Dia do Índio III

Índios reproduzem formas de organização no meio urbano

Sobrevivência na cidade passa pela construção de estratégias coletivas, em geral familiares. Com isso, grupos que vivem no ambiente urbano mantêm um dos principais traços dos povos indígenas, que são as relações de parentesco
Texto e fotos de Priscila D. de Carvalho
 19/04/2007
Especial Dia do Índio
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Índios reproduzem formas de organização no meio urbano
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A cozinha da família é embaixo da árvore. Ali, a avó termina de dar almoço às crianças. O barraco de lona preta fica a poucos metros, e as outras casas da família estão a três quarteirões, no bairro Jardinópolis, região industrial de Campo Grande conhecida como Indubrasil. Os avós mudaram para perto dos filhos. Os homens da família estão empregados na indústria de couro: o filho trabalha no corte, o cunhado nas máquinas, o genro separa o couro da carne. Na casa da filha, o genro descansa na rede do trabalho "no faqueiro", no turno que vai das 5 da tarde às 5 da manhã, folgas aos domingos. O frigorífico que fica a dois quilômetros dali, dá pra ir de bicicleta e o horário da noite é melhor, porque ele ganha adicional noturno.

"Falta trabalho lá em Lagoinha. Só tem no corte de cana. E tem que ficar de 60 a 90 dias fora, sem ver família, filhos. Não tem roça porque não tem terra pra roça. E a que tem está muito cansada", justifica o Sr. Paixão, do povo Terena, o avô. Os primeiros filhos chegaram há dez anos. E ficam até quando? "Até quando a prefeitura mexer com nós, nós vamos ajeitando aí, vamos ver se compramos algum terreno aí", planeja o Sr. Paixão. "O que precisa mais é condução. Doença não espera ônibus. Se adoece à meia-noite, fica sem condução". Ele conta que a filha grávida de sete meses tinha chegado à meia-noite na véspera, depois de sair para fazer ultra-som às 4 tarde: falta de ônibus.

A avó, Dona Ermínia, e os netos, se preparam para uma visita à aldeia. No final de semana seguinte haverá casamento. "Vamos quando tem festa. Quando temos sobra de dinheiro que dá pra pagar condução", explica o avô. Eles pretendem alugar uma van para a viagem de 250 km, mas talvez não dê certo, porque o motorista não quer que carregar crianças no colo dos adultos. Não quer ser parado pela fiscalização.

A sobrevivência na cidade passa pela construção de estratégias coletivas, em geral familiares. Com isso, os grupos urbanos mantêm um dos traços centrais dos povos indígenas, que são as relações de parentesco.

Muitas famílias de indígenas nas cidades vivem próximas, em grupos pequenos de famílias nucleares, mas também mantêm contato com os parentes de longe. Na extrema Zona Leste de São Paulo, a Pankararu Helena tem dois irmãos e dois primos que vivem em bairros próximos ao seu, o Jardim Rodolfo Pirani. "Meu pai trabalhava na antiga Light e trazia as pessoas de Pernambuco pra cá, para trabalhar aqui. Veio tentar a vida, depois a minha mãe veio. Ficaram 20 anos e voltaram", conta.

O contato com as aldeias é comum. A cada ano, em fevereiro, um grupo Pankararu vai a sua terra em Pernambuco, para a festa do Umbu. Para este mesmo grupo, que vive em uma favela em São Paulo, estar junto significa também atuar em conjunto no local onde moram. O cacique Seu Bino, presidente da Associação SOS Pankararu, é também referência dentro da rede de lideranças de outros grupos dentro da favela. Ali, é ele quem deve ser procurado para tratar dos assuntos referentes a seus parentes.

Reprodução do modelo produtivo

Pequeno grupo guarani produz e vende artesanato na beira da estrada em Porto Alegre (RS)

No Rio Grande do Sul, os povos Guarani e Kaingang simplesmente não se questionam sobre o intercâmbio entre as aldeias: a mobilidade das famílias faz parte da forma de vida destes povos. Não é, portanto, nenhuma novidade, e nem deixou de existir nos últimos 50 anos.

Durante seu m
estrado em Ecologia, a bióloga Ana Elisa Freitas estudou a ocupação dos espaço pelos Kaingang, em Porto Alegre. Ela percebeu que o uso da cidade respeita a mesma lógica utilizada nas terras indígenas. "O modelo produtivo é o mesmo", afirma.

No interior ou na cidade, o espaço Kaingang está dividido em três ambientes, sempre articulados: o da moradia, o da coleta e manejo de recursos naturais, e o da comercialização e troca.

O espaço da troca são as feiras, no centro da cidade, endereço também dos órgãos públicos, freqüentados para a exigência do cumprimento de direitos – entre eles o direito de expor e vender o artesanato, mas também aqueles relacionados à moradia, educação diferenciada ou saúde.

O território da coleta de materiais para o artesanato abrange toda a bacia do Rio Guaíba, o principal da cidade. E cada família maneja de 8 a 12 espaços de mata, usados de forma rotativa, para dar tempo para que plantas cresçam e possam voltar a ser coletadas. Os lugares que os Kaingang escolhem para morar também não estão fora desta lógica. Eles ocupam as partes altas do território, onde estão nascentes de cursos d´água que formam o Guaíba. O terreno que escolheram para ser comprado pela prefeitura, para a construção da aldeia na Lomba do Pinheiro, fica em região alta da cidade, exatamente como a aldeia que fica na entrada do Morro do Osso – área disputada entre os Kaingang e a prefeitura da capital gaúcha.

Movimentação migratória
"Eles não se pensam como índios urbanos. Moram fora dela, em suas aldeias, e vão à cidade negociar com os brancos mercadorias e direitos", conclui a pesquisadora."Somos nós que fazemos este recorte entre cidade e aldeia com rigor. Ir para a cidade não é sair do território. Estes povos sempre migraram muito", questiona o historiador Antonio Brand, referindo-se especialmente aos Terena e aos Guarani.

As relações com as aldeias permanecem também porque quem mora na cidade acumula conhecimentos úteis para todo o povo. "Quem vem se tratar em São Paulo às vezes não sabe ler, a gente ajuda a pegar um ônibus, chegar no hospital", relata Cícera Vieira do Nascimento, Pankararu que vive no Real Parque.

Quem migra para a cidade também se abriga na casa dos parentes, até achar trabalho e até conseguir moradia. Estas estratégias de chegar na cidade, aliás, não são exclusivas dos povos indígenas. São comuns para toda a população brasileira que vive nas periferias das capitais.

* O projeto que deu origem a este trabalho foi ganhador das Bolsas AVINA de Investigação Jornalística. A Fundação AVINA não assume responsabilidade pelos conceitos, opiniões e outros aspectos de seu conteúdo

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