Especial Latifúndio 3

Desmatamento e poluição seguem o rastro do agronegócio

Degradação ambiental e concentração fundiária acompanham o avanço da agricultura empresarial no país. Prejuízos causados ao Pantanal, Cerrado e Amazônia são a face mais conhecida dos danos que também atingem camponeses e populações tradicionais
Por Fabiana Vezzali
 20/07/2006

O agronegócio avança na trilha do desmatamento e da superexploração do meio ambiente. No lugar da floresta, grandes pastos para receber gado, lavouras de soja e algodão. E o que restou de árvores que alimentaram madeireiras e carvoarias ou que serviram de insumo para a construção civil das grandes cidades. Esse é o alto preço que paga o país por apostar na grande propriedade rural como alavanca para o desenvolvimento econômico. As ameaças ao Pantanal, Cerrado e Amazônia são apenas a face mais conhecida da destruição ambiental provocada também por grandes projetos de infra-estrutura que obedecem às demandas da indústria e da agricultura exportadora.

"O projeto de assentamento agroextrativista de Nova Ipixuna, no Pará, é a única área verde da cidade. Moram lá 350 famílias e vivemos da extração da castanha-do-pará, açaí, cupuaçu, andiroba, copaíba. O problema é que o assentamento está rodeado de serrarias e carvoarias. As castanheiras, a qualquer hora do dia ou da noite, são levadas do projeto. Os madeireiros oferecem dinheiro a alguns agricultores para eles derrubarem a mata além do permitido. Os carvoeiros se oferecem para comprar a área, para derrubar as árvores e fazer roça. Fico muito triste quando encontro essas pessoas lá dentro", conta Maria do Espírito Santo da Silva, integrante do Conselho Nacional dos Seringueiros e moradora do assentamento de 23,58 mil hectares, criado há nove anos.

Sítio em Sapucaia (PA): árvores que alimentam madeireiras e carvoarias (Fotos Leonardo Sakamoto)

A extração ilegal de madeira para fornecer às siderúrgicas, produtoras de ferro-gusa, também preocupa os agricultores da região de Carajás. Além de testemunhar a plantação de eucaliptos em grandes propriedades alterando a paisagem, Nilton Fernandes da Silva, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Marabá, também vê a mata nativa das pequenas propriedades sendo derrubada e vendida às carvoeiras. O carvão vegetal é utilizado na fabricação de ferro-gusa, matéria-prima do aço.

"A maior fonte para a produção de carvão está nas pequenas propriedades. Os agricultores vendem a madeira muito barata. Mas hoje nem se compra a madeira, já se instala o forno na pequena propriedade mesmo." Além de alertar para a exploração de trabalho escravo nas carvoarias, Nilton afirma que as empresas também financiam o plantio de eucalipto pelos pequenos proprietários. "Para nós, essa é uma ofensiva que vai atender ao grande negócio. Aqui, as grandes propriedades das empresas têm 20, 50 mil hectares. Depois que a mata se acaba, se o pequeno produtor não tiver plantação, não tem como sobreviver."

A agricultura empresarial depende da exploração de grandes extensões de terra. E o termo agronegócio – utilizado para modernizar a imagem do latifúndio – não esconde que, por onde a atividade avança, crescem a degradação ambiental e a concentração fundiária. "O agronegócio também é insustentável do ponto de vista social porque expulsa os pequenos agricultores do local", afirma Sergio Schlesinger, do Fórum Brasileiro de Organizações Não-governamentais (Fbons).

A Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA) e a Associação Brasileira de Agribusiness (Abag) foram contatadas para falar sobre o tema, mas não se manifestaram até o fechamento desta reportagem.

Redução de danos
O Ministério do Meio Ambiente tem apostado que é possível conciliar o crescimento econômico do país com a conservação e o uso sustentável dos recursos naturais. Tarefa que impõe um grande desafio, uma vez que a exportação de produtos agrícolas cultivados por grandes propriedades rurais sustenta a política econômica do governo federal, dependente de superávits na balança comercial. Enquanto o Ministério da Agricultura, porta-voz dos interesses do agronegócio, estima que quase 90 milhões de hectares de terras férteis ainda podem ser explorados no país, a pasta de Marina Silva direciona suas forças para projetos que diminuam os danos causados à biodiversidade brasileira.

