Quilombolas formam coordenação em SP e exigem titulação de suas terras

Dificuldade dos quilombolas para obterem posse de suas terras foi relatada à ministra da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro (à direita), em lançamento da Coordenação das Comunidades Quilombolas de SP. Ela justifica lentidão alegando que mexer com terra é “mexer no centro do poder”
Por Fernanda Sucupira
 06/12/2005

Os principais problemas das comunidades quilombolas do Brasil se relacionam à posse de suas terras ancestrais. No Estado de São Paulo, essa situação não é diferente. Grande parte das mais de oitenta comunidades paulistas enfrentam conflitos com grileiros e fazendeiros, sofrem com a construção de grandes empreendimentos em suas terras, convivem com ameaças constantes de despejo do território que, em muitos casos, já ocupam há mais de um século. Além disso, também vivem em condições socioeconômicas precárias e têm grandes dificuldades de efetivar seus direitos básicos de saúde, educação e moradia, entre outros.

Para mobilizar as comunidades no Estado, organizar suas reivindicações e fazer a interlocução entre essas populações tradicionais e o poder público, foi criada a Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas de São Paulo, durante o encontro “Quilombos do Brasil – Reconhecimento, Regularização e Titulação”, de 2 a 4 de dezembro, na comunidade de Caçandoca, em Ubatuba, no litoral norte de São Paulo.

“O desafio e o papel da coordenação é saber ouvir essas comunidades e conseguir passar para o governo um plano de ação de forma organizada. Se as comunidades não se organizarem, não se fizerem representar, por maior que seja a vontade do governo de reconhecimento das terras, essa luta poder ser infinita. Tem uma parte que cabe a nós”, afirma Carlos Alberto Sampaio, da comunidade de Capivari, próxima a Campinas. Segundo ele, os quilombolas precisam ganhar respeito diante dos órgãos públicos, levantar informações sobre suas comunidades para que o governo possa trabalhar políticas públicas, e começar a construir um caminho de desenvolvimento.

De acordo com a Carta de Caçandoca, o documento final do encontro – que teve a participação de cerca de 350 pessoas, entre elas representantes de 29 comunidades quilombolas – “a coordenação é o nosso instrumento para que o povo quilombola deixe de ser tutelado pelo Estado e passe a exercer o protagonismo de sua própria história”. Para os participantes, o encontro foi importante não apenas para proporcionar a troca de experiências entre quilombolas de diferentes regiões do Estado e do Brasil, como também para que fosse possível identificar que as comunidades se encontram em estágios de organização e mobilização bastante diferentes. Enquanto algumas já lutam há décadas pela efetivação de seus direitos e já possuíam representantes na Comissão Provisória Estadual das Associações de Comunidades Quilombolas de São Paulo, que antecedeu a coordenação, outras ainda enfrentam grandes dificuldades para criar sua associação local.

Embora o direito à terra das comunidades quilombolas esteja previsto na Constituição Brasileira de 1988, ele ainda está longe de ser uma realidade para esses povos. Por isso, a reivindicação primordial da coordenação estadual – que se divide em três grandes regiões: Sudoeste, Vale do Paraíba e Litoral Norte – é a aceleração do processo de reconhecimento, regularização e titulação das áreas quilombolas. A posse desses territórios étnicos é questão de sobrevivência para essas populações tradicionais, que enfrentam diversos conflitos por suas terras. Enquanto elas não têm o título nas mãos, ficam à mercê da boa vontade do poder público, dos grileiros e de pessoas que vivem da especulação imobiliária, podendo ser removidas dessas áreas com certa facilidade.

No Vale do Ribeira, por exemplo, o principal problema é a proposta de construção de uma barragem no rio Ribeira de Iguape, que inundaria diversas comunidades da região. Há cerca de vinte anos, quilombolas, indígenas e ribeirinhos lutam contra o projeto encabeçado por um consórcio de empresas que reúne Camargo Correa, Votorantim e Bradesco. Apesar de já terem conseguido diversas vitórias parciais, a ameaça continua. “Os documentos estão no Conselho Nacional do Meio Ambiente, depois vão para o Ibama e aí começam as audiências públicas. A qualquer momento eles podem assinar o licenciamento do empreendimento. Até agora nós seguramos, mas ficou difícil. Não sei até quando nós vamos segurar”, afirma Benedito Alves da Silva, o Ditão, quilombola da comunidade de Ivaporanduva, do Vale do Ribeira, e coordenador da região.

Já na Sudoeste, a comunidade de Piraporinha, localizada na divisa entre os municípios de Salto de Pirapora e Sorocaba, também está prestes a perder parte significativa de seu território. Um projeto de criação de uma universidade federal na região e de duplicação da rodovia Raposo Tavares inclui uma área dos quilombolas utilizada para desenvolver agricultura sustentável.

Saúde, educação e geração de renda
Além da questão da terra, outros problemas também deverão ser abordados pela recém criada coordenação estadual. Eles pretendem dedicar especial atenção ao saneamento básico, área em que as comunidades enfrentam sérios problemas. É freqüente a existência de esgotos a céu aberto e de crianças brincando em água suja. Cada vez aumenta mais a proliferação de diversas doenças que poderiam ser evitadas facilmente. Em Capivari, por exemplo, não existe água na comunidade, que precisa ser abastecida por um caminhão-pipa, levado pela prefeitura três vezes por semana.

