Angolanas no Brasil II

Das novelas brasileiras aos mercados populares da África

Produções da televisão brasileira, principalmente as novelas, exercem grande influência cultural em Angola. Comércio desenvolvido naquele país, geralmente a céu aberto, remonta a traços culturais africanos
Texto e fotos por Juliana Borges
 06/04/2007

Angola, por causa da sua história banhada de sangue, tem de comprar fora do país quase tudo o que consome. Quatro décadas de combates armados – de 1961 a 1975, os negros lutaram pela independência de Portugal; depois, de 1975 até 2002, a nação viveu uma guerra civil entre grupos políticos – empobreceram a população e praticamente estagnaram a economia local. O saldo de tantos conflitos foi cruel: cerca de um milhão de mortos, 4,5 milhões de refugiados de guerra e milhões de minas terrestres plantados por todo o território. Hoje, os angolanos vivem numa situação difícil. O país ocupa a 160ª posição no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) entre 177 nações avaliadas, tem a segunda maior taxa de mortalidade infantil do mundo (295 por mil crianças nascidas) e 68% da população vive abaixo da linha de pobreza.

Nos mercados a céu aberto de Angola, roupas semelhantes às usadas por estrelas de novelas brasileiras são peças bastante cobiçadas

Talvez sejam esses os motivos para que centenas de sacoleiras angolanas atravessem quase diariamente o Atlântico e desembarquem em São Paulo à procura de produtos para serem revendidos em seu país de origem. Elas compram quantidades enormes, despachadas por transportadoras. O lucro obtido com a transação paga a passagem de avião, que custa mais de mil dólares, e ainda garante o sustento dessas mulheres. Esse comércio transatlântico informal é uma das formas que muitas mulheres em condição um pouco melhor do que a média encontraram para sobreviver.

As primas Inês e Cristina, que moram na capital Luanda, são duas delas. Elas chegaram ao Brasil em um vôo da TAAG (Linhas Aéreas Angolanas). "Viemos três a quatro vezes por ano, sempre que precisamos de alguma coisa que não encontramos lá", diz Inês. "Compro principalmente roupas, mas acabo levando de tudo um pouco: sapatos, cintos, bolsas", completa. Cristina, a mais expansiva das duas, conta que, no início, vendia as mercadorias nas ruas, mas, hoje, prefere que as clientes vão até sua casa. "Lá no Roque [Roque Santeiro, o maior mercado a céu aberto da África, que fica em Luanda] era mais difícil. Todos só queriam comprar as novidades. Se não vendia uma roupa na primeira ou segunda semana, ninguém queria mais, pois era muita gente vendendo", explica Cristina.

As primas estão hospedadas no quarto 404 de um dos hotéis do Brás que se especializaram em receber africanas. O lugar é um típico estabelecimento do centro de São Paulo: construção e decoração antigas, pé direito alto, piso gasto nos lugares mais usados, balcão de couro vermelho com tampo de mármore. A diária fica por R$ 29 (com banheiro externo), o quarto é bem simples: tem uma pia, uma cama de solteiro, um guarda-roupas, uma estante e uma pequena televisão. As duas pretendem ficar duas semanas rodando as lojas brasileiras à procura do melhor preço. Todos os dias elas saem de manhã, por volta das 9h, e só voltam quando as lojas fecham. "Se não andarmos direito olhando os preços, podemos levar produtos mais caros e aí não compensa", diz Cristina. No terceiro dia de compras, o quarto já praticamente tomado por grandes pacotes. Em meio a eles, as duas assistem com atenção à última semana da novela "Cobras e Lagartos".

Estação Brás do Metrô: bairro mistura pessoas de diversas nacionalidades, inclusive angolanas que vêm ao Brasil para comprar roupas que serão revendidas na África

Em Angola, graças às parabólicas que recebem os sinais das emissoras brasileiras Globo e Record, elas não perdem um capítulo. As novelas brasileiras são, de longe, os programas de maior sucesso. Mais do que apenas entreter os telespectadores africanos, os seriados brasileiros são usados por muitos como referência sobre o que vestir. Por isso, Cristina e Inês precisam ficar atentas ao figurino. "A blusa que eu comprei é igual à da Ellen", observa Inês, referindo-se à personagem interpretada pela atriz Taís Araújo. Nas ruas do Brás, os lojistas também confirmam a influência das novelas na escolha do que comprar. "Tudo o que as atrizes da Globo estão usando as angolanas levam", diz a dona de uma loja do Brás. "Hoje em dia, o que mais sai são as roupas da Ellen e da Leona (interpretada por Carolina Dieckmann)".

O enorme interesse pelos programas de televisão é um termômetro da influência que o Brasil exerce sobre o país africano. "Os angolanos, sobretudo os de nível social mais baixo, nutrem quase que uma idolatria pelo Brasil", afirma o professor Carlos Serrano, do Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo (USP).

Informalidade tribal
A informalidade do comércio e o medo de dar informações dificulta saber, mesmo aproximadamente, o montante de dinheiro movimentado pelas sacoleiras africanas em São Paulo. Mas a quantidade de estabelecimentos especializados em atender esse nicho de mercado – são dezenas de lojas – fornece uma pista da força desse nicho de mercado.

Com uma quantidade expressiva de mercadorias comercializadas, muitos se perguntam por que os angolanos não fazem esse comércio de maneira mais organizada e formal. A resposta não é fácil e uma discussão rasa sobre o assunto pode originar um argumento preconceituoso. "Chamar o negócio das sacoleiras de informal é não conhecer um processo histórico", defende o angolano Abdu Ferraz, fundador da organização Liga dos Amigos e Estudantes Africanos (LAEA), que tem por objetivo assegurar a inclusão do negro na sociedade brasileira. "A camelagem é um conceito africano tribal de ganhar dinheiro, tribal no sentido de que é original para um africano. As sacoleiras que vêm comprar no Brás estão seguindo a lógica comercial que seu povo exerce há centenas de anos", explica.

Assim como em Angola, na maioria dos outros países africanos, boa parte do comércio sempre aconteceu nas ruas ou nos mercados a céu aberto, como o Roque Santeiro, a que Cristina se referiu. Nas ruas, as zunguerias, como são chamadas as vendedoras ambulantes, carregam bacias sobre suas cabeças com todo tipo de produtos: eletrodomésticos, roupas, alimentos, havaianas ou peixes. Diante dessa lógica de informalidade que se perpetua há séculos entre os africanos, fica mais fácil de entender que tanta informalidade assim não é falta de profissionalismo, mas sim um traço cultural.

Clique abaixo para ler outras partes da reportagem:

Parte I
A saga de mulheres africanas que cruzam o oceano para comprar roupas no Brasil
Parte III – Comércio transatlântico: venda de roupas aliada a transformações culturais

* Esta reportagem foi publicada em parceria com a revista Problemas Brasileiros

APOIE

A REPÓRTER BRASIL

Sua contribuição permite que a gente continue revelando o que muita gente faz de tudo para esconder

LEIA TAMBÉM