"Quando a agricultura cresce ocupando espaços já degradados, causa um menor impacto. Mas quando avança sobre novas áreas de floresta, o prejuízo ambiental é maior. Uma política para região de florestas tem que provocar o uso intensivo das áreas já ‘abertas' e, ao mesmo tempo, manter a floresta que já existe. Os principais problemas trazidos pelo agronegócio são o uso de agrotóxicos, a conversão de florestas para desmatamento, e avanços sobre área de reserva legal", avalia o diretor do Serviço Florestal Brasileiro do Ministério do Meio Ambiente, Tasso de Azevedo.

Na opinião de Azevedo, a principal arma contra a destruição das florestas é a regularização fundiária, que concede direito de uso e posse da terra e, ao mesmo tempo, arrecada as áreas públicas ocupadas por grileiros (pessoas que falsificam documentos para justificar a posse da terra). "Para combater o desmatamento, tem que trabalhar também com o ordenamento fundiário, pensar a infra-estrutura do país de maneira que seja ambientalmente adequada e fomentar práticas sustentáveis da agricultura e da exploração da floresta. Só monitoramento e fiscalização não resolvem o problema".

 
Áreas de babaçuais, na região de transição para a Amazônia, estão sendo devastadas, inclusive em áreas de conservação (Foto: André Campos)

Articulado com a política ambiental, o Ministério de Desenvolvimento Agrário definiu que a política de regularização fundiária deverá começar pela região Norte do país, principalmente pelos estados de Roraima, Pará e Amazonas. A ação já estava prevista desde 2003, mas o governo afirma que só agora o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) tem estrutura para iniciar o trabalho. "A nova lei permite a regularização da posse de até 500 hectares de terras na Amazônia Legal. Não é verdade que o governo não comprou briga com o latifúndio. No Pará, por exemplo, vivemos uma disputa pelo que chamo de padrão de ocupação. Junto com o Ministério de Meio Ambiente temos atuado para criação de Uni
dades de Conservação, reservas extrativistas. Estamos disputando a ocupação do oeste do Pará para não repetir o que aconteceu no sul do Estado", justifica o secretário-executivo do ministério, Caio França.

Essa região, que abrange municípios como Marabá, Santana do Araguaia e Xinguara, ainda sente os sintomas de uma colonização incentivada pelo Estado brasileiro durante a ditadura militar que beneficiou os grandes empreendimentos do Centro-Sul e de fora do país. Ficaram do lado de fora a população indígena, as comunidades tradicionais e os pequenos produtores que, pelo o que tem sido observado, possuem maior capacidade de preservar o meio ambiente em comparação ao latifúndio.

Contudo, a pressão gerada pelo crescimento dos negócios extrativistas ou agropecuários tem alterado a realidade econômica dessas regiões e nem todos os assentamentos rurais na Amazônia conseguem preservar suas próprias áreas. Segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), até o ano de 2002 havia 1.354 assentamentos, ocupando mais de 231 mil quilômetros quadrados e onde moram mais de 200 mil famílias. "Cerca de 106 mil quilômetros quadrados (49% da área dos assentamentos mapeados) foram desmatados até 2004, representando 15% do desmatamento da Amazônia", indica levantamento realizado pelo Imazon. Esses assentamentos estão localizados ao longo das rodovias e na região do Arco do Desmatamento (partes dos territórios de Rondônia, Mato Grosso, Tocantins, Pará e Maranhão).

A organizações ambientalistas criticam a opção estatal de privilegiar a criação de assentamentos na região Norte do país, sem levar em conta o impacto ambiental que isso tem gerado. Mais de 80% dos assentamentos foram criados a partir de 1995, mas a política de levar "homens sem terra para uma terra sem homens", respaldada pelo regime militar, é antiga, discursada do Juscelino Kubitschek e por Getúlio Vargas. Como já discutimos nas reportagens anteriores deste especial, essa mão-de-obra tem servido ao interesse dos grandes empreendimentos.

O Ministério do Desenvolvimento Agrário reconhece que a dificuldade em desapropriar terras em outras regiões do país para fins de reforma agrária leva à concentração dos assentamentos em terras públicas na região Norte. Mas argumenta que essas ações fazem parte de uma política mais ampla de combate à grilagem de terras. "Junto com o Ministério do Meio Ambiente, criamos os assentamentos florestais, os Projetos de Desenvolvimento Sustentável. Mas a região também é nossa prioridade política por causa do cenário de violência e conflito no campo", defende Caio França.

