Contudo, em uma ação exemplar, a Ipiranga manteve a interdição de compra. Fontes da empresa revelaram que decisão da companhia segue determinações do Pacto e é coerente com uma conduta de ética e de responsabilidade social. A empresa só retornará a comprar álcool combustível da Gameleira quando o governo federal emitir uma certidão negativa sobre trabalho escravo na propriedade.
Mas de acordo com Ruth Vilela, chefe da Secretaria Nacional de Inspeção do Trabalho, que coordena a ação dos grupos móveis, não será fornecida nenhuma certidão atestando que a empresa saiu da lista. "A decisão do juiz não inclui apagar todas as informações que estão no ministério. Uma certidão deve, portanto, ser um reflexo de nossos arquivos. A única certidão possível, portanto, é uma que conste o histórico da empresa, quantas vezes foi fiscalizada, o que foi encontrado, as multas aplicadas."
Coerência
Severino Cavalcanti (PP-PE), em discurso proferido no dia 02 de março de 2004, atacou o combate ao trabalho escravo que vem sendo realizado no Brasil.
“Ora, Senhoras e Senhores Deputados. Vamos parar de hipocrisia, de fingir que somos a França, os Estados Unidos ou a Alemanha e que podemos copiar as suas avançadas legislações trabalhistas”, disse. “Não vamos resolver os problemas do campo e do desemprego ameaçando produtores e fazendeiros com o confisco de terras no caso das muitas e controversas versões de ‘trabalho escravo’”, completou o deputado.
Defendeu os proprietários rurais e uma suposta cultura do campo, que não exigiria a garantia dos direitos trabalhistas devido à realidade da região, diferente das cidades. “Em Minas, como na Amazônia, no Nordeste, outras regiões ou Estados brasileiros, milhares de bóias-frias são deslocados para as fazendas conforme o trabalho que surge. Fica difícil para o produtor ou fazendeiro, muitas vezes com estrutura precária, registrar esse trabalhador pelo espaço de um ou dois dias, ou curtos períodos de tempo.”
No dia 19 de maio, enquanto o Pacto era assinado no auditório da Procuradoria Geral da República, Cavalcanti recebeu o ministro Nilmário Miranda, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Sandra Lia Simon, procuradora-geral do Ministério Público do Trabalho, Letícia Sabatella, atriz e membro da organização não-governamental Humanos Direitos. Eles pediam ao presidente da Câmara dos Deputados que fosse colocada para votação em segundo turno a proposta de emenda constitucional que prevê o confisco das terras em que trabalho escravo for encontrado. Aprovada em dois turnos no Senado e em primeiro turno na Câmara, a PEC faz dez anos de trâmite em 2005. Cavalcanti garantiu que, assim que desobstruída a pauta de votações, ela seria levada à
plenário.
Em parceria com a Agência Carta Maior
Colaboraram Marcel Gomes e Maurício Monteiro Filho, de São Paulo, e Maurício Thuswohl, de Brasília.