O ex-coronel da Polícia Militar de São Paulo, Ubiratan Guimarães, foi condenado a 632 anos de prisão, em 2001, por júri popular, por responsabilidade na morte de 102 dos 111 homens mortos na rebelião da Casa de Detenção do Carandiru, em outubro de 1992. Em 15 de fevereiro deste ano, em uma decisão polêmica, ele teve seu julgamento cancelado e foi absolvido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). Mas a sentença não é a primeira em que o órgão máximo do judiciário paulista toma decisões que se tornam alvo de duras críticas de juristas e de ativistas de defesa dos direitos humanos.
Por exemplo, em 2004, a tentativa de furto de um xampu e um condicionador, no valor total de R$ 24,00, foram suficientes para manter Maria Aparecida de Matos, empregada doméstica de 24 anos, por um ano e sete dias na prisão. Depois de ter o seu pedido de habeas corpus negados no Tribunal de Justiça, os advogados da Procuradoria de Assistência Judiciária de São Paulo, precisaram levar o caso ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) para libertá-la. Além da soltura, a procuradoria pedia também a extinção da ação, baseando-se no “princípio da insignificância”. Ele é aplicado quando o patrimônio subtraído da vítima tem valor tão desprezível que o fato não merece maiores desdobramentos por parte do poder público.
Doze meses de prisão custaram caro a Maria Aparecida. Ela perdeu a visão de um olho após sofrer violência na cadeia. Para a advogada Sonia Regina Arrojo e Drigo, vice-presidente do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), que também tentou entrar com um habeas corpus para libertar Maria Aparecida, o TJ-SP é omisso em casos como esses. “Existe uma imensa falta de interesse”.
A advogada do ITCC aponta outro caso em que o princípio da insignificância não foi considerado e que um habeas corpus foi negado pelo TJ-SP. Rosimeire Rosa de Jesus foi flagrada em agosto de 2004 tentando furtar um chuveiro no valor de R$ 19,00. Ela já possuía uma condenação anterior de 2 anos e 4 meses em regime semi-aberto por tentativa de furto de roupas e iria iniciar o cumprimento dessa pena quando foi flagrada novamente. Desde então, Rosimeire continua detida e não recebe visitas. Segundo ela, não quer que seus filhos adolescentes a vejam dessa maneira. De acordo com Sonia Drigo, mesmo que ela fosse condenada, a pena já teria sido cumprida. “Às mulheres foi negado até mesmo o direito de recorrer em liberdade, diferentemente do que ocorreu com o Ubiratan”, aponta.
O advogado e presidente da Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos Hélio Bicudo destaca a distância da Justiça em relação ao povo. “O poder judiciário é muito fechado sobre si próprio. Qualquer manifestação que queira mostrar o descompasso desse poder em relação à população é ignorado pelos juízes”, argumenta. Ele cita o protesto de organizações da sociedade civil, em janeiro, em frente ao prédio do TJ-SP para lembrar a impunidade no caso da chacina dos moradores de rua, ocorrida em agosto de 2004. “A reação deles foi fechar as portas.”
Colocando na ponta do lápis, não vale a pena economicamente para o Estado condenar pessoas por crimes como os de Maria Aparecida ou Rosimeire. Um xerox custa R$ 0,80 por página – e os processos tem, no mínimo, 200 páginas, isso sem contar o salário de cada funcionário, juiz e procurador por hora. Somam-se a isso os gastos públicos com a detenta na Penitenciária. O valor já está muito acima dos R$ 24,00. Um prejuízo, aliás, que o comerciante não teve porque os produtos foram devolvidos no ato da prisão.
Doente terminal condenada
Com 79 anos e em estado terminal de câncer de ovário e de intestino, Iolanda Figueiral de Jesus foi condenada pelo TJ-SP no final de 2005 a quatro anos de prisão em regime fechado por tráfico de drogas. Iolanda, que é aposentada e ex-bóia fria, se declara inocente e defende que as drogas (cerca de 17 gramas de crack) foram lançadas para dentro da casa dela por um estranho, momentos antes da chegada da polícia.
Apesar de não ter antecedentes criminais e possuir residência fixa, Iolanda aguardou o julgamento na prisão, pois tráfico de entorpecentes é considerado no Brasil crime hediondo, o que proíbe a concessão de liberdade provisória aos acusados. O advogado da família, Rodolpho Pettená Filho, e a Pastoral Carcerária se mobilizaram para conseguir um habeas corpus para que ela pudesse ter um tratamento adequado em casa, mas o TJ-SP negou.
O caso ganhou repercussão junto à sociedade quando o jornal Folha de S. Paulo relatou o caso. A história de uma idosa, à beira da morte, presa preventivamente devido à sua suposta periculosidade , atingiu a imagem da Justiça paulista junto à sociedade.
