Especial

Latifúndio e expansão do agronegócio acirram conflitos no campo

Trinta e oito pessoas assassinadas e mais de 4.500 libertados do trabalho escravo engrossaram os números da violência no campo em 2005. Trabalhadores rurais, comunidades tradicionais e indígenas são os principais alvos
Por Fabiana Vezzali
 03/08/2006

Nesta quarta-feira (2), 300 famílias do acampamento Chico Mendes, que ocupa os 580 hectares do Engenho São João, no município de São Lourenço da Mata (PE), foram mais uma vez ameaçadas de despejo. A Justiça concedeu a reintegração de posse do engenho, que faz parte da massa falida da Usina Tiúma, pertencente ao grupo Votorantim. Após sucessivos adiamentos, a ação para retirar as famílias foi marcada para ontem. Cerca de 300 policiais da tropa de choque da Polícia Militar de Pernambuco cercaram a área durante todo o dia. Os sem-terra decidiram resistir à ação e a polícia deixou o local no final da tarde. “Eles disseram que vão voltar hoje”, conta o integrante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Alexandre Conceição.

Segundo os sem-terra, o primeiro despejo realizado no ano passado foi bastante violento. Mais de 600 policiais cercaram a área durante 48 horas e utilizaram bombas de efeito moral para retirar as famílias que já viviam há um ano e meio no local. Em março, contudo, os sem-terra voltaram a ocupar o engenho. “O Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] já tem reunião marcada para o próximo dia 15 com a Votorantim para discutir a desapropriação. Esperamos sensibilizar o juiz local para que a reintegração de posse seja suspensa”, afirma Alexandre.  

Outras 47 mil famílias também foram expulsas de terras, ameaçadas de despejos ou intimidadas por pistoleiros no ano passado, aponta a Comissão Pastoral da Terra (CPT) – entidade ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Trinta e oito pessoas assassinadas em conflitos agrários, 266 ameaçadas de morte e os mais de 4.500 libertados do trabalho escravo engrossaram, ainda em 2005, as estatísticas da violência. Populações tradicionais, trabalhadores rurais e comunidades indígenas foram os alvos principais dessa ofensiva. O outro protagonista, presente na maioria dos conflitos, é a grande propriedade rural, símbolo da desigualdade no campo brasileiro.  

“Existe uma relação direta entre latifúndio e conflitos no campo. Hoje, a propriedade rural se reveste com nova roupagem, chamada de agronegócio, mas é a mesma monocultura de sempre, que desloca as populações tradicionais”, denuncia Dirceu Luiz Fumagalli, integrante da coordenação nacional da Pastoral da Terra, que há mais de duas décadas publica anualmente um relatório sobre violência no campo. “O conflito é sempre maior do que a CPT consegue sistematizar. Mas é importante apresentar os números para a sociedade. Eles desnudam o sistema econômico, político e agrário do nosso país”, completa. 

Monumento aos 19 trabalhadores sem-terra mortos após confronto com a Polícia Militar em abril de 1996 no Pará. Fotos: Leonardo Sakamoto 

A exportação de produtos agrícolas, cultivados em grandes propriedades monocultoras, é um dos pilares em que se apóia a política econômica brasileira para garantir saldos positivos na balança comercial. O termo agronegócio busca modernizar a imagem do latifúndio, apresentando-o como a face moderna da agricultura empresarial. O novo nome, porém, não é suficiente para modificar a dinâmica da propriedade monocultora que, além de acirrar os conflitos no campo, destrói o meio ambiente e alimenta a concentração de terra. 

Ao relacionar o número de conflitos e de violência com os dados da população rural, o relatório da CPT mostra como as ocorrências são significativamente maiores nas regiões Centro-Oeste e Norte do país, nos estados onde prospera e se expande o agronegócio. O Mato Grosso tem o maior índice (6,71), seguido pelo Pará (5,15), e depois por Goiás (2,92) e Tocantins (2,82).