Moradora de um projeto agroextrativista de Nova Ipixuna, Maria do Espírito Santo, conta que recebe sempre ameaças por denunciar a retirada ilegal de árvores do assentamento, localizado a cerca de 100 quilômetros de Marabá. "No começo, havia apenas uma entrada no projeto. Agora são quatro estradas vicinais e fica difícil para a gente fiscalizar o que acontece. Então, eles vão invadindo e vão levando. Na estrada, a gente vê um monte de tijolo e já sabe que é pra fazer fornos para o carvão. Se existe fiscalização? A situação do Ibama é constrangedora. Quando eles saem de Marabá, os madeireiros já desaparecem daqui."

É forte a resistência das populações tradicionais na luta para preservar a floresta. Mas as ações do poder público parecem chegar tarde e serem frágeis frente ao poder de atividades econômicas que já alteraram profundamente a paisagem brasileira.

Derrubando árvores
Entre 2004 e 2005, foram desmatados cerca de 19 mil quilômetros quadrados na região amazônica. O campeão de desmatamento foi o Estado do Mato Grosso, com quase 7 mil quilômetros quadrados de floresta derrubada, seguido pelo Pará, com cerca de 6 mil quilômetros quadrados. São números menores do que os índices apresentados em 2004, quando nada menos que 27 mil quilômetros quadrados de floresta haviam sido destruídos. Mas os pequenos agricultores, indígenas, seringueiros, pescadores e ribeirinhos não têm motivos para respirar aliviados.

As árvores derrubadas são parte de uma história que começou nos anos 70, com a expansão das fronteiras agrícolas. A entrada da agricultura empresarial na região da Amazônia Legal alterou radicalmente o uso que os povos indígenas e as populações locais faziam da terra, basicamente a agricultura de subsistência e extrativismo. Quando a soja chegou nos anos 80 à região, boa parte da cobertura vegetal já havia cedido espaço à pecuária extensiva.

No ciclo da expansão agrícola, a criação de gado abre fronteiras, amansa e regulariza a terra e depois cede espaço às monoculturas, para depois avançar sobre outras áreas da floresta. Segundo o Instituto Brasileira de Geografia e Estatística (IBGE), partindo do Sudeste do Mato Grosso, a soja alcançou nos anos 90 a região Norte do Estado e seguiu em direção à rodovia Cuiabá-Santarém (BR-163). Nesta região está, por exemplo, o município de Sorriso que é responsável atualmente por mais de 10% da produção nacional de soja. No caminho, outros municípios cresceram rapidamente sob a influência do agronegócio, como a região de Rondonópolis, onde se consolidou o cultivo de soja e milho. Quando conquistou o Pará, incentivada por benefícios concedidos pelo governo estadual, a soja já dominava as lavouras nos cerrados de Mato Grosso, Tocantins, Sul do Maranhão e Piauí.

Engana-se, porém, quem imagina que a abertura de novas fronteiras agrícolas está próxima de seu fim. Em 2002, o IBGE fez o primeiro levantamento sobre o meio ambiente nos municípios brasileiros e revelou que a região de cerrado na porção Oeste da Bahia já está ameaçada pelo desmatamento. "Muitos gestores municipais indicaram queimadas e desmatamento alterando a qualidade de vida e a paisagem. Pode estar se repetindo aí a expansão agropecuária que já substituiu por enormes plantações de soja grande parte dos cerrados outrora existentes no Brasil Central", indica a pesquisa.

Cruzando a floresta
A política do regime militar de povoar a Amazônia, como se aquela fosse faixa de terra sem habitantes, também atraiu com incentivos fiscais grandes empresas e interessados em ocupar as terras públicas – prato cheio para grilagem de terras e estabelecimento de latifúndios.

A abertura de estradas que ligassem essa região ao resto do país agiu para o deslocamento de mão-de-obra barata e o escoamento da produção. Passaram a cruzar a floresta rodovias que ligavam Brasília a Cuiabá e Porto Velho, a Transamazônica, e a Cuiabá-Santarém, por exemplo. E, seguindo o mesmo caminho das estradas, mais desmatamento. O Instituto de
Pesquisa Ambiental da Amazônia afirma que a relação entre a degradação ambiental e a construção de estradas é clara. "Três quartos dos desmatamentos entre 1978 e 1994 ocorreram dentro de uma faixa de 100 quilômetros de largura ao longo das rodovias (50 quilômetros para cada lado) pavimentadas da região. Entre 33 e 55 % das florestas que estavam dentro desta faixa foram desmatadas até o ano 1991", aponta.

