O engodo da emenda três: mais uma tentativa de legalizar a fraude

 12/03/2007

Por Sebastião Vieira Caixeta*

A recente aprovação da emenda três ao Projeto de Lei n. 6.272/2005, que cria a Receita Federal do Brasil, é mais uma tentativa de legalizar fraudes. Sancionada, acarretará enormes prejuízos à classe trabalhadora e mais precarização nas relações de trabalho.

Embora os defensores da emenda sustentem que ela apenas corrige distorção do sistema, exigindo prévia decisão judicial a legitimar a atuação fiscal na "desconsideração de pessoa, ato ou negócio jurídico que implique reconhecimento de relação de trabalho", o que está por trás do debate é o discurso neoliberal de desconstrução do direito do trabalho.

Pretende-se que empregados possam ser contratados como pessoas jurídicas (as PJs), fugindo, assim, dos direitos trabalhistas e encargos sociais, o que é, reconhecidamente, fraude (nesse sentido recente acórdão do TST disponível em http://ext02.tst.gov.br/pls/no01/no_noticias.Exibe_Noticia?p_ cod_noticia=7379&p_cod_area_noticia=ASCS . Acesso 9 mar. 2007). Trata-se, portanto, de tentativa de coonestar a ilicitude.

Ao contrário do que se alega, não teremos a criação de empregos, mas a substituição destes por falsas pessoas jurídicas, cooperativas de trabalho, parcerias e representações comerciais. A imunidade à fiscalização do trabalho vai estimular maus empresários a aumentar, vertiginosamente, tais simulacros, jogando com a demora do Judiciário, que será ainda mais congestionado.

Será, pois, o estímulo legal à fraude, porquanto o empregador poderá trocar empregados por falsos autônomos e, mesmo em fraude à lei, não sofrer qualquer ação administrativa do Estado. Assim, não haverá como exigir férias, FGTS, 13º salário, normas de segurança e saúde, pagamento de horas extras, aposentadoria, licença-maternidade, entre outros. Ou alguém acha que o empregado espoliado vai ingressar na Justiça para ser demitido?

Além de contrariar o interesse público, a emenda é, flagrantemente, inconstitucional. Ofende a cláusula pétrea da separação dos poderes porque condiciona a fiscalização, típico exercício de poder de polícia a cargo do Executivo, à decisão prévia do Poder Judiciário.

O dispositivo em tela afronta também o art. 21, XXIV, da Carta, uma vez que impede o Poder Executivo de "executar a inspeção do trabalho" nas atividades corriqueiras de fiscalização. O ordenamento protetivo trabalhista conta com dupla proteção: a administrativa, exercida pela inspeção do trabalho no âmbito do poder de polícia; e a jurisdicional, exercitada pelo Poder Judiciário. Uma não exclui a outra, antes se completam.

Na medida em que afasta a proteção administrativa dos diretos trabalhistas, a emenda ainda viola o art. 7º da Constituição, ao qual se deve dar máxima efetividade.

No plano internacional, contraria o Tratado de Versalhes, a Convenção n. 81 e a Recomendação n. 198 da OIT, que determina aos Estados membros "lutar contra as relações de trabalho encobertas, no contexto, por exemplo, de outras relações que possam incluir o recurso a formas de contratos que ocultem a verdadeira situação jurídica, entendendo-se que existe uma relação de trabalho encoberta quando um empregador considera um empregado como se não o fosse, de uma maneira que oculta sua verdadeira condição jurídica, e que possa produzir situações nas quais os contratos dão lugar para que os trabalhadores se vejam privados da proteção a que têm direito".

A falácia de que a emenda somente explicita uma impossibilidade já decorrente do sistema também não se sustenta. Os Tribunais têm reconhecido, unanimemente, a possibilidade de a fiscalização desconsiderar ato jurídico e reconhecer o vínculo trabalhista (V.g. Resp 236.279, Min. Garcia Vieira, DJ 20/3/2000; Resp 515.821/RJ, Min. Franciulli Netto, DJ 25/4/2005; Resp 837.636, Min. José Delgado, DJ 14/9/2006; TRT-3ª Região-RO-01281-2005-011-03-00-8, Juíza Mônica Sette Lopes, DJ 19/7/2006). Obviamente, os autos de infração estão sujeitos ao controle jurisdicional posterior, nunca anterior.

Por todas essas razões, que evidenciam a inconstitucionalidade e a contrariedade ao interesse público, e pelo seu compromisso histórico com a realização da justiça social, espera-se que o Presidente da República vete o art. 9º do Projeto de Lei n. 6.272/2005, que cria a Receita Federal do Brasil, na parte que incluiu o § 4º no art. 6º da Lei n. 10.593/2002 (Emenda Aditiva n. 3).

* Sebastião Vieira Caixeta é presidente da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT).

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