Impunidade
Além de acirrar a disputa pela terra, a violência não poupa também os que se opõem ao desmatamento e à destruição da biodiversidade. Entre os episódios marcantes dessa lógica, segundo a Pastoral da Terra, está o assassinato da missionária norte-americana Dorothy Stang, que defendia a implantação de projetos sustentáveis na Amazônia.

Após um ano da morte da religiosa, apenas o pistoleiro Clodoaldo Carlos Batista, executor do plano, foi condenado a 17 anos de prisão. Acusado de ser um dos mandantes do crime, Regivaldo Pereira Galvão, conhecido como Taradão, aguarda o julgamento em liberdade. Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, também acusado de ser o mandante, encontra-se preso à espera de julgamento. Desde o dia 1º, Vitalmiro também passou a fazer parte da “lista suja” dos que empregam mão-de-obra escrava em suas fazendas (Ver “Senador João Ribeiro e acusado pela morte de Dorothy Stang estão na nova "lista suja").

Em março deste ano, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) lançou uma campanha internacional contra a violência no campo para denunciar a impunidade e sensibilizar o Poder Judiciário. Segundo dados da Pastoral da Terra, nos últimos 20 anos foram assassinados mais de 1.300 trabalhadores rurais, lideranças e ativistas ligados a movimentos sociais. Destes casos, somente 77 foram julgados, e apenas 15 mandantes e 65 executores foram condenados.

A socióloga e professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Leonilde de Medeiros, ressalta que os crimes cometidos contra lideranças camponesas, agentes comunitários e sindicalistas têm como principal objetivo enfraquecer a organização das comunidades, eliminando aqueles que exercem maior influência sobre essas populações. “Foi assim em 1964, com o assassinato de João Pedro Teixeira, das Ligas Camponesas da Paraíba, com Chico Mendes e a Irmã Dorothy”, relembra.

Trabalho forçado

Lourival Máximo da Fonseca, 27, considerado um bom colhedor pelos companheiros. Corta 18 toneladas de cana queimada ou 8 de cana crua por dia.

Especialista em questões agrária, Leonilde Medeiros afirma ainda que, em geral, o uso da força nos conflitos fundiários é empregado pelos proprietários de terras – que contratam jagunços e pistoleiros – ou pela força policial do Estado. “Como em Eldorado de Carajás”, exemplifica. Mas a pesquisadora acha importante destacar outro tipo de violência, mais sutil, porém não menos brutalizante, que já vem sendo denunciada por entidades de direitos huma
nos. “Trata-se da morte dos cortadores de cana por exaustão no interior de São Paulo”, diz Leonilde Medeiros, referindo-se ao caso de 13 trabalhadores rurais da região de Ribeirão Preto (SP), que faleceram por paradas cardio-respiratórias. A suspeita é de que essa seja a contrapartida fatal para as mais altas taxas de produtividade sucroalcooleira do país. 

A maioria desses trabalhadores ganha de acordo com a produção, enfrentando a concorrência das cortadoras mecânicas que invadiram os canaviais. Nas décadas de 70 e 80, um homem cortava em média de cinco a oito toneladas de cana por dia. Hoje a média está entre 12 e 15 toneladas.

Este é só um exemplo de como a violência não está restrita a partes “atrasadas” do país, mas também se reproduz no interior de sistemas freqüentemente apontados como modelos de eficiência e prosperidade. Como é o caso do agronegócio do açúcar e do álcool no estado de São Paulo, que ocupa o terceiro lugar na pauta de exportações do país. 

Outras 177 denúncias de superexploração do trabalho e cerca de 270 ações de libertação de trabalhadores em condições análogas à de escravos foram registradas no campo brasileiro no ano passado pela CPT.

