Palco da maior libertação de escravos da história recente do país, com 1003 pessoas de acordo com o governo federal, a Destilaria Gameleira fará parte da recém-criada Destilaria Araguaia a partir deste sábado (27). Localizada no município de Confresa, nordeste do Mato Grosso, a Gameleira se tornou conhecida nacionalmente após quatro operações de fiscalização encontrarem condições degradantes de trabalho em sua fazenda de cana-de-açúcar. As reincidentes fiscalizações levaram a destilaria a ser inserida na “lista suja” do trabalho escravo, organizada e mantida pelo governo federal – posteriormente, o nome foi suspenso por decisão judicial. A empresa discorda da versão governamental e nega que tenha utilizado mão-de-obra escrava.
A Destilaria Araguaia continuará sendo uma das usinas de açúcar e álcool sob a direção do grupo EQM. Incorporará as atividades da Gameleira – que ficará responsável pela moagem da cana. Para reverter a imagem negativa que se associou ao nome “Gameleira” depois dos escândalos, o empresário Eduardo de Queiroz Monteiro comprou a parte da fazenda que pertencia à sua família, adquiriu mais terras, ampliou as instalações e trocou o nome da propriedade. Eduardo é irmão de Armando de Queiroz Monteiro Neto (PTB-PE), presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI). A nova fazenda terá 22 mil hectares, dos quais seis mil serão cultivados, alcançando a produção de 35 milhões de litros de álcool por ano.
O grupo EQM atesta que tudo vai ser avançado, inclusive o tratamento dispensado aos funcionários. Instalações modernas, não só para fabricar álcool, mas também para o conforto dos trabalhadores. Anunciou que vai cumprir todos os aspectos da lei, inclusive as regulamentações do trabalho rural da norma NR31. Promete que vai garantir para os 240 trabalhadores fixos e 750 temporários alojamentos decentes, alimentação balanceada servidas em restaurantes móveis e, o mais importante, carteira assinada e todos os direitos.
De acordo com a empresa, haviam confirmado presença no evento deste sábado uma tropa política de peso que inclui dois governadores, Blairo Maggi (MT) e Marcelo Miranda (TO), e um ex-governador, Jarbas Vasconcelos (PE) – estado onde está a sede do grupo econômico que controla a Destilaria Araguaia.
Pressão econômica
Grandes distribuidoras de combustível cortaram contratos com a Gameleira, no ano passado, após ficarem sabendo que comercializavam com uma empresa que estava na “lista suja” do trabalho escravo do governo federal. A relação, atualizada semestralmente, mostra pessoas físicas e jurídicas que cometeram esse crime e tiveram seus processos administrativos transitados em julgado dentro do Ministério do Trabalho e Emprego.
Após empresas como Ipiranga e Petrobrás afirmarem que não comprariam mais combustível da destilaria, o então presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti (PP-PE) fez uma “consulta” com o objetivo de descobrir por que o álcool da Gameleira não estava mais sendo adquirido. Segundo ele, essa ação foi realizada a pedido de deputados federais. Na época, a repercussão na imprensa e junto à sociedade civil do comportamento do parlamentar agindo em prol da iniciativa privada foi bastante negativa.
A suspensão nos acordos comerciais entre a Gameleira e as distribuidoras aconteceu após elas terem conhecimento de levantamento que identificava a cadeia produtiva do trabalho escravo no país. A pesquisa, solicitada em 2004 pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, serviu de embasamento para que fosse firmado o Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, iniciativa do Instituto Ethos de Responsabilidade Social e da Organização Internacional do Trabalho. O Pacto, assinado no dia 19 de maio em Brasília, já conta com cerca de 80 signatários, incluindo grandes empresas como Coteminas, Carrefour, Pão de Açúcar, Wal-Mart, Votorantin, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal.
A pesquisa aponta que a Galemeira comercializava com a Ipiranga, Petrobrás, Shell, Texaco, Total e PDV, fornecendo combustível principalmente para as regiões Norte e Nordeste. Dessas, Ipiranga, Petrobrás, Shell e Texaco assinaram o pacto. No dia 11 de maio de 2005, os advogados da família Queiroz Monteiro conseguiram uma liminar na Justiça do Trabalho suspendendo o nome de sua fazenda da "lista suja", base da cadeia produtiva. Contudo, signatários mantiveram a interdição de compra, como a Ipiranga. Fontes dessa empresa revelaram que a decisão da companhia seguiu determinações do pacto e é coerente com uma conduta de ética e de responsabilidade social.
Libertação recorde
Em junho de 2005, uma operação do grupo móvel de fiscalização do MTE, que contou com a participação do Ministério Público do Trabalho e da Polícia Federal, libertou 1003 pessoas escravizadas da fazenda. A ação ocorreu após denúncias que envolviam violência física contra os peões.
“A situação aqui é horrível. Há superlotação dos alojamentos, que exalam um mau cheiro insuportável. A única água que recebe tratamento é aquela que vai para as caldeiras e não para os trabalhadores. A alimentação estava estragada, deteriorada. O caminhão chega jogando a comida no chão. Pior do que a comida que se dá para bicho, porque esse pelo menos tem coxo”, afirmou Humberto Célio Pereira, auditor fiscal do Trabalho e coordenador do grupo móvel de fiscalização.
De acordo com ele, todas as características confirmaram a existência de escravidão contemporânea, do aliciamento ao endividamento e à impossibilidade de deixar o local. Os trabalhadores foram levados de Pernambuco, Maranhão e Alagoas, iludidos pelas falsas promessas de salários e boas condições de serviço dadas pelos “gatos” (contratadores de mão-de-obra a serviço da usina). Ninguém recebia salário e era obrigado a comprar tudo da cantina da empresa, com preço acima do mercado. Os gastos eram anotados para serem descontados do pagamento final – sempre menor do que o combinado pelo “gato”. Devidos às péssimas condições de saneamento e higiene, não raro ficava-se doente. Contudo, até o soro recebido nas crises de diarréias era descontado dos peões. A fazenda Gameleira já havia sido flagrada outras três vezes por fiscalizações do Ministério do Trabalho e Emprego. Em uma dessas ações, 318 pessoas foram libertadas.