Uma liminar permitindo a soltura da aposentada foi concedida após o julgamento e Iolanda saiu, em caráter provisório, da Penitenciária Feminina da Capital no dia 19 de dezembro. Dois meses depois, o pedido foi concedido definitivamente, sob o mérito de a acusada ser doente terminal e ter idade avançada.
Para a procuradora e professora na Faculdade de Direito da PUC, especialista em Direitos Humanos, Flávia Piovesan, “o que ocorre é que, em geral, juízes da segunda instância têm uma cultura formalista”. Ela considera que, em geral, a Justiça brasileira com relação aos direitos humanos é refratária e conservadora.
Extermínio na estrada
A Operação Castelinho foi a mais conhecida das ações do Grupo de Repressão e Análise dos Delitos de Intolerância (Gradi) da Polícia Militar, criado para investigar crimes de intolerância social, sexual e religiosa e que acabou descambando para o combate à organização Primeiro Comando da Capital (PCC). Em março de 2002, a PM interceptou, na região de Sorocaba, a 96 km da capital, um ônibus e dois carros e exterminou seus ocupantes, supostos integrantes do PCC que estariam indo para a capital realizar um assalto. Ao todo, 12 pessoas foram mortas.
A Procuradoria Geral de Justiça pediu a apuração do envolvimento do então secretário de segurança pública, Saulo de Castro Abreu, e dos juízes Maurício Lemos Porto Alves e Octávio Augusto Machado de Barros Filho nas ações ilegais do Gradi. Mas, em fevereiro de 2005, desembargadores do TJ-SP arquivaram o processo, por 24 votos a 1, alegando falta de provas contra os investigados, embora tenham declarado que as investigações continuariam, em sigilo. “Como eles são juízes deles próprios, qualquer representação será ignorada por culpa do corporativismo”, critica Hélio Bicudo.
Impunidade e falta de indenização
O comandante da operação no Carandiru, o ex-coronel Ubiratan Guimarães, foi condenado a 632 an
os de prisão em 2001. Contudo, depois de ser eleito deputado estadual em 2002, com o número 11.111 pelo PP (uma possível alusão aos 111 mortos), ele recebeu o direito de ser julgado pelo Órgão Especial do TJ-SP, que o considerou inocente.
Para anular a sentença, foram considerados os argumentos da defesa, de que o acusado agiu no “estrito cumprimento do dever”, e que os jurados não pretendiam condená-lo, quando o fizeram em 2001. Porém, o segundo argumento foi desmentido por membros do júri popular que julgou Ubiratan Guimarães – quatro deles, dos quais dois votaram a favor da condenação e dois contra. Recentemente, em entrevistas à mídia eles reafirmaram que a vontade da maioria do grupo era pela condenação. A procuradora Piovesan argumenta que o poder de decisão em casos de crime contra a vida é do júri popular e o Órgão Especial do TJ-SP o usurpou. “Poderia ter anulado a decisão e devolvido ao júri o poder de decidir e não violar essa legitimidade.”
Entidades ligadas aos direitos humanos classificaram a decisão como um perigoso pretexto aberto, tanto em relação aos julgamentos futuros, já que 119 policiais ainda passarão pelo júri, quanto no aspecto moral. “A decisão passa a justificar uma prática: policiais têm agora licença para matar, uma vez que estariam recebendo ordens. A impunidade os dá carta branca”, expõe Flávia Piovesan.
O único culpado até agora é o Estado de São Paulo, já que os presos mortos estavam sob a sua tutela. A indenização às famílias, entretanto, ainda não foi totalmente paga. Das 58 ações indenizatórias impetradas pelo Ministério Público, duas foram negadas pelo TJ-SP, sob a alegação de que o estado não era culpado pelas mortes. O Tribunal não aceitou o argumento de reciprocidade, uma vez que outros familiares, sob condições semelhantes, também haviam sido contemplados.
Mudanças
Especialistas e organizações não-governamentais esperam que a escolha recente de Celso Luiz Limongi para a presidência do TJ-SP possa significar decisões mais compatíveis com a defesa dos direitos humanos por parte da Justiça. Para Bicudo, o fato do juiz já ter presidido a Associação dos Juízes pela Democracia (AJD) é um indício de que pode haver mudança. Entre os princípios dessa associação está o “resgate da cidadania do juiz, por meio de uma participação transformadora na sociedade, num sentido promocional dos direitos fundamentais”.
Piovesan concorda com os preceitos da instituição, ressaltando que, quando se trata de direitos humanos, o judiciário deve fazer uma coalizão de valores e levar em conta uma série de princípios, como o da dignidade humana. “Formalismo cego acaba gerando respostas inadequadas. É preciso ter a dimensão ética em cada caso, medir as conseqüências de uma decisão.”