Em 2004, quando o asfaltamento da rodovia Cuiabá-Santarém foi anunciado como uma das obras prioritárias do governo federal, o Ministério do Meio Ambiente apressou-se em elaborar, em conjunto com a sociedade, um plano de ações para os 71 municípios na região. A justificativa para concluir a pavimentação da BR-163 é criar um corredor de exportação através do rio Amazonas para escoar soja, madeira, arroz e gado ao porto de Santarém. O plano do governo chamado "BR-163 Sustentável" prevê regularização fundiária da área, criação de unidades de conservação, incentivo a projetos de geração de emprego e manejo florestal.

"Estamos planejando a construção de uma rodovia de forma diferente. Quando você está planejando o asfaltamento de uma rodovia, é muito importante pensar no entorno dela. Se você só pensa no caminho por onde ela vai passar, o entorno tem destinos trágicos, como já vimos em alguns lugares. Antes de começar a pensar esse projeto, em 2002, o desmatamento havia crescido 500% na região da BR-163 no Estado do Pará, mas no ano passado o desmatamento foi próximo de zero", comemora Tasso de Azevedo.

O integrante da Fbons, Sergio Schlesinger, considera que os planos são importantes, mas não conseguem impedir a degradação ambiental provocada pelas estradas. "A área ao longo da rodovia é valorizada e existe uma pressão enorme dos proprietários de terra para ocupá-la. O governo não tem estrutura para evitar o desmatamento porque falta fiscalização, por exemplo".

Vizinhos ameaçados

 
Pecuária orgânica no Pantanal é alternativa para reduzir danos ao meio ambiente

Entre os biomas mais ameaçados do mundo, já é conhecida a degradação causada no Cerrado pela pecuária e lavouras mecanizadas de soja e algodão. Dos mais de 2 milhões de quilômetros quadrados originais de vegetação nativa, restam apenas 20%. Pouco se diz, porém, que a destruição do Cerrado também atinge o Pantanal – declarado patrimônio nacional pela Constituição brasileira.

"Os principais rios do Pantanal nascem nas chapadas do bioma vizinho que tem problemas ambientais associados à intensa produção agrícola que se desenvolve na região", denuncia o relatório da organização Conservação Internacional. O estudo também afirma que até 2004 quase 45% da área da Bacia do Alto Paraguai e do Pantanal teve sua vegetação original completamente descaracterizada. Em geral, a derrubada da mata beneficia pecuaristas – interessados em aumentar as áreas de pasto – e as carvoarias que utilizam a madeira.

Dos projetos "desenvolvimentistas" anunciados para a região do Pantanal, causou grande polêmica a tentativa do governo do Mato Grosso do Sul de construir usinas de álcool na bacia do Alto Paraguai. O projeto foi condenado pelo Ministério do Meio Ambiente que considerou prejudicial a implantação de empreendimentos ligados à lavoura de cana-de-açúcar próximos à região pantaneira. Na época, organizações da sociedade civil avaliaram que seria grande o risco de contaminação de rios pelo subproduto da cana, o vinhoto, além do aumento das queimadas e do uso de herbicidas. A mobilização social e a trágica morte do ambientalista Francisco Anselmo Gomes de Barros, que se suicidou no ano passado, após atear fogo ao próprio corpo durante um protesto, aparentemente forçaram o governo estadual a desistir da idéia.

Ao mesmo tempo, é também no Pantanal que cresce o projeto de incentivo à pecuária orgânica – uma alternativa sustentável para a atividade econômica historicamente presente na região. Na pecuária orgânica a adubação é feita sem agrotóxicos e não se pode utilizar a queimada para renovar o pasto, por exemplo. A carne produzida de dessa forma alcança um maior valor, comprada por consumidores que buscam produtos ambientalmente responsáveis.

No comportamento de consumo da sociedade reside uma das maiores armas para enfrentar o problema. Apesar de incipiente no Brasil, esse comportamento já é representativo em países europeus, causando prejuízos a marcas conhecidas.

Os crimes ambientais não se reduzem a ameaças contra a preservação de florestas, rios ou animais. Estão freqüentemente acompanhados de atos de violência contra moradores, sindicalistas, trabalhadores rurais, indígenas, ou ativistas. Para aqueles que tentam resistir à ofensiva dos tratores e serras-elétricas, as ações do Estado parecem chegar tarde mais. Esse é o tema da próxima reportagem deste especial.

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