Além disso, os municípios que têm quilombos em seu território recebem recursos a mais do Ministério da Saúde, mas muitas vezes não o repassam para a comunidade. Os habitantes de Caçandoca denunciam que o Programa de Saúde da Família muitas vezes demora até dois meses para aparecer na área, quando deveria fazer visitas pelo menos a cada quinze dias.

Outra prioridade da coordenação é a educação, já que a maioria dos quilombos não possui escolas dentro do território étnico e as pessoas precisam percorrer grandes distâncias para estudar. Somando-se a isso a questão do acesso a essas áreas, o problema se torna ainda mais dramático. É uma verdadeira aventura chegar em certas comunidades porque as estradas raramente são asfaltadas e, em dias de chuva, a terra molhada dificulta a circulação.

As crianças dependem das prefeituras para disponibilizar um transporte escolar até a escola mais próxima. “Os dois prédios da nossa escola continuam fechados, não foram reativados. As crianças viajam por seis horas ida e volta para estudar quatro horas, vão a pé ou de ônibus, e um sacrifício. Quando chove, os ônibus não vêm até aqui e a criança tem que marchar isso tudo”, conta Antonio dos Santos, presidente da Associação dos Remanescentes de Quilombos da Comunidade de Caçandoca, que também coordena a região do litoral norte. Por conta dessa situação, muitas crianças acabam faltando às aulas com freqüência. Os participantes do encontro sentiram na pele as dificuldades de acesso à Caçandoca. No segundo dia do evento, as fortes chuvas impediram que as discussões se realizassem na comunidade, o que frustrou os quilombolas dali.

“A partir do momento que nós conseguirmos o título de domínio nada impede que nós tenhamos planos de ações combinadas para começar a trabalhar o desenvolvimento sustentável, que é um desafio também”, afirma o quilombola Sampaio, que também é coordenador da região Sudoeste. Segundo ele, já estão sendo feitas parcerias de implementação de políticas públicas nesse sentido com as próprias prefeituras, que estão começando a tomar conhecimento do que são comunidades de quilombos, já que muitas vezes elas são confundidas com favelas. Esse era o caso da comunidade Brotas, que fica dentro do município de Itatiba, e era originalmente um quilombo urbano. “O prefeito não sabia que ali havia um conhecimento histórico, que aquela comunidade tinha uma relação com aquela terra há mais de dois séculos. É um problema sério para comunidades dentro de centros urbanos”, constata.

Há também as questões mais específicas de cada região. No litoral norte, as comunidades sofrem grandes restrições por estarem dentro do Parque Estadual da Serra do Mar e do o Parque Nacional da Serra da Bocaina. Entre elas está a proibição de plantar nessas áreas e de construir casas de pau-a-pique. Eles reclamam que sofrem punições severas se desobedecem as leis ambientais, enquanto os ricos cortam tudo e poluem os rios, sem nenhuma conseqüência.

“Eles cumprem a lei de uma forma rígida, não perguntam, não fazem um reparo nem uma avaliação. Eles precisam ser conscientizados, pois existem muitas formas de conversar para depois aplicar leis. Os quilombolas que moram nessas regiões não têm informação nenhuma, não têm nem TV. No momento, eles têm que conversar com as pessoas, fazer palestras e orientar, não podem aplicar a multa da forma rígida que estão aplicando. Esse problema nós estamos resolvendo com a Frente Parlamentar, já entramos com uma emenda afastando o parque do quilombo”, afirma o presidente da associação quilombola de Caçandoca. Os quilombolas argumentam que tais áreas foram preservadas justamente por conta da ocupação sustentável desses grupos tradicionais nesses territórios.

Segundo a ministra Matilde Ribeiro, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), presente ao encontro, mesmo antes de o presidente Lula tomar posse, ainda no governo de transição, eles foram procurados por representantes do movimento quilombola que mostraram o caminho a ser seguido. Eles reivindicavam a revisão do texto do Decreto 3.912, de 2001, que regulamentava a titulação das terras quilombolas; ressaltavam a necessidade de avançar na regularização fundiária desses territórios; e de implementar políticas públicas específicas para os quilombos.

O texto já foi revisto, resultando no Decreto 4.887, considerado bastante superior ao anterior, mas ainda alvo de diversas críticas. No entanto, só duas comunidades foram tituladas pelo governo Lula até agora. A ministra justifica que as questões fundiárias não se resolvem da noite para o dia porque mexer com as terras é “mexer no centro do poder”. De acordo com ela, cerca de 270 processos coordenados pelo Incra estão em andamento, em estágios diferentes do processo, atingindo cerca de 400 comunidades, das mais de 2.200 identificadas até agora no país.

“Quando o presidente Lula recebeu recentemente a coordenação das duas Marchas Zumbi+10, ele novamente se comprometeu a olhar com ainda mais carinho para as políticas para remanescentes de quilombos. Ele determinou que nós ministros firmássemos uma força tarefa junto ao Incra para acelerar a regularização fundiária”, contou a ministra. Matilde também ressaltou as ações do governo federal no Programa Brasil Quilombola, em diversas áreas, em projetos de saúde, educação, geração de renda, moradia e infra-estrutura.

Da Agência Carta Maior

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