Direito dos migrantes

Brasil é único do Mercosul a não assinar convenção da ONU

Convenção sobre a Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes até hoje não foi ratificada pelo Brasil. Campanha nacional pede ratificação
Bia Barbosa*
 18/12/2006

Segundo dados da Organização das Nações Unidas, em 2005 havia no mundo de 185 a 191 milhões de pessoas em situação de migração. Deste total, 51% eram mulheres. Cerca de 21 milhões de latino-americanos estavam fora de seus países de origem; 15 milhões deles morando nos Estados Unidos. Enquanto são 4 milhões os brasileiros vivendo fora daqui, o país contabiliza, em situação regular, pouco menos de um milhão de imigrantes – não há base de cálculo para os não documentados no Brasil. A presença dos imigrantes no Brasil, até hoje, é regida pela ultrapassada Lei do Estrangeiro, um estatuto jurídico da década de 80 – portanto, de um período em que o país ainda vivia sob a influência direta da ditadura militar –, que em muitos pontos é contraditório com o que afirma a própria Constituição de 1988.

Outro instrumento normativo que poderia ser usado para a garantia dos direitos dos imigrantes – mas que até hoje não foi ratificado pelo Estado brasileiro – é a Convenção sobre a Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes e Membros de Sua Família. Aprovada em 18 de dezembro de 1990, depois de uma década de debates no âmbito da ONU, a convenção entrou em vigor em 2003. Em 1996, o Brasil já havia incluído em seu Plano Nacional de Direitos Humanos o compromisso com a ratificação. Desde então, cresceram as mobilizações para que o tratado internacional fosse ratificado. Além de ser o único país do Mercosul a não integrar o instrumento, das grandes convenções das Nações Unidas esta é a única não assinada pelo país.

Para pressionar o governo e o Congresso brasileiros, no último domingo (17), por ocasião das comemorações do Dia Mundial do Imigrante, celebrado em 18 de dezembro, foi lançada uma campanha nacional pela ratificação da convenção internacional. O lançamento ocorreu simultaneamente em 16 cidades brasileiras e em outros países integrados numa campanha mundial.

No documento intitulado “Carta dos Imigrantes no Dia Mundial do Imigrante: Cidadania Universal e Direitos Humanos”, que será encaminhado ao presidente Lula e a autoridades do poder municipal, estadual e federal, dezenas de organizações exigem a ratificação da convenção da ONU e do Tratado de Livre Residência, que garante a livre circulação das pessoas em países do Mercosul e na Comunidade Sul-americana de Nações. Cobram ainda uma Nova Lei de Imigração, que seja justa, solidária e humanitária; pedem anistia ampla e geral para os imigrantes que vivem no país; e reivindicam seu acesso às políticas públicas, independentemente de sua situação administrativa.

“Os direitos das pessoas não derivam do fato de elas pertenceram a um Estado ou outro, mas de sua dignidade como humanos. Então não podem ser alterados, independentemente de onde estejam. Ou seja, a condição migratória não pode privar as pessoas do gozo de seus direitos fundamentais. Há um conjunto de direitos que não podem ser violados pelos Estados, governos, países ou sociedades. São inerentes às pessoas e não dependem de onde elas estão”, afirma Irmã Rosita, presidente do Instituto de Migrações e Direitos Humanos. São esses direitos que, na avaliação de organizações que trabalham com migrantes no país, podem ser melhor garantidos se o Brasil assinar a convenção da ONU.

No documento lançado neste domingo, as entidades também denunciam que a imigração é um processo impulsionado no marco da globalização, resultado de uma situação econômica, política, cultural e social relacionada diretamente aos efeitos do modelo neoliberal. Elas entendem que os fluxos migratórios são resultado da injustiça e do desequilíbrio estabelecidos no mundo entre ricos e pobres, entre pessoas com e sem trabalho, que fazem com que as pessoas migrem em busca de melhores condições de vida. Por isso denunciam a externalização e a fortificação das fronteiras, o tratamento do imigrante como moeda de troca ou como simples força de trabalho, as máfias e o tráfico de pessoas para exploração sexual e para o trabalho escravo.

“Cresce no mundo a multidão dos que são impelidos ou obrigados a deixar sua região de origem para poder sobreviver. No entanto, o imigrante é chamado ou rejeitado em um país segundo as necessidades dos governos. São tratados como mercadoria. Enquanto crescem os tratados de livre comércio, de importação e exportação, é muito rara a discussão de tratados entre países cujo foco central seja a pessoa humana. Por isso o crescimento da liberdade de movimentação dos bens de capitais sem a devida prioridade dos seres humanos é algo que precisa mudar”, afirma Rosita. “Há iniciativas em países que tornam a migração um crime. Dão um tratamento policial a um fato social. Temos que afastar essa visão”, completa.

Impasse interno
O início da tramitação da convenção da ONU no Congresso brasileiro depende de um acordo a que precisam chegar o Itamaraty, a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), o Ministério do Trabalho e o Ministério da Justiça. Segundo a SEDH, o que tem impedido o consenso do governo federal é um parecer do Departamento de Estrangeiros do Ministério da Justiça, que faz uma série de ressalvas à convenção.

“Defendemos o pronto início da tramitação sem ressalvas, porque isso descaracteriza a convenção. Podemos iniciar a tramitação com dois pareceres diversos, mas isso é ruim para o governo. Então precisamos dialogar com o Ministério da Justiça”, explica Paulo Vannuchi, ministro dos Direitos Humanos. “Daria para superar isso com o [ministro] Marcio Thomaz Bastos se não estivéssemos no período encalacrado do Natal. Mas há chances de convencer e demover os técnicos do ministério e iniciar o processo de tramitação nas próximas semanas”, avalia.

Para Vannuchi, do ponto de vista simbólico, pelo fato do Brasil ser um “país de migrantes”, “é absolutamente intolerável” que ainda tenhamos em vigor uma legislação como essa. “Há mais de 20 anos o mundo proclama as benesses da globalização, que certamente traz fluxos humanos. Então é preciso ter uma política de solidariedade”, afirma.

Na visão do deputado estadual Renato Simões (PT-SP), o impedimento à livre circulação das pessoas no país torna a vida dos imigrantes acolhidos pelo Brasil insuportável. “Todas as pessoas que escolheram o Brasil para viver não têm acesso ao trabalho, à educação, à sa&uac
ute;de para seus filhos”, explica. “É insuportável que um governo democrático e popular não resolva esse problema da Lei do Estrangeiro e da convenção da ONU. Espero que isso venha num segundo mandato, porque é importante dotar o Brasil de um novo marco legal compatível com os direitos humanos”, completa Simões.

Bia Barbosa é membro da ONG Repórter Brasil

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