Recrutados para a derrubada da mata na abertura de novas fazendas, ou contratados para o preparo do solo, muitos trabalhadores são levados por “gatos” (contratadores de mão-de-obra) para regiões isoladas, distantes de seu local de origem. Em geral, ficam alojados em barracos de lona ou em locais em péssimas condições e são obrigados a comprar alimentos no armazém da própria fazenda, que cobra preços abusivos. Contraem dívidas e são coagidos, muitas vezes com o uso da força, a não deixarem o lugar.

Na mais recente “lista suja” divulgada pelo Ministério do Trabalho, são apontados 178 nomes de empregadores que utilizaram mão-de-obra escrava em fazendas de pecuária, soja, algodão, café, cana-de-açúcar, ou produção de carvão vegetal. Em sua maioria, essas propriedades são grandes áreas monocultoras que produzem para a exportação ou para a indústria nacional.

Terras indígenas
Nas regiões Norte e Centro-Oeste, a expansão de monoculturas voltadas à exportação – como eucalipto, soja e algodão – e as ações das madeireiras e carvoarias ameaçam também povos indígenas isolados ou de pouco contato. Um relatório elaborado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) aponta casos de violência praticada contra 17 desses povos nos últimos três anos. Calcula-se que existam pelo menos 60 populações sem contato nessas regiões. “Estes crimes de genocídio têm sido praticados por grupos de extermínio a serviço de grileiros de terras públicas, madeireiros ou fazendeiros. A estratégia é acabar com qualquer vestígio de presença indígena para inviabilizar a demarcação de suas terras”, denuncia a entidade.

Entre as diversas formas de violência contra os índios, como racismo e agressões sexuais, o Cimi considera os conflitos pela demarcação de terras a principal delas. Entre 2003 e 2005, foram homologadas, em média, seis terras indígenas por ano, enquanto, no mesmo período, a média de assassinatos chegou a 40.

Um dos fatos registrados no ano passado foi o assassinato do cacique João Araújo Guajajara, de 70 anos. O autor do crime, identificado como Milton Careca, ameaçava os índios a deixarem a aldeia Bacurizinho, na cidade de Grajaú (MA). Segundo a entidade, há exploração irregular de soja, carvão e eucalipto na área e os índios recebem ameaças para que desistam de um processo que pede a revisão dos limites de sua terra. A homologação da reserva efetuada nos anos 80 deixou de fora cerca de 60 mil hectares de terras indígenas. 

Passado de conflitos
“A violência no campo é uma constante na história brasileira”, resume a professora da UFRRJ, Leonilde Medeiros. “A formação das grandes propriedades rurais foi ‘empurrando’ para dentro do território primeiro os índíos, depois as populações tradicionais caboclas. E isso sempre foi feito com violência”.

A política de expansão das fronteiras agrícolas para o Norte do país, conduzida nos anos 70, também contribuiu para elevar a tensão no campo. Ela se fez ignorando a presença das populações indígenas com incentivos à migração de pequenos agricultores e grandes proprietários rurais, além de empresas do Centro-Sul  atraídas por incentivos fiscais. A ocupação desse pedaço do território brasileiro envolveu grilagem de terras (falsificação dos títulos de posse da terra), formação de grandes latifúndios e o uso de recursos públicos para a construção de hidrelétricas e rodovias que beneficiariam as grandes propriedades. Mais tarde, pressionados por grileiros e latifundiários, os posseiros (lavradores que ocupam a terra sem ter o título de posse) seriam forçados a abrir “novas” fronteiras agrícolas, criando outros cenários de disputa pela terra.

Policial Federal mostra material para fabricação caseira de cartuchos de grosso calibre na casa de  "gato" que aliciava mão-de-obra escrava no Pará

“A partir dos anos 50, os conflitos são com os posseiros e também com arrendatários e parceiros, que são expulsos das propriedades, mas brigam pela posse da terra. É a parcela da população vitima da modernização do campo: filhos de pequenos agricultores sem acesso à terra, agricultores endividados. Essas pessoas vão se organizar formando os movimentos sociais do campo, cujas primeiras ocupações começam no final dos anos 70”, explica a professora.

