Vergonha

Libertação recorde está na nova “lista suja” do trabalho escravo

Cadastro lançado pelo MTE traz libertação que tirou 1003 trabalhadores de situação semelhante à escravidão da Destilaria Gameleira, no Mato Grosso; Pará é estado que mais aparece na lista, com 35,5% dos nomes, seguido do Tocantins, com 20,9%
Por Leonardo Sakamoto
 13/12/2006

O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) divulgou nesta quarta-feira (13) a nova atualização do cadastro de empregadores que utilizaram mão-de-obra em situação análoga à de escravo – conhecido como "lista suja". Ao todo, são 170 empregadores, pessoas físicas e jurídicas, flagrados cometendo esse crime em 13 estados.

Outros 34 nomes que deveriam constar no cadastro ficaram de fora, pois obtiveram liminares com efeito suspensivo da Justiça Federal e da Justiça do Trabalho. A Advocacia Geral da União e o MTE estão tentando derrubar essas suspensões.

O Pará lidera o número de relacionados com 35,5% do total. Em segundo lugar está o Tocantins, com 20,9%. Na seqüência, vêm Maranhão (16,9%), Mato Grosso (9,3%), Goiás (5,2%), Bahia (3,5%), Mato Grosso do Sul (2,9%), Roraima (1,7%), Minas Gerais e Piauí (1,2%). São Paulo, Rio Grande do Norte e o estreante Rio Grande do Sul têm 0,6% cada. Os Estados com maior representação na "lista suja" estão localizados no arco do desmatamento amazônico e na região do cerrado, onde a vegetação nativa perde espaço para os empreendimentos agropecuários.

Nessas fazendas e carvoarias, os trabalhadores eram submetidos a condições subumanas na derrubada de mata nativa para a ampliação de pastagem, na colheita da cana-de-açúcar para a fabricação de álcool, na limpeza do terreno para o plantio de soja e algodão, na colheita de café e babaçu, na extração de resina, na produção de carvão vegetal (matéria-prima para a siderurgia), entre outras atividades.

Segundo as regras da portaria nº 540/2004, que regulamenta a "lista suja", o nome do infrator só entra na relação após o final de um processo administrativo gerado pelos autos da equipe de fiscalização que libertou os trabalhadores. A exclusão, por sua vez, depende do monitoramento da fazenda por dois anos. O nome só será retirado da lista se, após esse tempo, não houver reincidência no crime, se todas as multas resultantes da ação de fiscalização forem pagas, se forem garantidas condições dignas de trabalho e se as pendências trabalhistas forem quitadas. A atualização é divulgada semestralmente desde novembro de 2003.

O monitoramento inclui novas fiscalizações ao local, além de informações fornecidas por órgãos governamentais e entidades da sociedade civil. Nesta nova edição, 60 empregadores rurais deixariam a "lista suja" por terem entrado há dois anos. Contudo, apenas 26 saíram, pois o restante não quitou as pendências com o Ministério do Trabalho e Emprego ou foi reincidente no crime.

Recorde na lista
A edição da "lista suja" lançada nesta quarta-feira traz 52 novos nomes e quatro reincidências. Entre as pessoas ou empresas que constam no cadastro e foram flagradas mais de uma vez utilizando esse tipo de mão-de-obra está a Destilaria Gameleira, palco da maior libertação de escravos da história recente do país. A fazenda pertence ao grupo EQM e está localizada no município de Confresa, no Nordeste do Mato Grosso. Em junho de 2005, o grupo móvel do MTE flagrou no local 1003 pessoas em condições análogas à escravidão.

"A situação aqui é horrível. Há superlotação dos alojamentos, que exalam um mau cheiro insuportável. A única água que recebe tratamento é aquela que vai para as caldeiras e não para os trabalhadores. A alimentação estava estragada, deteriorada. O caminhão chega jogando a comida no chão. Pior do que a comida que se dá para bicho, porque esse pelo menos tem coxo", afirmou na época Humberto Célio Pereira, auditor fiscal do Trabalho e coordenador do grupo móvel de fiscalização. De acordo com ele, todas as características confirmaram a existência de trabalho análogo ao de escravo, do aliciamento ao endividamento e à impossibilidade de deixar o local.

