Velho Chico

Artigo – Caneco de ouro

O projeto de transposição do rio São Francisco, que apresenta uma proporção custo/benefício descabida, irá beneficiar apenas o grande capital - responsável pelo sucesso eleitoral da maioria dos políticos no Parlamento
Por João Suassuna*
 12/05/2006
 

 Pescador lança tarrafa na foz do rio São Francisco
(Foto: Leonardo Sakamoto)

Recife – Na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso, as questões do Velho Chico foram tratadas de modo singular. Até prova em contrário, o total desconhecimento do ambiente natural por onde corre o rio foi uma constante em seu governo, a ponto de sua excelência ter dado início a um programa que chamou de "Compromisso pela vida do rio São Francisco". Junto com uma comitiva de políticos, foi à nascente do rio, tomou um pouco de sua água e transmitiu mensagem de apoio à transposição dizendo que "o rio São Francisco é generoso e não há de secar porque os estados nordestinos pegam um pouquinho de água aqui e ali".

Essa frase de FHC ficou marcada na história do Brasil como exemplo de total dissonância de seu governo com a realidade hídrica do Nordeste e com as expectativas de seu povo ao acesso a água. Na seqüência de tudo isso, alguns meses após o seu pronunciamento e motivado por períodos secos na bacia do São Francisco, o rio correu com menor volume de água, a ponto de as autoridades serem obrigadas a proceder ao indispensável racionamento de energia, iniciando-se, naquele momento, a mais séria crise energética da história nordestina.

O governo Lula está parecendo semelhante ao de FHC nas questões sanfranciscanas. Inicialmente, em campanha, sua excelência começou a agir de forma sensata, alertando o povo nordestino sobre a necessidade de se debater com mais profundidade o projeto de transposição, por entender que o mesmo apresentava-se polêmico e, portanto, merecedor de maiores discussões junto a sociedade, para se chegar a um denominador comum. Aliás, as discussões constituíam as principais bandeiras de luta na campanha presidencial de Lula. Quem não lembra da discussão acalorada havida entre Lula e o candidato Anthony Garotinho, quando o assunto da transposição veio à baila? Garotinho defendia a execução do projeto a todo custo, enquanto Lula sustentava a necessidade de debatê-lo com mais prudência. Diante disso, ficamos animados com aquela posição do então candidato Lula sobre a forma de tratamento dispensada, tanto ao projeto da transposição, como à hidrologia do Nordeste como um todo.  

O que aconteceu depois de Lula eleito? Segundo expressão do próprio presidente, ele iria fazer a transposição a todo custo, “nem que fosse com uma lata d´água na cabeça”, alegando não poder negar um “caneco d´água” a quem tem sede.

Ora, o foco da questão do abastecimento do Nordeste não pode restringir-se, única e exclusivamente, ao acesso às águas do rio São Francisco, para a solução dos problemas da sua população, como bem o atesta a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Diante do potencial hídrico existente na região, os técnicos da SBPC recomendaram, em reunião no Recife, em agosto de 2004, que se procedesse à construção de uma infra-estrutura hidráulica capaz de atender às necessidades da população, partindo-se das bacias dos estados que seriam receptores das águas do rio São Francisco (Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba), para as bacias dos estados exportadores (Alagoas, Sergipe, Bahia e Minas Gerais). Isto é, de jusante para montante, priorizando-se o acesso às águas das represas, dos poços, cisternas rurais, barragens subterrâneas – fontes detentoras de volumes capazes de suprir, até com certa folga, as necessidades diárias da população nordestina, bastando, para tanto, proceder-se ao indispensável gerenciamento desses recursos.

Sobre esse assunto, tivemos acesso, recentemente, a um relatório elaborado em 1995, pela Funcate – órgão credenciado pelo Ministério da Educação e pelo Ministério de Ciência e Tecnologia como instituição de apoio às organizações governamentais de pesquisa e desenvolvimento – sobre as questões hídricas do Nordeste. Nele é afirmado, categoricamente, que não há déficit na região que venha a impedir ou mesmo comprometer o abastecimento humano e que, diante do potencial hídrico existente, a transposição do rio São Francisco constitui-se numa obra desnecessária.

Não podia ser diferente. Em conversa recente que mantivemos, sobre as questões hídricas nordestinas, com Apolo Heringer Lisboa, coordenador do Projeto Manuelzão – que visa a revitalização do Rio das Velhas (MG) – chegamos à conclusão de que, diante do expressivo volume d´água existente nos estados que seriam beneficiados pela transposição, com potencial estimado de cerca de 37 bilhões de m³, o que se pretende bombear do rio São Francisco, através do projeto (cerca de 400 milhões de m³/ano), representa apenas cerca de 1% daquele potencial instalado.

Esta afirmação se torna mais preocupante ainda se compararmos os volumes pretendidos pelo projeto de transposição (os 400 milhões de m³/ano) ao potencial volumétrico existente na rede dos principais açudes do Nordeste Setentrional (cerca de 11,48 bilhões de m³). Nesse caso, os volumes a serem transpostos pelo projeto correspondem a apenas 3,5% desse potencial volumétrico.

Para efeito dos cálculos nessas análises, levou-se em consideração o volume outorgado ao projeto pela Agência Nacional de Águas (ANA) de 26,4 m³/s, os bombeamentos contínuos durante nove meses ao ano (essa redução do tempo de bombeamento baseou-se nos problemas que sempre ocorrem, advindos de manutenção, defeitos nos equipamentos, falta de energia e outros imprevistos) e as perdas volumétricas de água, da ordem de 35%, ao longo do trajeto dos canais, devido, principalmente, à evaporação e as infiltrações inevitáveis.

Além do mais, considerou-se os açudes Chapéu (PE), Entremontes (PE), Castanhão (CE) Engenheiro Ávidos (PB), Pau-dos-Ferros (RN), Santa Cruz (RN), Armando Ribeiro Gonçalves (RN), Poço da Cruz (PE) e Boqueirão (PB), com o potencial volumétrico de 11,48 bilhões de m³, já mencionados e para os quais está previsto o abastecimento com as águas do rio São Francisco. 

São esses percentuais irrisórios de 1% e 3,5%, dos volumes já existentes na região, que se pretendem transferir do rio São Francisco, a um custo de R$ 4,5 bilhões de reais, para o abastecimento de 12 milhões de pessoas no Semi-árido nordestino. Além de uma proporção custo/benefício descabida, em que as águas serão transportadas em “caneco de ouro”, não existe a mínima garantia
de que esses volumes cheguem às populações difusas da região semi-árida, aquelas realmente mais necessitadas. Seguramente, essas populações – que estão representadas, na sua grande maioria, por produtores de baixa renda, que vêm sendo socorridas por frotas de caminhões-pipa e por programas assistencialistas do governo e que são as que realmente precisam do acesso ao precioso líquido para sobreviverem – não verão a cor das águas do rio São Francisco.

O verdadeiro beneficiário de suas águas será o empresariado do grande capital (o irrigante, o criador de camarões, o cultivador de flores tropicais e os empreiteiros), aquele que representa a fonte maior de votos no Nordeste e que, não raro, é o verdadeiro responsável pelo sucesso eleitoral da maioria dos políticos ora em cena no Parlamento. É essa a verdadeira realidade nordestina, perante a qual a região está sucumbindo e, na nossa ótica, é onde se engendra a verdadeira indústria da seca.

João Suassuna é engenheiro agrônomo, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e ums dos maiores especialistas na questão hídrica nordestina.

 

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