A ação dos movimentos sociais contra propriedades improdutivas atinge principalmente porções de terras estocadas por especuladores à espera de valorização dos preços do hectare. Estima-se que hoje 62,4% da área do total dos imóveis rurais no Brasil sejam improdutivas. Além de seu valor no mercado, a terra é também um importante instrumento de poder político.

“Se não for resolvida a questão da propriedade da terra, os conflitos vão continuar; em minha opinião, cada vez mais violentos”, alerta o professor Ariovaldo de Oliveira, do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP). Ele avalia que a grilagem de terras públicas é um dos principais elementos para manter a concentração de ext
ensas propriedades rurais na mão de poucos donos. “O agronegócio tem interesse na grilagem de terras. Quando estudamos os conflitos no Pará, encontramos representantes da sojicultura do Mato Grosso, que estão lá porque querem obter mais terras públicas”. (Ver "Concentração de terra na mão de poucos custa caro ao Brasil")

O Ministério do Desenvolvimento Agrário afirma que a política de regularização fundiária – que concede direito de uso e posse da terra – tem como prioridade as regiões onde a violência é mais intensa. “Estamos iniciando ações para acabar com a grilagem de terras: arrecadando terras públicas federais para fazer reforma agrária e regularizando a posse de porções de terra de até 500 hectares na Amazônia Legal. Vamos dar concessão direito real de uso para não estimular a especulação no mercado de terras. Queremos incentivar os posseiros a produzirem”, diz o secretário-executivo do ministério, Caio França.

Segundo ele, será feito também o cadastro dos imóveis rurais para identificar as áreas griladas. “Vamos começar pelas áreas do Pará, pela BR-163, e pelas áreas de interligação das Bacias de São Francisco porque sabemos que serão valorizadas”. Embora prevista desde 2003, a política de ordenamento fundiário só começou a dar os primeiros passos neste ano. Até então, segundo Caio França, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) não tinha estrutura necessária para realizar o trabalho.

Entre as principais reivindicações dos movimentos rurais e de direitos humanos figuram, ao lado do combate à grilagem de terras, a atualização dos índices de produtividade das propriedades rurais – que determinam se uma propriedade alcança ou não o mínimo de sua capacidade produtiva e são utilizados para a desapropriação para fins de reforma agrária – e a aprovação da chamada PEC do trabalho escravo. A proposta de emenda constitucional (PEC) tramita no Congresso há 11 anos. Ela prevê uma nova redação à lei que trata do confisco de propriedades onde forem encontradas lavouras de plantas psicotrópicas ilegais, como a maconha. A exploração de mão-de-obra em regime análogo ao da escravidão seria incluída na tipificação de terras sujeitas à expropriação. A medida é considerada pelos movimentos sociais como uma das mais importantes iniciativas para auxiliar na erradicação do trabalho escravo no Brasil.

A principal bandeira das organizações, contudo, é a realização de uma ampla política de reforma agrária, que altere a estrutura fundiária do campo e atue como vetor de desenvolvimento para reduzir as profundas desigualdades sociais. Este será o tema da próxima reportagem do especial sobre concentração fundiária.

Outras matérias do Especial Latifúndio:
Concentração de terra na mão de poucos custa caro ao Brasil
Regras protegem a grande propriedade e retardam reforma agrária
Desmatamento e poluição seguem o rastro do agronegócio
“Se dermos terras, poderemos resolver o que prende comunidades à servidão”
Agricultura familiar gera empregos mas recebe pouco recurso
Ser "celeiro do Brasil" devasta o Cerrado
"Há favelas gigantescas geradas por essa monocultura que está aí"
A economia da escravidão

APOIE

A REPÓRTER BRASIL

Sua contribuição permite que a gente continue revelando o que muita gente faz de tudo para esconder

LEIA TAMBÉM