O nome da fazenda, que já estava na "lista suja" por outra libertação (de 318 pessoas, em 2001), agora também será relacionado ao recorde de 1003 trabalhadores libertados. Com isso, deve ficar na lista, pelo menos, até dezembro de 2008.

Em maio de 2006, a Gameleira passou por uma mudança, sendo incorporada à recém-criada Destilaria Araguaia. Para reverter a imagem negativa que se associou ao nome "Gameleira" depois dos escândalos, o empresário Eduardo de Queiroz Monteiro, dono do grupo EQM, comprou a parte da fazenda que pertencia a sua família, adquiriu mais terras, ampliou as instalações e trocou o nome da propriedade. Eduardo é irmão do deputado federal reeleito Armando de Queiroz Monteiro Neto (PTB-PE), que também é o presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI).

Na época, o grupo EQM informou que na Araguaia tudo seria avançado, inclusive o tratamento dispensado aos funcionários. Haveria instalações modernas não só para fabricar álcool, mas também para o conforto dos trabalhadores. Anunciou que cumpriria todos os aspectos da lei, como as regulamentações do trabalho rural da norma NR31. Prometeu que iria garantir para os 240 trabalhadores fixos e 750 temporários alojamentos decentes, alimentação balanceada servida em restaurantes móveis e, o mais importante, carteira assinada e todos os direitos trabalhistas.

O impacto da "lista suja"
A "lista suja" é um dos mais importantes e eficazes instrumentos para a erradicação da escravidão no Brasil, pois atinge economicamente os negócios que utilizam esse tipo de mão-de-obra. Instituições financeiras tanto públicas, como o Banco do Brasil, Banco da Amazônia, Banco do Nordeste e BNDES, quanto privadas, como o ABN Amro, Santander e Bradesco, não emprestam recursos para os relacionados na "lista suja". A Federação Brasileira dos Bancos (Febraban) também assumiu o compromisso de recomendar aos seus associados que sigam o mesmo caminho e não emprestem ou financiem a essas pessoas físicas e jurídicas.

Ao mesmo tempo, as quase 100 empresas signatárias do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo se comprometeram a acabar com esse tipo de crime em suas cadeias produtivas. Para isso, negam-se a adquirir, direta ou indiretamente, mercadorias produzidas por fazendas da "lista suja". Estão entre as empresas que adotaram esse comportamento as redes varejistas Carrefour, Pão de Açúcar e Wal-Mart, os distribuidores de combustível Ipiranga, Petrobrás e Shell, a indústria têxtil Coteminas e a Companhia Vale do Rio Doce, representando uma parcela significativa do PIB nacional.

O Ministério do Desenvolvimento Agrário e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) analisam as propriedades listadas para verificar se estão regulares. Em caso de comprovação de grilagem, as t
erras poderão ser destinadas à reforma agrária. Resultados prévios desse levantamento apontaram para problemas fundiários em mais da metade das propriedades da "lista suja".

Muitas empresas têm questionado na justiça a legalidade do cadastro de empregadores. Contudo, para o subprocurador-geral do Ministério Público do Trabalho e coordenador nacional para o combate ao trabalho escravo da instituição, Luís Antônio Camargo, a "lista suja" opera dentro da lei. "O cadastro não é ilegal, não é inconstitucional, na medida que não impõe nenhuma punição. Há apenas uma divulgação das fiscalizações do MTE. É uma obrigação da administração pública dar publicidade a seus atos. É uma grande arma no combate ao trabalho escravo."

A íntegra da "lista suja" pode ser consultada no site da Repórter Brasil em português, inglês, francês e alemão. O cadastro também está no site do Ministério do Trabalho e Emprego.

Colaboraram Iberê Thenório e Thiago Guimarães.

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