O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu ser a Justiça Federal quem deve julgar o crime de redução à condição análoga à de trabalho escravo, previsto no artigo 149 do Código Penal. Um recurso extraordinário votado nesta quinta-feira (30), sobre denúncia envolvendo um fazendeiro paraense, abriu importante precedente na antiga pendência sobre qual seria a instância competente em relação ao tema: o judiciário Federal ou Estadual. A defesa da competência federal é uma antiga reivindicação de entidades que atuam no combate a esse crime. A votação chegou a 6 votos a 3 a favor da competência federal, dentre os 11 ministros do Supremo.
O julgamento do recurso extraordinário – que tramitava no STF desde 2003 – teve início em março do ano passado. Na ocasião, quatro membros do Supremo – Joaquim Barbosa (relator), Eros Grau, Carlos Ayres Britto e Sepúlveda Pertence – oficializaram posição a favor da competência federal, enquanto que os ministros Cezar Peluso e Carlos Velloso votaram contra. O julgamento foi então interrompido quando o ministro Gilmar Mendes pediu vistas para analisar melhor o processo. No dia 16 desse mês ele devolveu os autos para o reinício da votação.
Hoje, Gilmar Mendes e Celso Mello votaram a favor da competência federal, enquanto Marco Aurélio de Mello votou a favor da Justiça Estadual. O ministro Gilmar Mendes, no entanto, afirmou que é necessário ficar atento para abusos em relação ao tema. "Estamos diante de uma tipficação demasiadamente aberta do trabalho escravo, que pode dar origem a denúncias despropositadas."
Marco Aurélio de Mello defendeu que o crime não alcança a organização do trabalho como um todo, não sendo, portanto, de alçada da Justiça Federal. "Trata-se sim de um constrangimento às liberdades individuais." Celso de Mello, entretanto, ressaltou em seu voto a crença de que "se incluem nos crimes contra a organização do trabalho também os crimes contra a liberdade do trabalho."
Carlos Ayres Britto, que já tinha votado a favor da Justiça Federal no ano passado, pediu aparte para reafirmar sua posição. Ele ressaltou a ambivâlencia do crime, que, em sua opinião, atenta tanto contra organização do trabalho quanto contra as liberdades individuais. "Devido a esse caráter bidimensional, é válido optar pela Justiça Federal."
Segundo a procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Ella Wiecko de Castilho, a indefinição sobre o tema tem sido um dos principais fatores que contribuem para a impunidade do trabalho escravo no país. “Os advogados sabem dessa discussão e utilizam-se dela para evitar que ocorra o julgamento”, afirma. Para ela, uma votação em favor da Justiça Estadual criaria dificuldades para a implantação do Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo. “A Justiça Federal já possui uma base de dados para rastrear e seqüenciar tanto processos quanto relatórios de fiscalização sobre esse crime”, revela.
Segundo o artigo 109 do Código Penal, o cálculo para a prescrição de um crime considera o tempo decorrido entre a denúncia do Ministério Público e a sentença do juiz. A pena máxima prevista para trabalho escravo é de oito anos, o que implica um prazo de prescrição de 12 anos. A Justiça, porém, tem optado pela pena mínima de dois anos pois, muitas vezes, o réu é primário e tem bons antecedentes. Se o processo durar quatro anos e o juiz der dois anos de pena, o crime prescreve. Dessa forma, muitos criminosos têm conseguido permanecer impunes.
“Independentemente do mérito da decisão, a indefinição em si era o maior empecilho”, ressalta Patrícia Audi, coordenadora do Projeto de Combate ao Trabalho Escravo no Brasil da Organização Internacional do Trabalho. Para ela, o país tem avançado bastante no enfrentamento da impunidade em relação ao crime. Destaca iniciativas como a “lista suja” das empresas que utilizam mão-de-obra escrava e as ações por danos morais que estão sendo aplicadas pela Justiça do Trabalho contra escravagistas. “O fim da impunidade é, no entanto, um pacote de medidas”, acredita. “Outros avanços são necessários, como a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que prevê o confisco de terras flagradas com trabalho escravo.”
Superado o impasse sobre quem deve julgar o delito, há agora outra preocupação. “Os juízes da esfera preterida terão que despachar os processos em suas mãos para a esfera considerada competente”, revela Walter Nunes, presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil. “Enquanto isso, o prazo para a prescrição dos crimes continua avançando.”